Policiais corruptos escapam de cerco ao jogo do bicho
Operação Dedo de Deus capturou 37 acusados, entre eles ex-prefeito de Teresópolis, Mário Tricano. Ponto fraco da investigação ainda é o baixo número de policiais corruptos entre os alvos
Da Redação
Publicado em 15 de dezembro de 2011 às 19h42.
São Paulo - A operação policial que tenta capturar 60 envolvidos com o jogo do bicho, deflagrada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público, na manhã desta quinta-feira, teve início no interior do estado do Rio. Foi o apetite de uma das quadrilhas, que tentava coagir comerciantes de Teresópolis para conseguir implantar novos pontos do bicho, o ponto de partida da investigação, que acabou dando nome à ação: Operação Dedo de Deus.
Os alvos principais da ação não são novos. Aniz Abrahão David, o Anísio, da Beija-Flor e Luizinho Drumond, da Imperatriz Leopoldinense, já estiveram presos – assim como uma dúzia de outros chefões e patronos de escolas de samba. O avanço em relação às investigações anteriores é a captura do político Mário Tricano, ex-prefeito da cidade e, segundo a polícia, um dos ‘capos’ do jogo, ocupando a posição de número um em uma das quadrilhas.
A movimentação dos policiais teve momentos de filmes de ação – com o desembarque de agentes na cobertura tríplex de Anísio, na Praia de Copacabana, usando um helicóptero e rapel. Fora os efeitos especiais que garantem repercussão ao trabalho da polícia, a Operação Dedo de Deus padece do mesmo mal de dezenas de investigações anteriores: apesar das suspeitas – ou convicções – sobre a participação de policiais com os bicheiros, é pequeno o número de agentes da lei presos.
Um indício forte da presença de policiais corruptos na quadrilha é o fato de Anísio, Hélio e Luizinho não terem sido encontrados em suas casas na hora da operação. Desde os primórdios do jogo do bicho – um crime surgido no Rio no século 19 – é a conivência de policiais e autoridades, alimentadas pela corrupção, o que garante tranquilidade à exploração do jogo e de todos os crimes correlatos, entre eles homicídios, lavagem de dinheiro, uso de armas e ameaças.
Até o momento, 37 estão presos com mandado de prisão preventiva, sendo dois policiais militares, um policial civil e um guarda municipal. “Se detectarmos a participação de outros agentes, eles responderão na medida certa de suas condutas criminosas”, afirmou a chefe da Policia Civil do Rio, delegada Martha Rocha.
A operação contou com dois helicópteros, um blindado, 630 agentes e 120 delegados. A quantia apreendida já chega a 517 mil reais e jóias cujos valores ainda não foram estimados. A ação começou a ser colocada em prática há 10 dias, de forma a fazer jus aos 24 volumes e 6 mil páginas de inquérito. Às 6h, os policiais deram início ao cumprimento dos mandados de prisão e de busca e apreensão.
Em Teresópolis, o trabalho começou em dezembro de 2010, com a denúncia de comerciantes da cidade à corregedoria de polícia. Eles relataram a coação de bicheiros para a implantação de pontos de aposta no local do comércio.
Junto a essas denúncias, chegou a informação de que policiais davam cobertura à quadrilha e, em vez de impedir a pressão dos contraventores sobre os comerciantes, apoiavam, recebendo dinheiro para isso. “Durante a investigação, apuramos que servidores públicos liberavam material apreendido do jogo do bicho e vazavam operações policiais”, disse Felipe Vala, da corregedoria.
O homem que ficava no topo da hierarquia da quadrilha de Teresópolis era o ex-prefeito da cidade, Mário Tricano. Foi ele o responsável pela montagem de uma célula criminosa de Teresópolis e pela difusão do monopólio do jogo do bicho por outros municípios da região serrana. Segundo Glaudiston Lessa, da corregedoria da Polícia Civil, o ex-prefeito tinha “laços fraternos” com Anísio, presidente de honra da escola de samba Beija-Flor. Os dois tinham, inclusive, patrimônio em conjunto.
Anísio era o “capo” (dono da máfia) de uma célula criminosa no Rio e tinha o domínio do jogo em municípios da Baixada Fluminense, como Nilópolis, Mesquita e Queimados. Tricano atuava na serra, sobretudo em Teresópolis e Petrópolis. Hélio Ribeiro, presidente administrativo da escola de samba Grande Rio, e Iuri Soares, filho do patrono da mesma agremiação, tinham como território a cidade de Duque de Caxias. Já Luizinho Drumond comandava o jogo na área da Leopoldina, na zona portuária do Rio.
