O que está em jogo no debate sobre as prisões da Lava Jato no STF
Um advogado que já defendeu investigados na Lava Jato e a coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção do MPF debatem decisão do STF de soltar José Dirceu
Talita Abrantes
Publicado em 8 de maio de 2017 às 13h09.
Última atualização em 8 de maio de 2017 às 19h45.
São Paulo – Sete dias, três prisões revogadas. A série de decisões da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal ( STF ) nas duas últimas semanas acendeu um sinal de alerta na força-tarefa da Operação Lava Jato .
O temor é que outros investigados, que cumprem prisão preventiva e estariam inclinados a fechar um acordo de delação premiada, vejam na tendência de voto dos ministros uma brecha para escapar de uma das principais estratégias da Lava Jato.
A verdade é que não é de hoje que os ministros do Supremo tomam uma decisão nesses termos. Segundo levantamento da revista Veja desta semana, em cerca de 60% dos pedidos de habeas corpus de investigados pela Lava Jato, os membros da mais alta corte do país decidiram pela soltura dos suspeitos.
O último deles foi em favor do ex-ministro José Dirceu (Casa Civil/Governo Lula).
Os ministros da Segunda Turma do STF consideraram que a manutenção da prisão preventiva de Dirceu, sem uma condenação em segunda instância, seria uma ilegal antecipação do cumprimento de pena -- em coerência com entendimento de fevereiro do ano passado do Supremo que a execução de uma pena deve ocorrer apenas após a conclusão de um julgamento em segunda instância.
EXAME.com conversou com dois juristas com diferentes visões para entender o que está em jogo na decisão do STF:
A FAVOR DA DECISÃO DE SOLTAR PRESOS DA LAVA JATO
Quem fala: ALBERTO TORON, professor de direito processual penal da Faap. Foi advogado de Ricardo Pessoa, ex-presidente da UTC, e autor do habeas corpus que tirou o executivo da cadeia em 2015.
EXAME.com: O senhor concorda com a tese da segunda turma do STF de que manter a prisão preventiva de réus da Lava Jato é uma antecipação da pena?
Não apenas concordo, como falei isso no pedido de habeas corpus que culminou na soltura dos empresários Ricardo Pessoa e Leo Pinheiro em abril de 2015. Naquela oportunidade, embora com outra composição, a Segunda Turma já havia reconhecido isso. E pior: repeliu a possibilidade de a prisão ser utilizada como um meio de forçar a obtenção de delação premiada. O ministro Teori Zavascki dizia que isso era uma forma mediavalesca de se proceder.
As prisões da Lava Jato infundiram na consciência da população a ideia de que estava se punindo os "ladrões". Tanto isso é verdade que, quando eles são soltos, as pessoas dizem: "essa gente não vai pagar?", como se a soltura do José Dirceu fosse sinônimo de impunidade. Não é. A soltura quer dizer que ele só tem que ser preso após a decisão do Tribunal Regional Federal. Só isso. Nada mais.
Qual é a diferença entre a decisão do STF sobre o goleiro Bruno, que voltou para a prisão, e o caso de José Dirceu?
Não conheço o caso do goleiro Bruno senão pela imprensa. A primeira diferença é que eles caíram em turmas diferentes [no STF]. Existe uma espécie de loteria judiciária. Com exceção do ministro Marco Aurélio, a Primeira Turma é mais dura, que concorda mais com as prisões. A Segunda, menos.
Tem uma outra diferença significativa: o goleiro Bruno foi julgado pelo júri, que já é um órgão colegiado. Por ser um órgão colegiado, a apelação da decisão tem espectro menor. Só se anula uma decisão do júri quando ela for arbitrária. Já quando se trata de uma decisão emanada de um juiz singular, como o Sérgio Moro, por exemplo, o tribunal faz um novo julgamento.
O fato dos crimes de corrupção serem considerados graves não justifica a prisão preventiva?
A gravidade do crime por si só não autoriza a prisão de alguém. É preciso que, além da gravidade, estejam presentes os requisitos da prisão preventiva. Posso ser acusado de um crime gravíssimo como estupro e ser inocente. Posso ser acusado de um crime gravíssimo como homicídio qualificado e ser inocente. A mesma coisa vale para a corrupção.
Eu não presumo a culpa das pessoas. O fato do crime ser grave por si só não autoriza automaticamente a prisão de alguém. Isso já existiu no Brasil no Tribunal de Segurança Nacional e no Código do Processo Penal de 1941 que, pasme você, nesse particular, foi revogado em 1967 em plena Ditadura Militar. Não dá para incluir na democracia uma regra fascista.
Acabar com a prisão preventiva coloca em risco a Lava Jato?
