Relatório do ano passado alertava que instalações eram um 'campo minado' (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Agência O Globo
Publicado em 28 de outubro de 2020 às 09h13.
Última atualização em 28 de outubro de 2020 às 10h04.
Quando uma espessa nuvem de fumaça negra começou a sair do subsolo do prédio 1 do Hospital Federal de Bonsucesso (HFB), por volta das nove e meia da manhã desta terça-feira, o que era um intenso vaivém de funcionários, prestadores de serviços, pacientes e acompanhantes se transformou numa desesperada correria de milhares.
Naquela que é uma das maiores unidades públicas de saúde do Estado do Rio, teve início um trabalho de esvaziamento do edifício com incontáveis cenas de improviso: doentes acamados eram levados para o galpão de uma loja de pneus, enfermeiros enrolavam em lençóis e carregavam nos braços aqueles que não podiam esperar a remoção de seus leitos, parentes de pessoas internadas ajudavam a pegar os equipamentos médicos que elas tanto precisavam.
Três morreram. Duas estavam com Covid-19, e, no fim do dia, suas famílias ainda não conseguiam acreditar que a luta contra a doença seria interrompida de forma tão trágica e castigada pelo descaso. Um homem, de 39 anos, que também em estado delicado de saúde, estava internado no CTI, também teve a morte confirmada no fim do dia.
Durante toda a noite, entre esta terça e esta quarta-feira, profissionais trabalharam para transferir pacientes. Entre eles, chamavam atenção bebês e crianças da UTI neonatal do Hospital Federal de Bonsucesso.
Não se pode dizer que a tragédia foi uma surpresa. O hospital não tinha certificado de funcionamento do Corpo de Bombeiros. Um levantamento da Associação Contas Abertas mostra que os gastos da unidade caíram 40% desde 2010, passando de R$ 218 milhões para R$ 131 milhões por ano. E não faltaram alertas sobre suas más condições estruturais.
Ao fim de uma vistoria realizada em 2019, por exemplo, técnicos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) apontaram falhas graves no sistema de prevenção a incêndio e “alto risco de explosão”, por conta do superaquecimento de dois transformadores.
No mesmo subsolo onde as chamas surgiram, eles descreveram, em um relatório com fotos, vários problemas no sistema elétrico. Registraram ainda que hidrantes estavam desativados e com mangueiras danificadas.
No início da pandemia, o hospital chegou a ser anunciado como unidade federal de referência no tratamento de pacientes com Covid-19 no Rio. Um de seus blocos foi adaptado para receber os infectados que precisassem de internação. Seriam de 150 a 200 leitos.
O plano, no entanto, não foi adiante, por falta de pessoal. Por meio de uma nota, o Ministério da Saúde afirmou que o HFB conta com diversos projetos, alguns em andamento, “para uma série de reformas de urgência”.
O órgão lamentou as mortes e destacou que apenas o trabalho de peritos poderá identificar a causa do incêndio — a investigação está a cargo da Polícia Federal. Além disso, a pasta prometeu tomar “as devidas providências para garantir a segurança de todos funcionários e pacientes” e assegurou que “não serão medidos esforços para apoiar o hospital e retomar as atividades o mais breve possível”.
Alheios aos argumentos oficiais, funcionários e parentes de pacientes manifestaram revolta no local e nas redes sociais. Presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro, Mônica Armada disse que o Hospital Federal de Bonsucesso foi atingido por “um incêndio anunciado”. Pelo Instagram, um internauta postou uma foto da nuvem de fumaça e escreveu: “Hoje meu coração queimou. Queimou de medo, pois a pessoa mais importante da minha estava lá. De tristeza, pelo lugar que um dia foi a minha casa. Queimou de preocupação com os pacientes e queimou de raiva pelo descaso público um patrimônio federal”.
A revolta de uma mãe que, em meio ao caos, buscava notícias da filha, internada no hospital, só passou quando ela viu a jovem por uma janela. Estava de pé, aparentemente bem. Uma aparição de poucos segundos que provocou uma explosão de alívio e lágrimas. Drama semelhante foi enfrentado pelas famílias que tentavam enxergar seus entes entre os 199 pacientes transferidos para outros hospitais. Duas delas não encontrarão mais as pessoas que procuravam.