A ação das quadrilhas não estava restrita ao estado do Rio. Houve presos na Bahia, Pernambuco e Maranhão. A empresa Projeta Tecnologia & Projetos Ltda, em Salvador, fornecia máquinas para o “bicho eletrônico”. Cada uma era vendida por 1.200 reais. Essa mesma empresa cuidava da assistência técnica dos aparelhos e tinha capilaridade em todo o país. Um de seus funcionários ia constantemente para Duque de Caxias, cidade da escola Grande Rio. Ele chegou a ser convidado para o camarote da escola de samba, segundo detectaram as investigações. Em Recife funcionava um parque gráfico para a fabricação de talonários, que eram vendidos para os bicheiros do Rio de Janeiro.
Anísio, Luizinho e outros chefões do jogo do bicho integram uma linhagem que, até a década de 1980, ocupava o topo do pódio dos chefes de quadrilha, inimigos número 1 da polícia – pelo menos no imaginário da população e na forma como o problema era tratado publicamente. Banqueiros do jogo do bicho personificavam o crime organizado, com áreas sob seu controle, redes de corrupção e eventuais banhos de sangue. Nas duas últimas décadas, no entanto, o crescimento do tráfico de drogas e o surgimento de novas ameaças, como as milícias, tiraram do foco os ‘capos’ do bicho.
A corrupção, que fez os crimes desses grupos parecerem invisíveis para o poder público, acabou fazendo com que a contravenção passasse a ocupar, para a sociedade fluminense, a posição de delito menor, ou menos ofensivo. E, uma vez por ano, pelo menos, figuras como Anísio e seus pares são festejadas na Marquês de Sapucaí – este ano, por exemplo, o patrono da Beija-Flor esteve lado a lado com o cantor Roberto Carlos, homenageado em enredo da escola.
Diferentemente do traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, e de outros tantos criminosos mais temidos, os patronos do bicho e do samba têm endereços conhecidos, transitam pelos endereços badalados do Rio e promovem eventos disputados.
“A operação mostra que o jogo do bicho não pode ser visto como algo inocente”, afirmou Angélica Glioche, promotora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), do Ministério Público. “O jogo tem como base uma quadrilha muito bem estruturada, presente no Rio e em outros estados. Cada vez mais as quadrilhas vêm se modernizando e agora existe o bicho eletrônico”, explica Angélica. Atualmente, o bancário do jogo do bicho pode, através de seu notebook ou iPad, saber o local e o valor das apostas. Essas máquinas online, que inovaram o jogo, alteravam os resultados para não perderem dinheiro.
São Paulo - A operação policial que tenta capturar 60 envolvidos com o jogo do bicho, deflagrada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público, na manhã desta quinta-feira, teve início no interior do estado do Rio. Foi o apetite de uma das quadrilhas, que tentava coagir comerciantes de Teresópolis para conseguir implantar novos pontos do bicho, o ponto de partida da investigação, que acabou dando nome à ação: Operação Dedo de Deus.
Os alvos principais da ação não são novos. Aniz Abrahão David, o Anísio, da Beija-Flor e Luizinho Drumond, da Imperatriz Leopoldinense, já estiveram presos – assim como uma dúzia de outros chefões e patronos de escolas de samba. O avanço em relação às investigações anteriores é a captura do político Mário Tricano, ex-prefeito da cidade e, segundo a polícia, um dos ‘capos’ do jogo, ocupando a posição de número um em uma das quadrilhas.
A movimentação dos policiais teve momentos de filmes de ação – com o desembarque de agentes na cobertura tríplex de Anísio, na Praia de Copacabana, usando um helicóptero e rapel. Fora os efeitos especiais que garantem repercussão ao trabalho da polícia, a Operação Dedo de Deus padece do mesmo mal de dezenas de investigações anteriores: apesar das suspeitas – ou convicções – sobre a participação de policiais com os bicheiros, é pequeno o número de agentes da lei presos.
Um indício forte da presença de policiais corruptos na quadrilha é o fato de Anísio, Hélio e Luizinho não terem sido encontrados em suas casas na hora da operação. Desde os primórdios do jogo do bicho – um crime surgido no Rio no século 19 – é a conivência de policiais e autoridades, alimentadas pela corrupção, o que garante tranquilidade à exploração do jogo e de todos os crimes correlatos, entre eles homicídios, lavagem de dinheiro, uso de armas e ameaças.
Até o momento, 37 estão presos com mandado de prisão preventiva, sendo dois policiais militares, um policial civil e um guarda municipal. “Se detectarmos a participação de outros agentes, eles responderão na medida certa de suas condutas criminosas”, afirmou a chefe da Policia Civil do Rio, delegada Martha Rocha.
