Vista da Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF) 21/04/2020 REUTERS/Ueslei Marcelino (Ueslei Marcelino/Reuters)
Da Redação
Publicado em 27 de dezembro de 2021 às 07h00.
Última atualização em 2 de maio de 2022 às 18h45.
O espectro de países sérios passa por um tango saudável entre centro-esquerda e centro-direita. As melhores democracias do mundo costumam ver suas forças políticas dançando em torno desse centro imaginário da pista. Existe muita margem para ajuste de políticas econômico-sociais priorizando entre diferentes objetivos de cada sociedade. Deve-se cobrar mais impostos, achatando a curva de renda, reduzindo a desigualdade econômica e financiando uma maior oferta de serviços sociais? Ou deve-se ter uma participação mais relaxada do Estado, com oferta mais enxuta de bons serviços, com menor intervenção na vida econômica e dando mais liberdade a cada cidadão produzir e gastar como desejar?
Ambos os impulsos atendem a diferentes temperamentos ideológicos e trazem resultados distintos. Aumente-se a carga tributária e o país terá mais recursos para gastos públicos. Por outro lado, a partir de um certo ponto isso influencia na eficiência econômica, pode impactar na geração de empregos e abrir mais brechas para a corrupção. Por outro lado, quando as taxas de impostos são reduzidas e a economia se torna altamente dependente do setor privado, existe a possibilidade de aumento da concentração de renda, favorecendo a formação de oligopólios, bem como a sensação de alienação do trabalhador comum. Ambos os arranjos são sérios, desde que fiquem longe do extremismo. Cobrar mais imposto e entregar mais serviços ou entregar menos serviços cobrando menos impostos são duas direções possíveis para os países navegarem.
E então, eis que surge o Brasil. Ah, o Brasil. Somos aquele raro animal que congrega o pior dos dois mundos. Cobramos impostos estratosféricos e entregamos quase nada em troca. Somos aquele mau negócio em que você sai se sentindo enganado e explorado. Temos um sistema em que quem produz riqueza é demonizado e esmagado por uma carga tributária gigantesca, cobrada através de regras de impostos que só poderiam ter sido criadas em um hospício. Para complicar ainda mais, temos um sistema perverso onde a máquina pública não existe para atender os cidadãos - mas sim aos interesses da própria máquina.
O Estado brasileiro é uma espécie de Robin Hood às avessas, um verdadeiro moedor de pobres. Mesmo após quase duas décadas governado por políticos de centro-esquerda, que em teoria deveriam privilegiar as camadas menos favorecidas, o Estado na realidade atua para aumentar ainda mais a desigualdade no país. O Brasil é um caso raro onde o Estado tira dos pobres para dar aos ricos. Isso ocorre nas duas pontas de atuação do Estado brasileiro: tanto na arrecadação quanto no gasto. Nós conseguimos a façanha de cobrar mais dos pobres e gastar mais com os ricos! Como isso é possível?
Primeiro, os impostos. Na maioria dos países sérios, o grosso da arrecadação é cobrada sobre a renda dos cidadãos. Quem ganha mais, paga mais. No nosso caso, a principal fonte de tributos do governo é o consumo. Sabemos que quanto mais pobre for uma família, mais ela comprometerá seu orçamento com consumo.
Compare, por exemplo, uma empregada doméstica que ganha R$ 2 mil por mês com um advogado que ganha R$ 200 mil. Ambos precisam comprar uma geladeira, um produto com cerca de R$ 700 de impostos escondidos no preço. O imposto será igual para os dois. Mas para quem pesará mais esses R$ 700? E mesmo dentro do consumo há injustiças, já que a tributação é muito mais alta em produtos (comida, remédio, eletrodomésticos) do que em serviços (restaurante, hotel, cursos) e sabemos que a cesta de consumo dos pobres é mais dependente de produtos do que de serviços.
Ou seja, mais um exemplo de pobre comprometendo com impostos um percentual muito maior da renda do que rico. Outro aspecto é que muitas pessoas de classe alta podem viajar ao exterior e lá ter acesso a produtos com carga tributária mais baixa. Ricos compram em Miami caixas de som de última geração pela metade do preço pago pelo mesmo modelo por pobres no Brasil.
Somente a classe E, a parcela mais pobre da população brasileira, paga mais de R$ 90 bilhões em impostos sobre o consumo todos os anos. Isso representa três vezes o orçamento do Bolsa Família. De R$ 33 bilhões em 2020. Ou seja, para cada real que pinga nas mãos das pessoas mais humildes do país em forma de bolsa família, o governo já arrancou três reais dessas mesmas pessoas na forma de impostos escondidos nos produtos que elas precisam para sobreviver. É um silencioso estupro diário dos mais frágeis, encoberto por uma cortina de hipocrisia no discurso público.
E para onde vai o todo esse dinheiro arrecadado com os impostos? Boa parte vai para o pagamento de juros da dívida pública, que na média histórica estão entre os mais altos do mundo. Quem recebe esse dinheiro? Por acaso pobre tem sobra de caixa para emprestar ao governo? Sabemos que não. Quem se beneficia são os rentistas e os investidores, como o advogado do exemplo acima. O gasto do governo brasileiro com juros já chegou a bater 9% do PIB durante o governo de Dilma Rousseff, mais do que todo o gasto com saúde e educação combinados. É o dinheiro dos pobres sendo transferido diretamente para os mais ricos.
Outro fardo do Estado brasileiro é o funcionalismo público. Em 2019, governo federal, estados e municípios e seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário gastaram nada menos do que R$ 920 bilhões com pessoal. Para se ter uma ideia do que isso significa, o orçamento da Saúde no mesmo ano foi de R$ 127 bilhões, enquanto o investimento em educação foi de R$ 118 bilhões. Em 2020, o custo público para sustentar a folha de pagamentos do funcionalismo caiu apenas 0,1%, algo irrisório diante da importância de se diminuir o peso do Estado.
