Brasil

O leão vai deixar sua empresa nua

Um novo sistema eletrônico da Receita Federal moderniza a cobrança de impostos e coíbe a sonegação - mas também expõe o caos tributário que sufoca o setor produtivo

Oda, da Receita: outra demonstração do poderio tecnológico

Oda, da Receita: outra demonstração do poderio tecnológico

DR

Da Redação

Publicado em 16 de outubro de 2010 às 12h44.

Um novo sistema informatizado da Receita Federal vai começar a mudar - e muito - a vida das empresas em janeiro. A novidade, batizada de Sped, sigla para Sistema Público de Escrituração Digital, determina a transferência para o meio eletrônico de todas as obrigações contábeis e fiscais das empresas, hoje cumpridas com um interminável preenchimento de formulários e livros. O lado positivo da mudança é a simplificação e padronização de muitos processos tributários - o que não é pouco, dado o inferno que se tornou a vida do contribuinte brasileiro. Também deve ocorrer um avanço no combate à informalidade, já que a Receita passará a ter condições de acompanhar eletronicamente a vida das empresas. "O Sped vai limitar o espaço para a sonegação e reduzir a burocracia, o que beneficia as empresas sérias", diz Carlos Sussumu Oda, superintendente da Receita Federal e responsável pelo Sped. O lado feio do novo sistema - mais uma demonstração do poderio tecnológico do Fisco brasileiro - é o fato de ser implantado sem nenhuma melhoria no caos tributário. A partir do próximo ano, qualquer deslize, fato quase inevitável diante do emaranhado de regras, será imediatamente detectado e passível de punição. "Teremos uma espécie de Big Brother a serviço do Fisco", afirma Gilberto Fischel, presidente da IOB, consultoria da área contábil. Ou seja, a tecnologia de arrecadação está cada vez melhor. O sistema tributário continua uma tragédia.

Não é para menos que o regime de impostos do país é considerado um dos mais complicados do planeta. São 79 tributos e mais de 5 000 leis para regulá-los, que sofrem uma inacreditável média de três alterações a cada 2 horas. Num cenário desses, é mais do que esperado que a maioria das empresas cometa algum erro no recolhimento dos impostos ou na hora de prestar as inúmeras informações exigidas pelos vários órgãos arrecadadores com que têm de lidar. A IOB realizou um estudo simulando uma auditoria fiscal sobre as operações realizadas em 2007 por 223 empresas e descobriu que quase todas cometeram algum erro no relacionamento com os órgãos arrecadadores. Os lapsos de procedimento explicam parte considerável das autuações federais, que somaram 95 bilhões de reais no ano passado. Pelo menos um erro, cometido por 94% das empresas analisadas, nada tem a ver com tentativa de sonegação: as empresas simplesmente deixaram de utilizar créditos de ICMS a que tinham direito - ou seja, pagaram ao Fisco mais do que deveriam. Qualquer engano desse tipo será detectado pelo Sped, resultando em mais autuações.

A preparação para a entrada em funcionamento do novo sistema já começou. Foram investidos 127 milhões de reais para desenvolver o Sped, cujo embrião foi a implantação da nota fiscal eletrônica, obrigatória para alguns contribuintes desde abril deste ano - atualmente, 4 800 empresas e suas filiais utilizam o sistema digital. Em janeiro de 2009, outras 45 000 companhias serão obrigadas a usar a nota eletrônica. A convocação das empresas será realizada em levas, começando pelas maiores. Somente as pequenas e as microempresas adeptas do Simples Nacional ficarão de fora. O funcionamento da nota fiscal eletrônica dá a dimensão do alcance que o Fisco terá sobre a operação das empresas. Antes de liberar a nota online, o Sped vai capturar informações sobre o produto que será vendido, seu preço e quem será o comprador. Dessa forma, praticamente todas as transações comerciais das companhias ficarão armazenadas num banco de dados que será utilizado pela Receita e pelas 27 secretarias estaduais da Fazenda.


Além da nota eletrônica, o Sped terá duas outras grandes fontes de informação. As empresas convocadas terão de enviar pela internet seus dados contábeis (todos os pagamentos e recebimentos realizados, o que inclui vendas, compras e salários de funcionários, entre outros) e fiscais (todos os registros de notas fiscais que geraram débitos e créditos de tributos). Ambas as tarefas já são exigidas das companhias, mas na base da papelada. Agora, essas informações serão confrontadas com os dados fornecidos pelas notas fiscais eletrônicas, deixando, aí sim, a empresa praticamente nua sob o ponto de vista tributário. O que as empresas acham disso? "Será um enorme avanço para quem trabalha corretamente, pois, quanto maior for a exposição, mais empresas terão de cumprir as mesmas regras e mais justa será a concorrência", diz Welson Teixeira, diretor de relação com o investidor da Sadia.</p>

De fato, o Sped tem o potencial de ser uma arma poderosa contra a informalidade. Nem as micro e pequenas empresas, fora do sistema, passarão incólumes pelas transformações. Pela lei brasileira, nenhuma companhia pode vender ou comprar de outra que esteja desabilitada pelos fiscos devido a alguma pendência tributária grave. Ocorre que, na prática, há milhares de empresas que continuam operando e emitindo notas apesar de desabilitadas. Isso deve mudar. A nota fiscal eletrônica consegue verificar online se vendedor e comprador estão autorizados a funcionar. Não há, pelo menos inicialmente, intenção de bloquear a emissão da nota eletrônica em caso de irregularidade. Porém, as informações ficarão registradas no banco de dados e certamente gerarão autuações futuras. Na Wickbold, uma das maiores fabricantes de pães do país, o setor fiscal está levantando a situação tributária dos 5 000 clientes e fornecedores. "Vamos procurar todos os que tiverem problemas e pedir que eles os solucionem", afirma Ronaldo Wickbold, dono da empresa. "Não queremos deixar de negociar com ninguém, mas também não queremos ser autuados pelo Leão."

