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Milhares poderiam ter morrido em São Sebastião. Tragédia pior é questão de tempo se Brasil não agir

Cidades precisarão de melhor infraestrutura, moradia e treinamento da população para enfrentar eventos climáticos cada vez mais intensos

Área devastada em São Sebastião: falta de estrutura das cidades brasileiras acentua os efeitos do clima (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Área devastada em São Sebastião: falta de estrutura das cidades brasileiras acentua os efeitos do clima (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Publicado em 25 de fevereiro de 2023 às 15h38.

Última atualização em 26 de fevereiro de 2023 às 16h32.

No momento do fechamento desta reportagem, o número de mortos na tragédia em São Sebastião chegava a 57 vítimas. Outras dezenas estão desaparecidas e mais de 2 mil estão desalojadas, em um dos piores desastres da história do litoral paulista. É difícil pensar em um cenário pior do que esse, mas é o que alerta o geólogo e engenheiro Fabio Augusto Gomes Vieira Reis, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, no interior de São Paulo.

As chuvas que se estenderam pela Serra do Mar (indo do litoral norte ao Guarujá, na baixada santista) se concentraram no fim de semana; mas, se tivesse chovido mais nos dias anteriores — um cenário normal para a região, diz Reis —, a serra já estaria saturada quando viessem as piores chuvas. “Se o evento tivesse se alongado, não estaríamos falando de 80 mortes, mas de 5 mil, 10 mil”, diz o professor. “Foi por pouco que isso não aconteceu.”

Ano após ano, uma parcela significativa das cidades brasileiras corre esse risco. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) mapeou que, entre 1988 e 2022, foram 4.146 vítimas associadas a eventos de deslizamentos de encostas e processos correlatos, em 269 municípios. Mais de 8 milhões de brasileiros vivem hoje em áreas de risco, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

O pesadelo brasileiro com as chuvas todo verão não pode mais ser deixado ao desejo da sorte. "É um ponto que o Brasil tem de entender: podemos estar próximos de um grande evento com consequências humanas, ambientais e econômicas de tal proporção que vai ser muito difícil de resolver posteriormente", diz Reis.

A responsabilidade é de quem?

O Brasil se acostumou a uma caça às bruxas depois das tragédias, mas com a prevenção deixada de lado. Uma das principais barreiras é a distribuição difusa de responsabilidades. Muitas das medidas na ponta teriam de vir de prefeituras, que estão frequentemente com caixa apertado e prioridades políticas somente de curto prazo. Apenas 13% das prefeituras têm algum Plano Municipal de Redução de Riscos, segundo mapeamento de 2020 do IBGE junto a prefeitos. Metade dos municípios (50,5%) não adota nenhum instrumento de "gestão de desastres".

Enquanto isso, principalmente no caso de grandes áreas turísticas dos litorais, há parte do problema sob a jurisdição de governos estaduais, responsáveis por obras, rodovias, fluxos turísticos e o ordenamento de regiões metropolitanas inteiras — basta ver que, em São Sebastião, algumas das vítimas eram moradoras de outras cidades, uma vez que milhares de turistas saem de regiões metropolitanas rumo às praias todos os meses. "Tem um problema central na relação dos municípios com os estados. A pergunta sobre de quem é a responsabilidade é uma bola quicando, por assim dizer", afirma Cláudio Frischtak, fundador da consultoria Inter.B, especializado em infraestrutura.

Imagem aérea da Barra do Sahy, em São Sebastião: cooperação entre prefeituras e governos estaduais é necessária para mitigar riscos (FERNANDO MARRON/Getty Images)

Um exemplo dessa lacuna de poder, diz Frischtak, é no uso dos dados georeferenciados sobre as encostas e previsão de chuvas. Já ocorrem casos em que os dados são usados para executar obras preventivas ou alertar a população, mas a dimensão precisa ser muito maior. "No geral, esses dados existem, mas têm de ser coletados e usados adequadamente. A maioria dos municípios ou não tem competência para isso, ou se omite."

