Prisão após 2ª instância vai reduzir a impunidade no Brasil?
Decisão do STF de executar pena antes do trânsito em julgado divide juristas pelo país - veja os argumentos de ambos os lados
Talita Abrantes
Publicado em 18 de outubro de 2016 às 06h00.
São Paulo – De 2009 até fevereiro deste ano, uma pessoa condenada por algum crime só poderia cumprir uma pena quando estivessem esgotadas todas as possibilidades de recursos. Decisão do Supremo Tribunal Federal ( STF ) confirmada no início deste mês mudou essa sina: a partir de agora, a pena pode ser executada após a sentença em segunda instância. A decisão dos ministros da mais alta corte do país foi recebida com ressalvas por uma parte dos juristas. Para esse grupo, o novo entendimento do Supremo viola a presunção de inocência e fere a Constituição. Para outro grupo, a execução da pena antes do trânsito em julgado (quando se esgotam todos os recursos possíveis) “ fecha uma das janelas da impunidade”, como assinalou o juiz Sergio Moro em nota à imprensa em fevereiro. Será mesmo? Veja, a seguir, os argumentos de ambos os lados. O que está em jogo? O entendimento do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. O texto afirma: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Além disso, os ministros também levaram em conta os artigos 283 e 637 do Código de Processo Penal. O primeiro afirma que “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Já o segundo versa que o “recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”. Entenda os argumentos.
Quem é: Subprocuradora-geral da República e coordenadora da Câmara Criminal do Ministério Público Federal. EXAME.com: Um dos principais argumentos favoráveis à execução penal antes do trânsito em julgado é de que essa decisão fecharia uma das janelas da impunidade no Brasil. Essa afirmação procede? Luiza Frischeisen: O Ministério Público Federal tem sido favorável à execução provisória. Qual é a importância? É fazer com que a sentença tenha efetividade porque ela existe para isso: para ser cumprida. Muitas das execuções provisórias que nós pedimos são em crimes graves e de penas altas, como homicídio, pornografia infantil, estupro. Há também um número grande penas alternativas que, inclusive por ter um prazo menor, prescreveriam mais rápido. Se não tem execução provisória a gente vai vivenciar casos de prescrição. e surge também essa coisa de recursos que não terminam. A possibilidade de tantos recursos é um problema? Acho que sim. Como você acabou tendo essa mudança da jurisprudência [em 2009] no sentido de que não caberia a execução provisória, se começou a procrastinar a execução da sentença com excesso de recursos. A prescrição começa a contar a partir da sentença e não para nunca mais. Então, quanto mais recursos tiver, mais o tempo vai passar. Foi o que aconteceu no caso do banco Marka-FonteCidam cujo julgamento foi encerrado sem nenhuma condenação. A defesa brasileira era muito baseada em nulidades e em excesso de recursos. Agora, com isso, vai ter que se pensar duas vezes antes de entrar com um recurso porque não vai adiantar. Alguns juristas afirmam que muitas decisões de segunda instância são revertidas ao chegar em tribunais superiores. Isso procede? Isso não é verdade. O que acontece é que nós discutimos muito no STJ (Supremo Tribunal de Justiça) habeas corpus de progressão de regime. Vamos supor que tenha um caso em que um tribunal tenha fixado uma pena muito alta contrariando a jurisprudência. O que vai acontecer? Uma medida cautelar ou um habeas corpus para dar efeito suspensivo e os ministros do STJ vão analisar caso a caso. Nós vamos inverter: a maior parte das sentenças será cumprida e não o contrário. A decisão do STF fere a Constituição? É importante dizer que [do jeito que falam] parece que nunca houve execução provisória no Brasil sob a égide da Constituição atual. E, na verdade, de 1988 até 2009, sempre se fez execução provisória. Quando, então, o Supremo entendeu por um quórum que também não foi unânime que a execução provisória após o julgamento do segundo grau feriria a presunção de inocência. Nós sempre defendemos que não - inclusive depois da Lei da Ficha Limpa, que usa a decisão em segundo grau em órgão colegiado para impor sanções no âmbito das inscrições partidárias e políticas. Por que a decisão não anula a presunção de inocência, então? A presunção de inocência não é eterna. A presunção de inocência não é não poder ser preso a nenhum momento depois de segunda instância. A presunção da inocência implica em ter o devido processo legal para que a pessoa possa se defender tecnicamente com o advogado particular ou público. Mas existe também uma presunção de que aquilo que já está decidido em primeiro e em segundo grau é para sociedade, e o sistema de justiça criminal tem que funcionar. As vítimas ou famílias das vítimas não têm direito de ver o cumprimento de uma sentença depois que lhes é dada pelo juiz e por um colegiado em segundo grau? Você pode perder os direitos políticos, na questão da Ficha Limpa que foi considerada constitucional, mas não pode cumprir uma pena alternativa ou um regime aberto ou um semi-aberto? Tem o que se pesar aí.
