INCENTIVO: Funkeiro MC Guimê recebeu mais de 500.000 reais para lançar DVD / Reprodução/YouTube
Da Redação
Publicado em 9 de junho de 2016 às 12h39.
Última atualização em 27 de dezembro de 2018 às 20h44.
No Mito de Sísifo, principal ensaio de Albert Camus sobre o absurdo, ele afirma que sem cultura – e sem a liberdade que ela pressupõe –, a sociedade não passa de uma selva e que as criações culturais são um presente para o futuro das sociedades. Nas últimas semanas, entre outros tantos temas de última hora, a cultura voltou a ser uma prioridades nos debates sobre o Brasil que queremos ser. A comunidade artística se mobilizou contra o fim do Ministério da Cultura, e conseguiu fazer com que o presidente interino Michel Temer desistisse de fundi-lo à pasta de Educação.
A movimentação colocou no foco do debate a Lei Rouanet, principal meio de fomento à cultura do país que, em 2015, aprovou o repasse de 5,2 bilhões de reais para atividades culturais. Na Câmara dos Deputados, foi protocolada a criação de uma CPI no dia 25 de maio para investigar os projetos aprovados e a lei de incentivo já entrou na mira da Operação Lava-Jato. A Polícia Federal tinha exigido que o ministério da Transparência detalhasse os 100 projetos que mais receberam verba nos últimos dez anos, porém, o juiz Sérgio Moro suspendeu o pedido, alegando que é necessário um objeto definido para a investigação e que, se pertinente, deve ser aberto um inquérito à parte.
Apesar dos pedidos de investigação, a polícia não informou quais as suspeitas estão sendo apuradas nem que linha de investigação vai seguir. O deputado Alberto Fraga (DEM-DF), relator do texto da CPI da Lei Rouanet, também não tem nenhuma acusação concreta a fazer. “A gente achou toda essa reação dos artistas muito estranha e decidimos investigar”, afirma. No texto da comissão, os deputados expõem os projetos com alto valor comercial ou de relevância questionável aprovados pelo governo, como o repasse de 516.000 reais para o DVD do funkeiro MC Guimê e o blog de poesias da cantora Maria Bethânia, com 1,3 milhões de reais aprovados.
Procurado por EXAME Hoje, o ministério da Cultura informou que todos os dados de projetos são públicos, estão inteiramente disponíveis em plataforma do governo e reiterou que os projetos aprovados seguem os critérios previstos em lei. Além disso, o ministério informou que não recebeu qualquer notificação da Polícia Federal. Porém, apesar da ausência de provas de irregularidades, cresce dentro e fora da academia um consenso de que o momento é propício para rediscutir a lei.
Os problemas da Lei Rouanet
Criada em 1991, na gestão do presidente Fernando Collor. Na formulação original, a lei previa três pilares primordiais de incentivo: o Fundo Nacional de Cultura, que financia projetos de baixo apelo econômico com verba federal; o Mecenato, modelo mais utilizado, que prevê dedução de impostos para as empresas apoiadoras da cultura; e o Ficart, voltado grandes eventos, repassando uma parte dos lucros dos eventos para as empresas financiadoras.
Esse último, porém, nunca foi implementado – e praticamente todas as atividades, independentemente do porte ou do reconhecimento do artista, concorrem sob a lógica do mecenato. A regra é simples. Os artistas apresentam os projetos ao ministério da Cultura, que pode ou não aprová-los no Conselho. Os aprovados vão buscar investimentos junto às empresas, que bancam o orçamento previsto dos projetos escolhidos e podem receber 100% de dedução de impostos ou não, a depender do artigo da lei em que se enquadre o projeto.
“Como as empresas têm autonomia para apoiar a iniciativa que preferir, os projetos com menor apelo comercial e com menos visibilidade encontram muita dificuldade para conseguir apoio”, diz o economista Leandro Valiati, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em políticas de incentivo fiscal para a cultura.