Infraestrutura em falta

Da lista de muito que ainda precisa ser feito, especialistas apontam três frentes principais que o Brasil precisa atacar:

  • obras preventivas de infraestrutura;
  • políticas de moradia e planejamento urbano;
  • e treinamento para que a população saiba como agir.

As três áreas são igualmente complexas. O atraso do Brasil em infraestrutura já é sabido e documentado, e esse déficit se reflete nas tragédias com as chuvas. A média de investimento do Brasil em infraestrutura nas últimas duas décadas ficou em torno de 2% do produto interno bruto (PIB), segundo cálculos da Inter.B, enquanto países de renda média e continentais, no mesmo perfil, investem entre 4% e 9%.

Dos grandes grupos, saneamento básico e transporte são os com maiores déficits. Em transporte e mobilidade urbana, o Brasil investe entre 0,6% e 0,7% do PIB, mas o número deveria se aproximar de 2%. Já em saneamento básico, o Brasil investe um quarto do que seria necessário para, no mínimo, universalizar o serviço a todos os brasileiros.

Trabalhadores limpam ruas do Rio de Janeiro após chuvas, em fevereiro de 2023: serviços públicos como saneamento ainda não são universalizados (Prefeitura do RJ/Divulgação)

Essa falta de investimento em infraestrutura básica tem relação direta com a prevenção às tragédias: a ausência de saneamento e descarte inadequado de resíduos, em regiões muitas vezes já com habitação irregular, pode acentuar os efeitos da chuva nas encostas. Enquanto isso, o transporte público insuficiente nas cidades do interior e litoral é um dos motivos a fazer com que a população se mude para áreas de maior risco.

"E se olharmos o caso específico das encostas, é até difícil dizer quanto mais se deveria investir, porque o investimento nisso hoje é residual, é o que sobra. Raramente é o caso de o prefeito ou governador falar que é prioritário lidar com o problema das encostas", diz Frischtak. É o caso de obras como as de contenção pluvial, que ajudariam a escoar a água nas encostas.

"São obras complexas, caras e que aparecem pouco para a população. Só são importantes quando a tragédia acontece. Até lá, vai-se empurrando com a barriga e usando o dinheiro em outra coisa mais visível."Cláudio Frischtak, da Inter.B

Moradia é central

Mais do que um acaso da natureza, a raiz das tragédias está no planejamento urbano precário que se consolidou nas cidades brasileiras. Resolver o problema vai além de retirar moradores de áreas de risco. Afinal, essa população não chegou lá por acaso, argumenta Renato Anelli, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie e diretor do Instituto Brasileiro de Arquitetura (IAB) de São Paulo.

Uma cidade como São Sebastião, por exemplo, tem poucas áreas planas para moradia, e a maior parte se destina a empreendimentos para classe média-alta e turistas. O roteiro é quase idêntico em outros lugares: uma pujante economia atrai novos moradores em busca de trabalho, mas as cidades não têm políticas para acomodá-los, e crescem então para os lados, de forma desordenada. Pelos dados do IBGE, 83% das cidades não têm nenhum tipo de instrumento para realocar pessoas de baixa renda que vivem em áreas de risco, seja por meio de pagamento de aluguel social, compra de imóvel ou algum auxílio específico. “Podemos dizer que vamos tirar as pessoas, mas para colocar onde?”, diz Anelli.

Socorristas na Barra do Sahy, em São Sebastião: política habitacional e planejamento urbano precisarão mudar nas cidades (NELSON ALMEIDA/Getty Images)

Não se trata de demonizar empreendimentos turísticos ou de alta renda. É desse ecossistema diverso que vivem as cidades, e os recursos vindos dessa economia são cruciais, inclusive, para ajudar nas políticas públicas. O tênue equilíbrio terá de envolver uma visão de médio e longo prazo de setores público e privado, dizem especialistas. Anelli, que foi ele próprio secretário municipal em São Carlos (SP) nos anos 2000, se preocupa ainda com o fato de que muitos dos lugares destruídos em São Sebastião estavam não na encosta, mas na base do morro, um local plano e a uma distância que muitos diriam segura. Imagens como as da piscina de um confortável hotel sendo submersa são um alerta. Se os riscos começarem a crescer dessa forma — isto é, com os lugares realmente seguros cada vez mais reduzidos — o desafio da habitação e planejamento urbano se torna ainda mais estrutural.

