Qual o futuro da esquerda?
Centrado na figura desgastada de Lula, o partido mais poderoso da esquerda torna impossível a aliança com outras legendas, enfraquecendo a todos
Raphael Martins
Publicado em 3 de setembro de 2016 às 07h04.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h57.
Na sexta-feira 2, o Partido dos Trabalhadores convocou reunião da Comissão Executiva Nacional em sua sede em São Paulo. O objetivo era se reorganizar depois do mais duro revés de sua história. Apenas dois dias antes, a presidente Dilma Rousseff foi oficialmente destituída do cargo pelo Senado para dar lugar a Michel Temer. Em seu primeiro pronunciamento, Temer falou em revisar direitos trabalhistas, iniciar uma reforma da previdência e criar um teto para os gastos públicos.
No PT, entrou em cena o “personalismo” de Luiz Inácio Lula da Silva para unir uma frente de esquerda e fazer oposição ao novo presidente. “Não adianta ficar lamentando, temos que apontar para o futuro. Vamos reconstruir tudo o que a gente fez a partir das coisas boas que a gente fez. Um bom partido como o nosso deve ressurgir. A gente sabe levantar”, disse o ex-presidente.
A fala de Lula segue o mesmo viés ditado por Dilma em seu primeiro discurso após a votação de impeachment. “Esta história não acaba assim. Estou certa que a interrupção deste processo pelo golpe de Estado não é definitiva. Nós voltaremos. Voltaremos para continuar nossa jornada rumo a um Brasil em que o povo é soberano”, afirmou a agora ex-presidente.
O desafio de retomar poder político é grande. Na época da eleição de Dilma, a coligação que a apoiou no Congresso ganhou 65% das cadeiras do Senado, mas no processo de impeachment menos de 25% votaram a seu favor. Na Câmara, os números são semelhantes.
Outro demonstrativo do esfacelamento é o que vem acontecendo na eleição municipal deste ano. O número de candidatos petistas nas capitais não chegou a diminuir (de 19 para 18), mas ficou notório o caso de “omissão” da estrela símbolo do partido em campanhas de figurões, como o paulistano Fernando Haddad. No fim das contas, o PT lidera a corrida em apenas uma grande capital (com João Paulo, no Recife), o PSOL tem grandes chances de levar Porto Alegre (com Luciana Genro), e o PDT desponta em Fortaleza (com Roberto Claudio). E Marcelo Freixo, do PSOL, está em segundo no Rio. Fora isso, o PT lidera a corrida em Porto Velho e Rio Branco. Não chega a ser ruim, mas está longe das ambições que o partido nutria há muito pouco tempo.
Ascensão e queda
Os petistas pretendem solidificar uma união com PCdoB e PDT para defender o projeto de políticas sociais que instauraram desde 2003. O cenário, obviamente, mudou muito desde então. A primeira eleição de Lula tinha ares de renovação, após dois governos de Fernando Henrique Cardoso. O tucano criou estabilidade econômica com o Plano Real, mas falhou em reverter esse ganho na diminuição da desigualdade. A narrativa petista acabou se mostrando imbatível.
“O PT representava a continuidade do PSDB, porém, numa versão popular. Mais importante do que o PT, era Lula, um trabalhador sem escolaridade que poderia dar continuidade a uma política relativamente parecida com a de Fernando Henrique Cardoso, mas com viés popular”, afirma José de Souza Martins, sociólogo e escritor, autor do livro Do PT Das Lutas Sociais ao PT do Poder.
Durante seus quase 14 anos de governo, o PT aproveitou a estabilidade econômica somada a um superciclo mundial de commodities para turbinar os programas sociais existentes e criar novos. Acelerou o Fies e criou o ProUni para financiar a educação dos mais pobres. Ao mesmo tempo, o PIB avançava – chegou a crescer 7,5% em 2010 – e o Brasil se tornou a sexta maior economia do mundo em 2011. De 2003 a 2015, o brasileiro ganhou quatro anos na sua expectativa de vida, passou de 13,6% para 4,9% a camada da população em situação de extrema pobreza, caiu 3 pontos percentuais a taxa de analfabetismo (para 8,1%). A aprovação de Lula era tão alta que nem o mensalão o impediu de se reeleger.
O bom momento desmoronou em dois atos: a queda dos preços das commodities, que gerou rombo nos cofres públicos, e o aprofundamento das investigações da Operação Lava-Jato, que envolvem boa parte do alto escalão petista. Ainda que o PMDB tenha mais indiciados no esquema, a posição do PT no Planalto e o retrospecto do mensalão lhe dão peso extra sobre as costas, em forma de atribuição maior de responsabilidade ou mesmo omissão na vigilância da corrupção no Estado.