Núbia Rodrigues, de 42 anos, era radiologista e tinha sido internada há poucos dias. Não resistiu à transferência, num lençol improvisado como maca, para o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari. Uma mulher de 83 anos, cujo nome não foi divulgado até o fim da noite, também faleceu. Por volta das 22h, chegou a notícia de que uma terceira vítima havia sido confirmada. O homem, de 39 anos, que já estava em estado muito delicado, havia sido levado para o prédio 2 do HFB, e necessitava de cuidados de CTI. Não resistiu ao deslocamento.
Após ser acionado, o Corpo de Bombeiros levou aproximadamente 15 minutos para começar a combater o fogo. A corporação mobilizou 12 quartéis. O comandante, coronel Leandro Sampaio Monteiro, que também é secretário de Defesa Civil, confirmou que o Hospital Federal de Bonsucesso não tem certificado para funcionar e que recebeu duas multas por falta de condições de segurança. Constrangido ao ser indagado sobre os problemas, ele disse que “se houve um incêndio, alguma coisa estava errada”.
Servidores e pacientes do Hospital Federal de Bonsucesso circulavam por um campo minado não era de hoje. Uma vistoria feita há um ano e meio constatou que havia “risco de curto-circuito, incêndio e inoperância do sistema elétrico” no subsolo da unidade, onde o fogo teria começado nesta terça. E o problema foi detectado por um órgão ligado ao próprio Ministério da Saúde, que administra da unidade.
É um incêndio anunciado, reflexo da precariedade de prédios públicos, que têm fiações elétricas muito antigas. Há um descaso do governo contra esse hospital de alta complexidade — afirmou a presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio, Mônica Armada.
Na inspeção, técnicos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) também identificaram que havia superaquecimento em dois transformadores da subestação principal do hospital. Um deles chegou a atingir 148,6 graus e outro, 128,6 graus. Foram verificadas ainda infiltrações, o que, segundo o relatório, poderia comprometer inclusive a estrutura do edifício.
A inspeção mostrou que a falta de cuidado era generalizada. Havia hidrantes desativados com mangueiras danificadas e sem condições de uso. Cabos estavam expostos, e equipamentos, obsoletos e em desacordo com normas técnicas. Os peritos também não encontraram sistemas de detecção de fumaça e sprinklers. Por isso, o hospital não tinha licença do Corpo de Bombeiros. Quase dois anos depois, o Bonsucesso continua sem certificação do órgão.
O secretário estadual de Defesa Civil, e comandante-geral do Corpo de Bombeiros, coronel Leandro Sampaio Monteiro, disse que o código de segurança contra incêndio é da década de 1970:
— É difícil um prédio antigo se adequar. O Bonsucesso não estava adequado.
Para Chrystina Barros, pesquisadora do Centro de Estudos em Gestão de Serviços de Saúde da UFRJ, o incêndio no Bonsucesso remete a um histórico de falta de investimentos nas unidades de saúde que precisa ser alvo de investigação.
— Infelizmente, pelo histórico do nosso país, faltam fiscalização ativa e investimentos nas unidades. Mas tudo tem que ser apurado com muita calma, porque é comum que, nesses momentos, a gente responsabilize o gestor local, que fica na ponta. Mas, principalmente numa estrutura pública, sabemos o quanto de burocracia existe para que ele consiga fazer o gerenciamento de maneira adequada — ressaltou.
Na época em que o relatório do Proadi foi divulgado, a direção do hospital afirmou em nota que tinha brigada de incêndio e que todas as medidas estavam sendo tomadas para garantir “assistência segura a todos os pacientes”. Já o Ministério da Saúde anunciou que se reuniria com o Corpo de Bombeiros para iniciar a regularização e a legalização do hospital.
“Tá tudo muito escuro, quente e com muita fumaça. Precisamos usar máscara, e não dá para ver um palmo à frente”. A frase foi a forma que um dos bombeiros que entraram no Hospital Federal de Bonsucesso para salvar vidas achou para explicar por que foi uma sorte o fogo ter começado no subsolo, onde não havia pacientes.