"As áreas que desabaram são vegetadas, e já tínhamos visto isso em Santa Catarina, na região serrana do Rio, vimos em Ouro Preto. Uma parte do morro simplesmente afunda. Então, se o isolamento com relação ao morro tiver de ser ainda maior, há um impacto na cidade inteira. As pessoas que fazem turismo nas áreas seguras terão quem trabalhando para elas, se é cada vez mais difícil morar ali?", questiona. “É um planejamento não apenas do parcelamento do solo, mas se pode verticalizar, onde verticalizar, onde será área para habitação social", diz.

"São polêmicas mal resolvidas em São Sebastião e em muitas cidades do litoral."Renato Anelli, do Mackenzie

Nenhum risco será zero, mas caberá ao poder público adaptar o tipo de medida para cada lugar. Matheus Martins, especialista em drenagem urbana e professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que o tipo de construção a ser autorizada varia. “Para regiões com chuvas menos constantes eu faço um tipo de obra que pode falhar uma vez a cada dez anos. Um local em que há uma constância maior de águas, a falha pode ser a cada 50 anos”, diz.

Tragédias no Brasil têm se concentrado na região litorânea da Mata Atlântica (Celso Santos Carvalho e Thiago Galvão, Ipea./Reprodução)

A Mata Atlântica, em especial, tem uma camada de solo não muito profunda e com rochas muitas vezes fraturadas, características propícias para deslizamentos. A região, ao mesmo tempo, engloba boa parte das maiores cidades e polos turísticos brasileiros, onde têm se concentrado os deslizamentos nos últimos anos. Uma solução para áreas dessas cidades em que há um risco maior, na opinião de Martins, é a construção de equipamentos urbanos que sejam menos afetados com inundações, como praças e parques.

"O crescimento da cidade precisa ser pensado a partir do sistema de drenagem para diminuir a exposição das pessoas ao risco."Matheus Martins, da UFRJ

Construir pensando no clima não é fácil ou barato, mas as tecnologias já existem. O engenheiro civil Joni Matos Incheglu, conselheiro do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) de São Paulo, avalia que atualmente existem métodos construtivos em que é possível fazer qualquer tipo de estrutura resistente a estes tipos de fenômenos climáticos. “Mas são poucas empresas e governos com capacidade financeira para absorver estes valores. A Rodovia dos Imigrantes, por exemplo, é uma das obras mais modernas feita para suportar as condições da região”, diz. Na prática, a legislação brasileira sobre o tema também já reconhece a necessidade de uma abordagem adaptada a cada lugar, seja com planos para amenizar o risco, ou situações em que a retirada dos moradores e grandes obras são a única opção.

Tocar a sirene não basta

Além das frentes estruturais, falta ao Brasil lidar até mesmo com o básico, como os alertas à população. Esse sistema funciona o tempo todo em países que sofrem com terremotos frequentes, como o Japão e o Chile, ou tornados, como o sul dos EUA. Ao contrário de obras de infraestrutura, o alerta não evita os estragos, mas salva vidas humanas.

População em abrigo no Japão, em 2022, após terremoto de 7 graus na escala Richter: alertas são frequentes no país (CHARLY TRIBALLEAU/AFP/Getty Images)

No caso do Brasil, mesmo com uma demanda por modernização de equipamentos e mais pessoal em órgãos como o Cemaden, muitas vezes já se sabe que uma chuva forte virá, diz Reis, da Unesp. O que falta é o protocolo sobre o que fazer, como avisar a população e qual é a hora certa de abandonar locais em risco. Petrópolis, no Rio, gastou R$ 2,3 bilhões desde a tragédia de 2011, incluindo em um sistema de sirenes que alerta quando o solo fica instável; mas, quando os alarmes tocaram para novos deslizamentos em 2022, não conseguiram impedir parte das mortes, porque muitas pessoas não sabiam para onde ir.