A queda de popularidade do partido e da presidente foi vertiginosa, em especial quando os efeitos da crise econômica ficaram evidentes. Na série histórica da pesquisa Datafolha sobre preferências partidárias, o PT caiu de um pico de 31% dos entrevistados em abril de 2012 para 12% em fevereiro de 2015. Pela série da pesquisa CNT/MDA, Dilma em específico registrou 56,6% em sua maior aprovação (julho de 2012) e 7,7% em seu pior resultado (julho de 2015). O salto entre o nível pré-eleição e seus primeiros meses de segundo governo é o que mais impressiona. Eram 41% de bom e ótimo em setembro de 2014, que caíram para 10,8% em março seguinte.
“O impeachment se transformou em discurso de proibição para a esquerda, entendido como algo errado e absurdo. Como se a corrupção estivesse associada à ideologia”, afirma Camilo Negri, professor de Sociologia Política e especialista em esquerda na América Latina da Universidade de Brasília.
Retomada?
A esquerda brasileira nasceu de desmembramentos do Partido Comunista. O PT surgiu de três correntes de pensamento que misturam valores tradicionais do socialismo com medidas liberais. Um bom exemplo dessa “bipolaridade” é a Carta aos Brasileiros assinada por Lula para tranquilizar o mercado à beira da eleição. Essa face moderada do partido indica um posicionamento mais ao centro que puramente à esquerda. Por isso, a legenda nem pode ser considerada de esquerda segundo cientistas políticos consultados por EXAME Hoje.
“O PT não tem uma realidade programática única e, à medida que foi conquistando postos de poder, passou a definir políticas na direção de ampliar alianças”, afirma o filósofo e professor de ética da Unicamp Roberto Romano. “Já nos altos cargos, vimos junções extremamente estranhas a qualquer ideal presente no que seria um programa de esquerda, com José Sarney, Paulo Maluf e outros. Houve uma burocratização e ‘oligarquização’ das direções partidárias.”
Esse misto que se tornou o PT para galgar espaço no sistema político não compromete a possível união desses partidos para formar oposição a Michel Temer, mas é crítico para compor uma força suficiente para voltar ao Planalto. Em especial pela dependência que o partido tem de se unir em torno do personalismo de um líder como foi Lula. Além de o ex-presidente ser seguido de perto pela Lava-Jato, as alianças e concessões que tiraram o PT da linha programática geraram um afastamento da militância. Por ora, não há um novo nome que possa mover a esquerda da mesma forma no futuro.
“Há um divórcio entre a direção, a bancada de parlamentares e as ruas”, diz Romano. “Há um abismo que precisa ser sanado, senão o PT pode se enfraquecer e terminar como o PDT após a morte de Leonel Brizola”.
Nessa categoria de esquerda pura, entrariam apenas partidos de programa mais rígido, como PSOL e PSTU, que teriam grandes dificuldades de se viabilizar politicamente pela aversão aos acordos políticos e a possível aprovação da cláusula de barreira, uma limitação ao número de partidos com representação no Congresso.
Por essa lógica, o PSOL, que já tem políticos de renome como Luiza Erundina, pode se capitalizar com novos desertores do PT ou de partidos da esquerda que minguarão.
“O declínio eleitoral muito provável do PT deve favorecer os partidos de direita, sem doutrina e de ideologia difusa. Mas as esquerdas poderão ser beneficiadas pelo relativo vazio decorrente do declínio do PT, especialmente junto aos setores esclarecidos da classe média”, afirma o escritor José de Souza Martins.
A tendência de mudanças no Brasil acompanha uma corrente de esgotamento dos partidos na América Latina. O ciclo começa com a eleição de Mauricio Macri na Argentina, passando pelos absurdos do regime extremista de Nicolas Maduro na Venezuela, até por crises na Bolívia, com um derrotado Evo Morales em plebiscito para tentar nova reeleição, e no Chile, antigo exemplo de como política de esquerda pode conviver com boas práticas de mercado.
A presidente Michelle Bachelet foi eleita pela segunda vez em 2013 com 62% dos votos contra a conservadora Evelyn Matthei, grande parte por dar voz às demandas sociais da população e implementar um programa educacional que virou referência no continente.
A virada aconteceu quando um esquema de corrupção pôs em descrédito toda a classe política do país. Descobriu-se que o núcleo do governo, entre outros um ex-presidente e assistentes de Bachelet, recebia repasses de executivos da empresa Sociedad Química Minera de Chile (SQM). Apesar de nenhuma acusação ser feita diretamente à presidente, sua popularidade caiu.
Para o cientista político e professor do Insper Fernando Schüler, o único fio condutor que liga os partidos de esquerda hoje é a defesa da máquina do Estado, que ainda há “muita arrogância” e falta de habilidade para reconhecer os “erros na matriz econômica adotada”.
“A esquerda que incorporou a globalização e fez autocrítica está mais associada a partidos que não seguem essa tradição da esquerda latino-americana”, diz Schüler. “Um modelo fantástico a se estudar para o Brasil é o neotrabalhismo inglês, de Tony Blair, que aceita economia de mercado, responsabilidade fiscal e sustentabilidade, para a longo prazo gerar afirmação de programas sociais e de crescimento da economia”. Nada mais distante do Brasil dos idos de 2016.