Quem é: professor da FGV Direito Rio. Ele foi ouvido pelos ministros do STF no caso como representante do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). EXAME.com: Um dos principais argumentos favoráveis à execução penal antes do trânsito em julgado é de que essa decisão fecharia uma das janelas da impunidade no Brasil. Essa afirmação procede? Thiago Bottino: Não. A impunidade significa ter uma pessoa que se tem certeza de que é culpada e não se consegue aplicar uma pena. A [sensação de] impunidade está relacionada, de certa forma, com a demora no julgamento dos casos. Essa demora não é necessariamente do número de recursos que a Constituição e a lei preveem. No Supremo, menos de 10% dos recursos estão relacionados com matéria penal. O que é que atravanca o Supremo? Não são os recursos de matéria penal, são os recursos de matéria civil. Talvez fosse melhor resolver o problema dos recursos de matéria civil, em vez de executar uma pena de uma pessoa sem que o recurso dela tenha sido julgado. Como a decisão do STF abala a presunção de inocência? Na Constituição, há uma garantia fundamental de que ninguém será considerado culpado até a sentença condenatória definitiva. Aí o Código de Processo Penal, que foi alterado em 2011, diz que ninguém pode ser preso a não ser nas seguintes situações: prisão preventiva, temporária ou depois do trânsito em julgado. O que o Supremo faz? Diz: "a gente tem que rever essa decisão do legislador". Então, o Supremo feriu a Constituição? Sim, a Constituição e a lei. O poder do Supremo vem da própria lei e da própria Constituição, quando ele se coloca acima disso, se transforma em um órgão que não pode ser controlado por ninguém. A gente está falando de uma instituição que não pode substituir a escolha do legislador por aquela que ele considera mais adequada. O Supremo não tem esse poder. Ele pode dizer o que é inconstitucional, mas nenhum ministro disse que o artigo 283 do Código de Processo Penal é inconstitucional. Na verdade, eles estão legislando: fazendo escolhas que não cabem a eles. Mas o ministro Luis Roberto Barroso lembrou em seu voto do artigo 637 do Código de Processo Penal ... O artigo 637 é de 1941, que foi outorgado pelo ditador da época que era Getúlio Vargas. Veio a Constituição de 1988 que diz que ninguém pode ser tratado como culpado até a decisão definitiva. O que que vale mais: o artigo 637, de uma ditadura, ou a Constituição? Se tiver uma incompatibilidade entre os dois, e há, tem que prevalecer a Constituição. Mais: ainda que você não tivesse essa questão tão clara na Constituição, o Congresso editou uma norma em 2011 dizendo que não pode executar a pena antes do julgamento do recurso especial extraordinário. Então, você tem no mesmo código, o artigo 283 que fala uma coisa e o 637, que fala outra. Qual dos dois tem que prevalecer? O mais antigo ou o mais novo? O mais novo. Em sua exposição no STF, o senhor afirmou que muitas das decisões em segunda instância são revertidas ao chegar em cortes mais altas. Como a decisão do STF afeta isso? Vou te dar um exemplo concreto. Há uma súmula do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) e duas súmulas do Supremo que dizem que se o sujeito tiver uma pena de até quatro anos, ele começa com regime aberto; de até oito anos, semiaberto e acima de oito, no fechado. Para começar a cumprir a pena num regime diferente daquele que a lei manda, o juiz tem que fundamentar a sua decisão. Pois bem, o Tribunal de Justiça de São Paulo, especificamente, condena o sujeito a uma pena de quatro anos e meio ou cinco anos e, em vez de mandá-lo cumprir no semi-aberto, manda para o fechado sem fundamentar. O que acontece? Todo mundo que recorre ganha. Se não se espera a decisão definitiva, teremos muito mais pessoas no sistema penitenciário cumprindo penas que a lei diz que elas não precisariam cumprir. Essas pessoas que hoje não iriam para a cadeia, vão passar a ir e, mais tarde, vai se descobrir que elas nunca deveriam sequer ficar presas.
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