Em São Sebastião, relatos apresentados pela Folha de S.Paulo mostram que algumas pessoas que tentavam fugir foram atingidas pela lama e não sobreviveram. “Isso, para mim, é muito assustador se confirmado, porque quem ficou em casa sobreviveu. Muda tudo na forma como alertamos as pessoas”, diz Anelli, do Mackenzie. Antes da chuva, a Defesa Civil de SP divulgou ter enviado SMS antecipadamente para 34 mil moradores no litoral norte, mas o governo reconheceu que o cadastro era insuficiente. O governador Tarcísio de Freitas anunciou nesta semana um conjunto de medidas que incluirá instalação de sirenes para o próximo verão, melhores equipamentos e, nas escolas, uma disciplina para ensinar crianças a responder aos alertas, “pois elas aprendem muito mais rápido que os adultos”.

Sala do Cemaden (foto de arquivo): Brasil ainda pode avançar em sistemas de monitoramento, mas lacuna maior está no treinamento da população (Cemaden/Reprodução)

Outras cidades brasileiras têm começado a atuar no necessário preparo da população, principalmente as que já sofreram com tragédias. Depois das enchentes e deslizamentos de 2008, Blumenau, em Santa Catarina, investiu R$ 336 milhões em obras para controle de cheias no rio Itajaí-Açu e fez uma parceria com o Japão para trocar experiências de treinamento dos moradores. Santos, também no litoral paulista, registrou 45 mortos após deslizamentos em 2020, e instalou no fim do ano passado um plano preventivo para instruir moradores e avaliar as condições das encostas. Além disso, a cidade investiu R$ 10 milhões em obras de drenagem e contenção em dez morros.

Um plano para as mudanças climáticas

O sinal vermelho para o Brasil foi acendido principalmente depois do caso de Petrópolis em 2011, em que cerca de mil pessoas morreram ou seguem desaparecidas — a maior tragédia do tipo até hoje, segundo o IPT.

O Brasil tem desde 2012 a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, que indica que os municípios devem elaborar planos de contingência e implantação de obras para redução de riscos. Os planos devem ter apoio dos estados e da União, incluindo em recursos, obras e política habitacional. Algumas obras nas encostas chegaram a ser financiadas nos anos 2000 e 2010 pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Para o futuro, especialistas afirmam que essas dinâmicas entre os poderes terão de ser aprimoradas e modernizadas, e agora, levando em conta também as mudanças climáticas. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi uma das que sobrevoaram as áreas afetadas em São Paulo e capitaneia uma proposta de um plano interdisciplinar para lidar com os impactos dos desastres naturais, como chuva e seca. Uma das ideias é criar uma linha no Orçamento da União para esse fim.

Marina Silva: proposta de um plano intersetorial para lidar com desastres climáticos (Leandro Fonseca/Exame)

No mundo inteiro, o cenário não é animador. Relatório do Fórum Econômico Mundial deste ano colocou “desastres naturais e eventos climáticos extremos” e “falha na adaptação à mudança climática” entre os dez maiores riscos globais para os próximos dois e dez anos. E essa não é uma visão catastrófica e alarmista. Na maior tragédia da história do litoral paulista, em Caraguatatuba, morreram 500 pessoas em 1967, o equivalente a 3% da população de 15 mil habitantes à época. "Só que a ocupação era diferente, muito rural", afirma Reis, da Unesp. Hoje, a população em Caraguatatuba é de cerca de 130 mil pessoas, além de outros 90 mil na vizinha São Sebastião, e outros milhares de turistas regulares. Muitos ocupam áreas que, naquela época, não eram sequer habitadas. “Um evento nas proporções de 1967, hoje, seria uma tragédia enorme", diz o geólogo.

Se o Brasil é privilegiado ao não ter vulcões, terremotos ou furacões constantes para enfrentar, passou da hora de admitir que as tragédias vistas a cada verão são a versão tupiniquim desse risco. Com as mudanças climáticas batendo à porta do planeta, boas políticas públicas serão a diferença entre uma tragédia avassaladora e uma redução de danos capaz de salvar dezenas ou milhares de vidas.


(Colaborou Alessandra Azevedo, de Brasília)

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