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Rio vai criar ambulatório para pacientes com sequelas da covid-19

Pelas estimativas oficiais, mais de 27 mil pessoas precisarão tratar as consequências da infecção pelo coronavírus

PEC: piso salarial de enfermeiros passará a ser de R$ 4.750,00 (Fabio Teixeira/Anadolu Agency/Getty Images)
AO

Agência O Globo

Publicado em 17 de novembro de 2021 às 07h52.

Última atualização em 17 de novembro de 2021 às 07h54.

Edgard Travassos recebeu alta do Hospital Ronaldo Gazolla, em Acari, na Zona Norte do Rio, no dia 1º deste mês, cinco meses após dar entrada na unidade com um quadro grave de Covid-19. Com 33 anos e sem comorbidades, o corretor de imóveis passou, depois de se contaminar, por duas intubações, duas paradas cardíacas, uma traqueostomia, hemodiálise e duas microcirurgias.

Teve de permanecer no hospital mesmo após se curar da infecção: o longo período de hospitalização ficou marcado em sua pele com uma grande escara no cóccix, tipo de lesão comum em quem fica acamado por muito tempo, que lhe impedia de andar. Por um mês e 20 dias, o paciente passou por um processo de reabilitação que lhe devolveu a maior parte de suas funções motoras — embora elas ainda estejam sendo recobradas, pouco a pouco.

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— Assim que a infecção foi embora, eu não conseguia andar. Hoje recuperei 80% da minha capacidade de caminhar. Em quinze dias de tratamento de reabilitação eu já tinha conseguido andar um pouco. Durante o tratamento, minha ferida recebeu os cuidados necessários, tomei medicamentos caros, tive assistência psicológica… O suporte que o hospital me deu foi primordial. Foram dias difíceis, mas os profissionais que cuidaram de mim tornaram esse tempo mais fácil, mais leve — conta.

Ele foi um dos 1.036 pacientes que já passaram pela ala de tratamento pós-Covid do Ronaldo Gazolla, criada em junho. Dedicado a pacientes do próprio hospital, o setor recebeu pessoas que manifestaram sequelas graves da doença — o que caracteriza a chamada Síndrome Pós-Covid, ou Covid longa. As complicações, segundo estudos, variam em duração e sintomas, podendo perdurar por até três meses e resultar em problemas respiratórios, cognitivos, neurológicos e mentais, entre outros.

As sequelas de Covid-19 se mostram um problema emergente de Saúde Pública. No município do Rio, entre janeiro e outubro, o número mensal de solicitações por uma consulta de pneumologia motivadas por quadros de pós-Covid saltaram de 91 para 263, apontam dados do Sistema de Regulação da prefeitura (Sisreg). O índice, embora continue alto, teve uma pequena queda entre outubro e setembro, que teve o maior acumulado de pedidos pendentes da série histórica: 397. Nesse mesmo período, o tempo médio de espera para o procedimento saltou de 55 para 93 dias.

No Ronaldo Gazolla, o número de pacientes que necessitaram de tratamento representa pouco mais de 10% dos 9.777 casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) notificados pelo hospital durante a pandemia, segundo registros do sistema de informações em saúde da Secretaria municipal de Saúde (SMS). A porcentagem corresponde às estimativas da prefeitura para a quantidade de pessoas curadas da Covid que vão precisar de tratamento para sequelas da doença este ano — mais de 27 mil pacientes, considerando o número total de infecções ocorridas em 2021.

Solução para o gargalo

Para desfazer o gargalo no Sisreg, uma empreitada que envolve diversas especialidades médicas e procedimentos de diferentes graus de complexidade, a prefeitura resolveu montar no Ronaldo Gazolla o Centro de Reabilitação Pós-Covid, uma seção de assistência ambulatorial voltada para pacientes com sequelas da doença, inclusive aqueles com passagem por outros hospitais. A previsão é que a nova ala seja inaugurada em dezembro.

— Identificamos a necessidade de criar esse ambulatório porque a demanda está muito alta — explica o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz. — Imaginamos que pelo menos 10% das pessoas que tiveram Covid vão precisar de algum acompanhamento posterior. Mas esse número pode ser maior. Entre as sequelas mais comuns, estão o comprometimento da função pulmonar e dificuldades motoras, além de insuficiência renal e hepática.

Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz Sérgio Arouca (Ensp-Fiocruz), Margareth Portela, que acompanha o assunto de perto há meses, é taxativa: o número de solicitações no Sisreg é apenas uma amostra do problema que emerge no horizonte dos gestores, cujo tamanho real ainda é difícil de mensurar.

— Isso é só a ponta do iceberg. O número se refere a um grupo que chegou a manifestar sintomas graves de Covid, mas teve condições de se mobilizar para buscar o atendimento. Há também aqueles que não passaram pelos hospitais, que são mais difíceis de identificar — pontua. — Às vezes a pessoa não sabe nem identificar que o seu sintoma se relaciona com a Covid. E, mesmo que identifique, nem sempre ela procura ajuda.

A especialista também ressalta que o número de afetados pela Covid longa pode ser maior do que as projeções da prefeitura. Ela mapeou diferentes estudos disponíveis sobre o tema e, a partir dessa análise, concluiu que há a prevalência de pelo menos um sintoma pós-Covid em 45,9% dos pacientes 90 dias ou mais após a data de primeiros indícios da infecção ou da hospitalização. Os estudos mostram ainda que, quanto menor o tempo passado desde a contaminação, maior a prevalência proporcional desses sintomas.

Ela destaca, contudo, que os dados da pós-Covid no Sistema Único de Saúde (SUS) ainda são escassos, sobretudo entre aqueles que não passaram por atendimento hospitalar durante o período de infecção.

— Temos um grande desafio de saúde pública pela frente, principalmente porque alguns desses procedimentos são de maior complexidade. Parte da resposta dos gestores tem de vir pela Atenção Primária, sobretudo nas medidas mais simples, e parte tem de vir pela assistência ambulatorial especializada, onde há de fato um gargalo. Tem de haver uma articulação estreita nesse sentido — diz.

Primeira unidade de referência

Primeira unidade de referência no tratamento às sequelas de Covid-19 no estado, o Ambulatório Multidisciplinar Pós-Covid do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), concentrou parte dessa demanda a nível estadual nos últimos meses. Foram 15.644 atendimentos desde sua inauguração, em maio, até o fim de outubro. O número se refere ao total de consultas realizadas — um mesmo paciente pode ter passado por diferentes sessões, individuais ou em grupo.

Um dos usuários do serviço do ambulatório foi Gabriel Queiroz, de 32 anos, que passou 44 dias internado no Hospital Zilda Arns, em Volta Redonda, dos quais 25 foram no Centro de Terapia Intensiva (CTI). Em seu período de infecção — quando, segundo conta, viu de cinco a dez pacientes próximos morrerem pela doença todos os dias —, o empresário teve 95% do pulmão comprometido. Meses depois de curado, ele ainda enfrentava dificuldades para respirar, e seus amigos chegaram a promover uma vaquinha para custear sessões de fisioterapia particulares antes que ele pudesse receber o tratamento do Hupe.

— Tive que passar por muitas sessões de fisioterapia respiratória, quase como se fosse um crossfit do pós-Covid. Também tive muito suporte para superar os efeitos emocionais, como a ansiedade. Se não fosse pelo tratamento que recebi, não sei se estaria aqui — afirma.

Coordenador de Ações de Fisioterapia do Ambulatório Multidisciplinar Pós-Covid, Renato Cunha informa que o objetivo do tratamento é devolver ao paciente a plenitude de suas funções em até oito semanas e, para isso, cada paciente passa por duas consultas semanais. Os usuários do serviço são selecionados a partir do Sistema de Regulação da Secretaria de Estado de Saúde (SER) e, antes da fase de fisioterapia, passam por uma triagem para mapear todas as suas sequelas. Os pacientes com sintomas mais graves passam por sessões individuais.

— Não há uma relação direta entre a gravidade do quadro do paciente e as sequelas deixadas pela infecção. Ou seja, tenho pacientes que tiveram quadros relativamente leves e depois manifestaram sequelas mais graves que pacientes que tiveram Covid grave — alerta o fisioterapeuta. — Já tivemos casos de pacientes traqueostomizados e com membros paralisados que voltaram a subir escadas normalmente num período de dois a três meses.

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