Assim ele resumiu a batalha para apagar um incêndio que não deveria ter acontecido, mas aconteceu por absoluto descaso público. E o desfecho só não foi pior por um capricho do destino e pelo trabalho em equipe. Foram mais de 12 horas de combate às chamas dentro de um cofre de fumaça, sem janelas, num prédio que já tinha tido a parte elétrica condenada em relatórios técnicos.
Com o histórico de problemas estruturais da construção, restou aos bombeiros, médicos, enfermeiros, maqueiros e voluntários de toda a sorte fazerem das tripas coração, com risco pessoal, para retirar o maior número de pacientes possível enquanto a fuligem preta se alastrava por canos, ameaçando tomar o prédio. Grandes cogumelos de fuligem eram vistos no céu, na confluência da Avenida Brasil e das linhas Vermelha e Amarela.
Sem imaginar que aquele dia mudaria a história de seu pequeno negócio, o português José Paiva, de 72 anos, dono da autopeças Rio Paiva, teve papel fundamental no socorro às vítimas. E tudo aconteceu de forma banal, quando ele, sem pensar duas vezes, mandou uma funcionária do hospital, desesperada, entrar na loja. Acabou retirando vários carros para dar lugar a macas.
— Uma moça, aflita, pediu ajuda. Eu mandei que entrassem. Eram umas 40 macas aqui. Só me lembro do desespero de todos. Tinha parentes chorando e correria de enfermeiros — conta.
Do primeiro atendimento ali, na autopeças, os doentes, alguns retirados até da UTI, eram levados em ambulâncias para outras unidades de saúde do estado e do município. Técnica em radiologia, que começou a apresentar sinais de infecção pelo coronavírus na quarta-feira da semana passada, Núbia Rodrigues, de 42 anos, em estado gravíssimo, também foi retirada às pressas.
Ela iria para o Hospital Ronaldo Gazzola, em Acari, referência no tratamento da doença. Vontade e agilidade foram fundamentais para retirá-la de Bonsucesso, como aconteceu com outros pacientes. Pelo menos dez pessoas tiveram que segurar nas pontas do tecido para o improviso dar certo. Mas tamanha garra não permitiu que ela chegasse a tempo ao Ronaldo Gazzola.
Núbia, que antes de ser vítima da pandemia estava no front, atendendo a população, morreu na ambulância. Com 75% dos pulmões comprometidos, ela já tinha passado pelas UPAs da Penha e de Mesquita. O filho dela, Patrick Machado, que soube da morte por telefone, era acompanhado por uma mulher que desmaiou na porta do hospital em meio ao vaivém de ambulâncias e pessoas em busca de informação. Ele falou pouco, de forma aparentemente resignada:
— Infelizmente, ela não resistiu.
Outra paciente com coronavírus, de 83 anos, que estava intubada, também não resistiu. Com sepse, ela morreu na UTI da maternidade, dentro do próprio hospital, para onde foi levada. Houve ainda uma terceira morte à noite.
— O Badim (hospital da Tijuca atingido por um incêndio em 2019) foi pior porque o fogo pegou onde os pacientes estavam internados — avaliava um bombeiro, entre os muitos que escalavam a fachada da construção para jogar água e esfriar as dependências mais afetadas.
Diretor do corpo clínico do Hospital Federal de Bonsucesso, o médico Júlio Noronha voltava ao trabalho presencial ontem, depois de meses afastado por ser de grupo de risco. Ele elogiou a ação rápida dos colegas:
— A fumaça subiu muito rapidamente através do duto de ar-condicionado. Apesar do caos, os profissionais correram, improvisaram camas com lençóis e retiraram todos.
O professor de história e estudante de medicina Fábio Lessa acompanhava a mãe de 62 anos, e a avó, de 92, que trata um câncer. Ainda sem saber como sair do prédio em chamas, Fábio relatou os momentos de medo.
— Ela (a avó) tem câncer e não consegue andar. Qualquer coisa, eu a agarro e desço. Só que se eu descer com ela no colo posso machucar sua coluna — disse.
Fábio, a mãe e a avó saíram em segurança.