De acordo com um levantamento da FGV Social com base nas declarações do Imposto de Renda da Pessoa Física de 2019, entre as dez atividades mais bem remuneradas no Brasil, sete estão no setor público. Membros do Poder Judiciário, como ministros, desembargadores, juízes e procuradores, além de diplomatas, todos com salários entre R$ 30,9 mil e R$ 53,5 mil, só ganham menos do que donos de cartórios - outra jabuticaba brasileira.
Essa elite do funcionalismo, que já ganha em média 80% acima dos seus colegas da iniciativa privada, ainda conta com estabilidade e aposentadoria integral. Isso mesmo. Enquanto os mortais ganham no máximo o teto do INSS, hoje em R$ 6.100, os funcionários públicos têm um teto de R$ 28 mil, sem contar os penduricalhos. Não é raro o pagamento de aposentadorias próximas dos R$ 100 mil. Somente as pensões públicas geram um prejuízo estimado em R$ 30 bilhões por ano. Tudo isso financiado, como vimos, por impostos pagos pelos mais pobres.
Mas a aberração não para por aí. O governo brasileiro ainda paga pensões a mais de 52 mil filhas solteiras - ao menos oficialmente - de ex-servidores. São mais de R$ 30 milhões por ano apenas para filhas de ex-parlamentares. Isso sem contar as pensões pagas às filhas de militares, de desembargadores... Essa lei felizmente já foi extinta, mas devido às interpretações extremas do conceito de “direito adquirido” seguirão sendo pagas por algumas décadas ainda.
Você sabe onde trabalham - ou trabalharam - a maioria dos ricos no Brasil? Seriam eles empresários? Executivos? “Capitalistas selvagens”? Não! Nada menos do que 67,8% dos servidores públicos federais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), estavam entre os 10% mais ricos da população em 2017 (último dado disponibilizado até final de 2020). Essa Classe A brasileira, além dos servidores do governo na ativa, é composta por aposentados e pensionistas. E que fique claro: essa não é uma crítica ao funcionalismo em geral, mas sim às regras escandalosas para a remuneração de uma elite.
Esses exemplos acima são apenas uma fração de todas as distorções e benefícios obtidos por grupos de interesse existentes no Brasil. Em resumo, nosso Estado usa o dinheiro dos pobres para alimentar um castelo de privilégios e boquinhas, das quais grupinhos organizados, geralmente de pessoas bem de vida, se aproveitam para extrair alguma renda ou benefício próprio.
Enquanto isso, alunos das nossas escolas públicas estudam em instalações precárias, com material insuficiente, enfrentando altos índices de faltas de professores e tirando notas de matemática, ciências e leitura que estão entre as piores do mundo. Hospitais e clínicas apodrecem sem dinheiro e com pessoal insuficiente, enquanto filas de doentes esperam do lado de fora, alguns morrendo e outros voltando para casa sem atendimento. Aposentados da iniciativa privada recebem uma pensão que não cobre os custos básicos de alimentação, enquanto alguns juízes aposentados recebem o triplo do salário do presidente da república para ficarem em casa.
Nas ruas, a população sobrevive apavorada 24 horas por dia porque os bandidos contam com a impunidade que reina no país e com a falta de recursos para a polícia. A quantidade de assassinatos anuais deixam pálidos os números da maioria das guerras mundo afora. Isso sem contar as estradas em frangalhos, que matam mais de 40 mil pessoas por ano, a Justiça que leva uma década para julgar uma disputa comercial... Enfim, serviços públicos que não fazem jus a esse nome.
Na outra ponta dessa equação está um dos leões tributários mais vorazes do planeta. Um governo que devora boa parte da riqueza do país e que torna cada brasileiro produtivo escravo do sistema, na maioria das vezes inconscientemente. Esses recursos todos são cobrados por meio de dezenas de tipos de impostos, taxas e contribuições. As regras mudam tão rápido e a cobrança é tão complicada que ninguém sabe realmente se está agindo de acordo com a lei ou não. O que quer que a pessoa faça, ela sempre estará infringindo alguma minúcia da extensa e contraditória legislação, abrindo espaço para os vendedores de facilidades.
Uma montanha de dinheiro é saqueada todos os anos das empresas e dos trabalhadores e, após trafegar pelas esquinas da corrupção, dos privilégios e do desperdício, transforma-se em... absolutamente nada. Os desvios são tão grandes que, apesar de o Estado se apropriar de tanta riqueza e não entregar quase nada em troca, a dívida continua crescendo - ou seja, o problema só tende a se acentuar.
Impactadas por impostos pesados, juros estratosféricos e regras que mudam do dia para a noite, as empresas brasileiras não têm outra alternativa a não ser repassar esses custos, o que torna os produtos e serviços muito mais caros. Comparativamente, uma pessoa comum que trabalha com carteira assinada, entrega mais de um terço do seu salário diretamente ao governo sob a forma de impostos diretos. Outro terço vai embora em forma de impostos sobre os produtos que ele compra, seja arroz e feijão ou uma televisão. O restante ele gasta com serviços privados - os mesmos que o governo deveria entregar gratuitamente a ele em troca dos dois terços do seu dinheiro que foram previamente saqueados. É esse o Brasil dos seus sonhos?
*Alexandre Ostrowiecki é CEO da empresa varejista Multilaser e autor de "O Moedor de Pobres: Nada Atrapalha Tanto a Sua Vida Quanto o Sistema". LVM Editora; 1ª edição (28 outubro 2021), 336 páginas.