Outro problema da lógica do mecenato é a escolha das empresas que podem receber o incentivo. A lei prevê que apenas as empresas que declaram lucro real na declaração de imposto de renda podem participar, o que reduz drasticamente o número de empresas aptas ao benefício. Como apenas empresas com receitas acima de 78 milhões de reais costumam optam por esse tipo de declaração, os projetos no interior do país e fora do eixo Rio-São Paulo acabam prejudicados. Atualmente, está em curso um projeto de lei que prevê autorizar as empresas optantes do lucro presumido a receberem os incentivos da lei Rouanet.
Em 2015, 79% dos recursos aprovados foram destinados a projetos na região Sudeste. A região Norte ficou com menos de 1% das verbas, equivalente a 40 milhões de reais. A produtora carioca Aventura e Entretenimento, que organiza grandes musicais como A Noviça Rebelde, recebeu sozinha mais da metade disso: quase 22 milhões de reais.
O setor privado e a cultura
Dentre os maiores beneficiários da lei em 2015 está a Time For Fun, empresa de entretenimento listada em bolsa que faturou 551 milhões em 2015 e recebeu 13,5 milhões de reais de incentivo. Outro exemplo é o Itaú Cultural, que recebeu quase 15 milhões de reais. O instituto, que não tem fins lucrativos, é apenas um dos braços do maior banco do país. No ano passado, o Itaú lucrou mais de 23 bilhões de reais. Empresas desse porte precisam mesmo de incentivo fiscal? Em entrevista a EXAME Hoje, Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, explicou o porquê da verba. “O Itaú Cultural recebeu 82 milhões de reais em 2015. Da verba recebida via Lei Rouanet, apenas 40% são deduzidos dos impostos”, afirmou. “Ou seja, 6 milhões de reais foram verba do governo federal, menos de 10% do total. O restante foi tudo investimento do próprio Itaú”, diz.
O Itaú Cultural foi fundado há 27 anos e nasceu da primeira lei de incentivo à cultura que o Brasil teve, a Lei Sarney, criada em 1986. E até hoje recebe verba do governo federal. Saron ressalta que todas as atividades desenvolvidas pelo instituto são totalmente gratuitas e abertas ao público, de exposições a cursos de especialização. “Se não recebêssemos nenhum incentivo, provavelmente precisaríamos cobrar pelas atividades. As parcerias público-privadas são fundamentais para o fomento à cultura”, afirma Saron.
Críticos dizem que, com os lucros bilionários, o Itaú poderia fazer tudo por conta própria. O banco, evidentemente, não concorda. Um grupo de produtores e acadêmicos também não. “Se a empresa tem a opção de receber incentivo pelo investimento que ela realiza, não faz sentido não usufruir desse direito”, afirma o economista Leandro Valiati.
Os incentivos fiscais dados à cultura vão representar apenas 0,6% de todos os incentivos do governo federal em 2016. O orçamento próprio do ministério da Cultura não é daqueles de provocar buracos no orçamento. Este ano, a pasta ficou com apenas 2,6 bilhões de reais, enquanto o ministério da Educação, por exemplo, teve 130 bilhões de reais destinados.
Resultado da falta de recursos do ministério, e do excesso de benesses da lei é que praticamente todos os recursos do governo para a cultura acontecem via Rouanet. “O problema é a dimensão que a lei ganhou. Hoje, está mal calibrada e defasada e é preciso fazer alguns ajustes para que ela continue a cumprir seu papel”, afirma Valiati.
Dentre as alternativas, está, por exemplo, instituir incentivos graduais, de acordo com o potencial de retorno financeiro do projeto. Hoje, artistas consagrados estão no mesmo comboio que as trupes de teatro do interior do país, são iguais perante a lei.
As revisões na lei podem dar início a uma política cultural menos centralizada, mas é consenso no setor que é preciso diversificar o gasto público e criar novos mecanismos de fomento. O Brasil, afinal, é o país que libera 500.000 reais para um DVD de funk ostentação – e é também o país em que metade da população nunca foi a um cinema, teatro ou museu.
(Camila Almeida)