É uma bobagem. A Lava Jato continua firme e forte. Lembre-se que o Mensalão todo foi feito sem qualquer prisão preventiva e redundou em muitas condenações. A ideia de que a Lava Jato só existe com prisão preventiva é a maior expressão de um abuso no emprego das prisões preventivas. A Lava Jato vai continuar existindo, é uma operação importantíssima, ela expôs para a nação as vísceras de um sistema podre de relação promíscua entre empreiteiras e o poder público. Quando se soltaram os empresários em abril de 2015 se disse a mesma coisa e eu pergunto para você: de 2015 para cá, a Lava Jato acabou? E nem vai acabar agora.
CONTRA A DECISÃO DE SOLTAR PRESOS DA LAVA JATO
Quem fala: THAMÉA DANELON , procuradora da República e Coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção na Ministério Público Federal
EXAME.com: A senhora concorda com a tese da Segunda Turma do STF de que manter a prisão preventiva de réus da Lava Jato é uma antecipação da pena?
Thaméa Danelon: Não. A prisão preventiva, como o próprio nome diz, é para prevenir algo, proteger alguma coisa: ou o processo, ou a investigação, ou a própria sociedade. Quando o investigado está ameaçando uma vítima ou a testemunha, se há indícios de que o réu pode fugir e, portanto, impedir o cumprimento da lei.
Os casos de corrupção são crimes gravíssimos, que se equiparam ao crime de homicídio, pois se desviaram milhões de valores que resultaram em efeitos sociais. Por conta da gravidade desses atos, quem as cometeu tem que ser segregado da sociedade. Nada justifica a soltura de uma pessoa que tenha um grau de importância em uma organização criminosa, que praticou crimes de corrupção gravíssimos.
Não é justo que se espere três, quatro degraus de julgamento — o que geralmente ocorre após 15, 20 anos — para que se cumpra a pena.
Mas como fica a presunção de inocência, se durante todo o período do processo, o réu fica em regime fechado?
A presunção de inocência significa o seguinte: eventual indenização contra esse réu não pode ocorrer enquanto não houver um trânsito em julgado [quando se esgotam todas possibilidades de recurso]. Agora, a presunção de inocência não pode se confundir com autorização para impunidade. Não é por que o réu está preso preventivamente que ele é culpado, mas também não significa que ele é inocente. Se ele fosse inocente, ele não seria preso preventivamente. Se por um lado o réu tem direito de presumir-se inocente, por outro lado, a sociedade tem o direito de que haja um combate efetivo à criminalidade.
Existem outras medidas cautelares, como o uso da tornozeleira eletrônica, para além da prisão preventiva. Essas outras medidas já não cumprem esse papel para os casos de corrupção?
Depende do caso. Muita gente não consegue ver a consequência dos crimes do colarinho branco. Uma coisa é o homicídio: o goleiro Bruno matou, tem a vítima. É um crime gravíssimo. Agora, com um ato de corrupção, você não consegue ver de imediato o prejuízo. Mas a gente tem que associar. Veja a situação caótica que está o Rio de Janeiro. Culpa da corrupção.
O grande criminoso de colarinho branco — no qual, no meu ponto de vista, o condenado José Dirceu se encaixa — é muito mais perigoso do que um estuprador. Mesmo preso, ele continuou recebendo propina. Pessoas desse nível tem que ser afastadas da sociedade.
Eu defendo a prisão e asfixia econômica desses altos criminosos em que o estilo de vida é a prática de corrupção, que lesa diretamente aqueles que mais precisam do poder estatal. A classe média paga a corrupção com o dinheiro. Não tem uma saúde pública adequada? Paga-se plano saúde. Agora, e o pobre? Ele morre. Ele paga com a vida.
Uma das principais críticas ao uso da prisão preventiva é de que seria um instrumento para forçar a delação premiada. Isso é verdade?
Não, não é verdade. Mais de 70% dos réus que colaboraram estavam em liberdade e, em 100% dos casos, eles que procuraram o Ministério Público querendo fazer delação. A colaboração é um instrumento de extrema importância nos crimes de colarinho branco. A corrupção é um crime cometido entre quatro paredes, às escuras, tem o pacto de silêncio. É muito importante que a pessoa fale, que traga provas e indique caminhos de prova. Senão, fica muito difícil investigar. E a criminalidade vai continuar ganhando.
Se prevalecer a tese aprovada pela maioria da Segunda Turma de que a prisão preventiva antecipa a pena e, portanto, deve ser revogada, quais seriam os efeitos para a Lava Jato?
São terríveis. As pessoas colaboram com medo de ficarem muito tempo na cadeia. Tudo isso começou com o Mensalão, em que os empresários como o Marcos Valério foram condenados a penas altíssimas. Ninguém quer ser o Marcos Valério. Vendo que o sistema funciona, para diminuir a pena, eles vão falar.
Eu não acredito que isso vai acontecer por que essa é uma decisão muito peculiar desses três ministros (Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Toffoli) - que tem muitas semelhanças entre si. Sempre quando são poderosos, eles soltam. Mas se isso acontecer, vai colocar a operação em risco, por que, sabendo que poderão ser soltos, eles vão deixar de colaborar.