Essa é apenas uma das mudanças que o novo sistema acarretará às empresas. Uma alteração positiva é que os formulários e relatórios eletrônicos servirão tanto para o Fisco federal quanto para os estaduais. Hoje, cada estado tem uma maneira de pedir informações contábeis e fiscais das empresas. "Com o Sped, a interação será com um único agente do Fisco", diz Oda, da Receita. Outro avanço é a extinção dos livros fiscais e contábeis. Hoje, eles têm de ser impressos, armazenados e mantidos pela empresa por, pelo menos, cinco anos. "O sistema acaba com a maior parte da papelada que somos obrigados a guardar", afirma Paulo Penido, diretor de finanças da Usiminas. A siderúrgica mineira, a primeira companhia a fazer a prestação de informações contábeis pelo Sped durante a fase piloto, em um ano deixou de imprimir, encadernar e armazenar 343 000 folhas preenchidas frente e verso. O volume de papel, se empilhado, formaria uma coluna de 42 metros, altura equivalente à de um prédio de 14 andares.


O fato é que as empresas brasileiras estão diante de uma mudança de enormes proporções, e há vários sinais de que esse movimento não tem volta. O Sped está sendo gerado na Receita há quatro anos e, em matéria de atualização tecnológica, o Fisco brasileiro é referência internacional. Nenhum outro país tem um sistema de entrega de imposto de renda tão eficiente quanto o brasileiro. Neste ano, 23 milhões de contribuintes fizeram suas declarações de IR. Desse total, 98% utilizaram a internet. A Receita vive, ao mesmo tempo, no século 21, quando o assunto é tecnologia, e na Idade das Trevas, quando se analisam o caos tributário e o atendimento ao público. A fila para protocolar um pedido de esclarecimento num guichê pode levar horas. A recém-empossada secretária da Receita, Lina Vieira, declarou que uma de suas principais missões é melhorar o atendimento ao público. Recentemente, o órgão passou a trabalhar com agendamentos pela internet, o que reduz a fila física, mas não a demora das respostas. Por essas e outras, muitos erros acontecem, e com eles vêm as indigestas autuações. Como tecnologia, o Sped pode ser muito bom. Mas é urgente que o sistema tributário seja reformulado, a começar pelo emaranhado de leis, a toda hora alteradas.

Big Brother eletrônico

O que é e como funcionará o novo Sistema Público de Escrituração Digital (Sped).

O que é

Um gigantesco banco de dados do Fisco que armazenará informações de tudo o que as empresas compram, vendem e arrecadam de impostos. Seu instrumento principal é a nota fiscal eletrônica.

Quem vai utilizar

4 800 empresas e suas filiais já utilizam a nota fiscal eletrônica. A partir de janeiro, serão 45 000 Além disso, cerca de 17 000 apresentarão pelo sistema digital as obrigações fiscais, e 12 000, as contábeis. Mais empresas serão incluídas gradualmente no Sped.


O que muda para o fisco

Unificação

O Sped colocará à disposição da Receita Federal e das 27 secretarias estaduais da Fazenda o mesmo banco de dados dos contribuintes, facilitando o controle e a fiscalização. Em 2009, começará a integrar também os municípios.

O que muda para as empresas

Maior exposição

Com a tecnologia, o Fisco poderá acompanhar mais de perto as transações das empresas. Num país em que há três mudanças de regras tributárias a cada 2 horas, isso pode se tornar uma nova fonte de problemas.

Padronização

A integração da Receita Federal com as secretarias estaduais da Fazenda padronizará a maneira de as empresas apresentarem relatórios fiscais e contábeis. Hoje, cada estado exige um relatório diferente.

Simplificação

A necessidade de imprimir e armazenar livros contábeis e fiscais será eliminada. No caso da Usiminas, apenas os livros contábeis de um ano somam 343 000 folhas de papel, que, empilhadas, alcançariam 42 metros de altura, o equivalente a um prédio de 14 andares.

Desburocratização

Livros fiscais e contábeis passam a ser eletrônicos, e a autenticação - hoje feita levando a papelada para carimbar nas juntas comerciais - passa a ser digital.


Sucessão de erros

Um estudo da IOB com dados de 2007 revela o potencial de problemas para as empresas com a maior exposição que o Sped trará. Muitas erram no atendimento aos fiscos por não conseguir lidar com a complexidade da legislação tributária:

a) 94% das empresas não aproveitaram créditos de ICMS a que tinham direito, ou seja, deixaram de recuperar dinheiro para seus caixas;

b) 87% cometeram algum erro na composição da base de cálculo do ICMS, o que é motivo para sofrer autuação;

c) 61% comercializaram com clientes ou fornecedores inabilitados por algum fisco, o que leva a autuação;

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d) 53% preencheram alguma nota fiscal com alíquota divergente da tabela de IPI, que, só em 2007, sofreu 216 alterações.

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