A operação contou com dois helicópteros, um blindado, 630 agentes e 120 delegados. A quantia apreendida já chega a 517 mil reais e jóias cujos valores ainda não foram estimados. A ação começou a ser colocada em prática há 10 dias, de forma a fazer jus aos 24 volumes e 6 mil páginas de inquérito. Às 6h, os policiais deram início ao cumprimento dos mandados de prisão e de busca e apreensão.
Em Teresópolis, o trabalho começou em dezembro de 2010, com a denúncia de comerciantes da cidade à corregedoria de polícia. Eles relataram a coação de bicheiros para a implantação de pontos de aposta no local do comércio.
Junto a essas denúncias, chegou a informação de que policiais davam cobertura à quadrilha e, em vez de impedir a pressão dos contraventores sobre os comerciantes, apoiavam, recebendo dinheiro para isso. “Durante a investigação, apuramos que servidores públicos liberavam material apreendido do jogo do bicho e vazavam operações policiais”, disse Felipe Vala, da corregedoria.
O homem que ficava no topo da hierarquia da quadrilha de Teresópolis era o ex-prefeito da cidade, Mário Tricano. Foi ele o responsável pela montagem de uma célula criminosa de Teresópolis e pela difusão do monopólio do jogo do bicho por outros municípios da região serrana. Segundo Glaudiston Lessa, da corregedoria da Polícia Civil, o ex-prefeito tinha “laços fraternos” com Anísio, presidente de honra da escola de samba Beija-Flor. Os dois tinham, inclusive, patrimônio em conjunto.
Anísio era o “capo” (dono da máfia) de uma célula criminosa no Rio e tinha o domínio do jogo em municípios da Baixada Fluminense, como Nilópolis, Mesquita e Queimados. Tricano atuava na serra, sobretudo em Teresópolis e Petrópolis. Hélio Ribeiro, presidente administrativo da escola de samba Grande Rio, e Iuri Soares, filho do patrono da mesma agremiação, tinham como território a cidade de Duque de Caxias. Já Luizinho Drumond comandava o jogo na área da Leopoldina, na zona portuária do Rio.
A ação das quadrilhas não estava restrita ao estado do Rio. Houve presos na Bahia, Pernambuco e Maranhão. A empresa Projeta Tecnologia & Projetos Ltda, em Salvador, fornecia máquinas para o “bicho eletrônico”. Cada uma era vendida por 1.200 reais. Essa mesma empresa cuidava da assistência técnica dos aparelhos e tinha capilaridade em todo o país. Um de seus funcionários ia constantemente para Duque de Caxias, cidade da escola Grande Rio. Ele chegou a ser convidado para o camarote da escola de samba, segundo detectaram as investigações. Em Recife funcionava um parque gráfico para a fabricação de talonários, que eram vendidos para os bicheiros do Rio de Janeiro.
Anísio, Luizinho e outros chefões do jogo do bicho integram uma linhagem que, até a década de 1980, ocupava o topo do pódio dos chefes de quadrilha, inimigos número 1 da polícia – pelo menos no imaginário da população e na forma como o problema era tratado publicamente. Banqueiros do jogo do bicho personificavam o crime organizado, com áreas sob seu controle, redes de corrupção e eventuais banhos de sangue. Nas duas últimas décadas, no entanto, o crescimento do tráfico de drogas e o surgimento de novas ameaças, como as milícias, tiraram do foco os ‘capos’ do bicho.
A corrupção, que fez os crimes desses grupos parecerem invisíveis para o poder público, acabou fazendo com que a contravenção passasse a ocupar, para a sociedade fluminense, a posição de delito menor, ou menos ofensivo. E, uma vez por ano, pelo menos, figuras como Anísio e seus pares são festejadas na Marquês de Sapucaí – este ano, por exemplo, o patrono da Beija-Flor esteve lado a lado com o cantor Roberto Carlos, homenageado em enredo da escola.
Diferentemente do traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, e de outros tantos criminosos mais temidos, os patronos do bicho e do samba têm endereços conhecidos, transitam pelos endereços badalados do Rio e promovem eventos disputados.
“A operação mostra que o jogo do bicho não pode ser visto como algo inocente”, afirmou Angélica Glioche, promotora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), do Ministério Público. “O jogo tem como base uma quadrilha muito bem estruturada, presente no Rio e em outros estados. Cada vez mais as quadrilhas vêm se modernizando e agora existe o bicho eletrônico”, explica Angélica. Atualmente, o bancário do jogo do bicho pode, através de seu notebook ou iPad, saber o local e o valor das apostas. Essas máquinas online, que inovaram o jogo, alteravam os resultados para não perderem dinheiro.