Fachada de hospital da Prevent Senior no Tatuapé (Prevent Senior/Divulgação)
Estadão Conteúdo
Publicado em 21 de abril de 2020 às 13h56.
Última atualização em 21 de abril de 2020 às 15h03.
Um estudo da operadora Prevent Senior para testar a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 foi suspenso nesta segunda-feira, 20, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) após o órgão descobrir que os testes com pacientes foram iniciados antes de a empresa receber o aval para a realização da pesquisa, o que é proibido pelas normas do País. Os pesquisadores responsáveis foram convocados para audiência na tarde de ontem com o órgão para prestar esclarecimentos sobre as suspeitas de irregularidade, destaca o jornal O Estado de S. Paulo.
O caso foi revelado ontem pelo estadao.com.br. A pesquisa em questão tinha como objetivo avaliar a eficácia e a segurança da hidroxicloroquina associada ao antibiótico azitromicina para reduzir internações em pacientes com suspeita de infecção por coronavírus definida por sintomas leves de síndrome gripal.
Os testes com pacientes forram de 26 de março a 4 de abril, segundo artigo divulgado pela própria Prevent Senior na sexta-feira. Mas a pesquisa só foi submetida para apreciação do órgão regulador em 6 de abril, recebendo aval para realização no dia 14 do mesmo mês, segundo consulta feita pelo Estado na Plataforma Brasil, sistema da Conep que traz a lista de ensaios clínicos aprovados. A consulta foi feita com base no número de processo informado pela operadora no artigo.
A falha foi confirmada à reportagem por Jorge Venancio, coordenador da Conep, que revelou a decisão do órgão de suspender a pesquisa e cobrar esclarecimentos da empresa. "Não se pode propor uma pesquisa prospectiva, para o futuro, e fazê-la antes. A providência que tomamos foi a retirada provisória da aprovação da Conep para a pesquisa e o pedido de esclarecimentos. Se isso se confirmar, é uma irregularidade grosseira."
Venancio afirmou que outras incongruências foram identificadas no estudo. A primeira é relacionada ao perfil dos pacientes que fariam parte. No projeto submetido pela Prevent, os pesquisadores afirmaram à Conep que seriam incluídos no ensaio pacientes com diagnóstico confirmado de covid-19. O artigo divulgado pela Prevent com os resultados, porém, afirma que os participantes tinham apenas suspeita da doença. Bastava ter sintomas gripais, como tosse e febre, para que o paciente pudesse participar da pesquisa.
A segunda possível falha está relacionada ao número de participantes do ensaio clínico. "No projeto de pesquisa submetido, eles dizem que 200 pacientes fariam parte dos testes, mas no artigo afirmam que foram quase 700. Essa é outra coisa que eles terão de esclarecer", diz Venancio. Durante o estudo, foram registradas duas mortes em pacientes que faziam parte do grupo que tomou a hidroxicloroquina: um por câncer metastático e outro por enfarte. O cardiologista Rodrigo Esper, líder da pesquisa, afirmou ao Estado na sexta-feira que os dois óbitos foram por condições de saúde preexistentes e não estão associados ao uso do remédio, mas Venancio esclareceu que toda morte ocorrida dentro de um protocolo de pesquisa precisa ser informada e investigada pelos órgãos regulatórios.
A hidroxicloroquina tem como um de seus possíveis efeitos colaterais problemas cardíacos. A possibilidade de uma doença do coração ser agravada pelo uso do remédio não pode ser descartada portanto.
Venancio diz que, se comprovadas as irregularidades, o órgão enviará o caso ao Ministério Público, que poderá abrir investigação contra a Prevent por colocar a saúde de pacientes em risco em protocolo de pesquisa não aprovado por comitê de ética. "No mundo inteiro há um sistema de regulação ética cuja função é proteger quem participa de pesquisas clínicas. Quando uma pessoa é chamada para participar de uma pesquisa, pode estar em situação de desespero por causa da doença e a última coisa que vai se preocupar é com os direitos dela. Justamente por isso que os comitês de ética existem: para evitar abusos que já aconteceram."
A Conep é uma comissão do Conselho Nacional de Saúde (CNS) criada em 1996, com a função de "implementar normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas" envolvendo humanos, que devem ser aprovadas pelo conselho. O CNS é uma instância colegiada, deliberativa e permanente do SUS.
Procurada nesta segunda-feira, a Prevent Senior deu diferentes versões de justificativa ao longo do dia. Como posicionamento final, afirmou atuar em conformidade com as boas práticas médicas e argumentou que o número do processo na Conep foi incluído erroneamente no artigo.
Na primeira vez em que foi procurada, a empresa disse que "o nosso estudo é um registro de mundo real e não o estudo da Conep que é outra proposta".
Ao ser questionada sobre o fato de que a própria empresa havia colocado o número de aprovação da Conep no artigo divulgado, a operadora mudou a versão, informando que o estudo "utilizará pacientes dentro das datas estipuladas pela Conep". "Só serão incluídos no estudo pacientes que iniciaram o protocolo a partir de 6 de abril. Antes da data, foram solicitados tratamentos compassivos por pacientes e seus familiares."
Mais uma vez, a empresa foi questionada: o uso compassivo só é recomendado para pacientes em estado grave, sem opção terapêutica, o que não era o caso dos participantes da pesquisa. Para esse questionamento, a empresa afirmou que "na vigência de uma pandemia, o procedimento é totalmente justificável e protetivo ao paciente".
Mais tarde, ao ser informada pela reportagem de que a Conep havia determinado a suspensão da pesquisa, a empresa mudou novamente a versão e disse que o manuscrito do artigo, amplamente divulgado por sua assessoria de imprensa, "foi disseminado de maneira não autorizada". "Este manuscrito traz um levantamento clínico de dados de 26 de março a 6 de abril. Nele, foram relatados casos que não fazem parte da pesquisa aprovada. Sobre a aprovação no dia 14, este estudo será iniciado de forma prospectiva."
Horas depois, a empresa emitiu nova nota na qual afirma atuar "em conformidade com as boas práticas médicas" e se submeter "rigorosamente às normas estipuladas pelas autoridades de saúde". Segundo a empresa, o manuscrito disseminado na sexta-feira atribui, incorretamente, um número de protocolo na Conep. "Os dados sobre pacientes contidos no documento não se referem, portanto, à pesquisa autorizada pela comissão do Ministério da Saúde. Trata-se de números reais de atendimento, mas não vinculados ao protocolo clínico relativo ao número da Conep. Todos os esclarecimentos serão prestados à Conep e permitirão possíveis ajustes." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.