Estelionatos sobem 8,2% em um ano e 360% em 7 anos; crimes de rua caem
Segundo dados da edição 2024 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, essa mudança reflete uma tendência mundial e se consolidou de maneira definitiva no Brasil após o arrefecimento da pandemia
Agência de notícias
Publicado em 18 de julho de 2024 às 15h38.
A transformação tecnológica da economia e o aumento do aparato físico de vigilância estão mudando a cara do crime contra o patrimônio no Brasil: enquanto a quantidade de roubos cara-a-cara diminuem, os golpes virtuais e os estelionatos estão ficando mais comuns.
Segundo dados da edição 2024 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, essa mudança reflete uma tendência mundial e se consolidou de maneira definitiva no Brasil após o arrefecimento da pandemia, quando uma parcela mais significativa da população começou a digitalizar mais aspectos de suas vidas.
"Entre 2022 e 2023, os estelionatos por meio virtual subiram 13,6%; o total de estelionatos cresceu 8,2", afirma o capítulo do documento que trata do tema. "Na ponta oposta, chama atenção a forte queda no registro de roubos a bancos e demais instituições financeiras, de quase 30% no mesmo período, seguidos dos roubos a estabelecimentos comerciais, que caíram 18,8%."
Segundo o relatório, divulgado hoje pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), essa transformação cristaliza um processo que levou cerca de cinco anos para ocorrer no Brasil. Enquanto em 2018 o número de roubos superava o de estelionatos em cerca de 1 milhão, em em 2023, há 1,1 milhão de estelionatos a mais que roubos, consolidando "uma completa inversão nos registros desses dois tipos penais".
Para os especialistas, a tecnologia influencia não só no aspecto de deslocar as transações financeiras do mundo físico para o virtual, mas também em equipar policiais e seguranças com mais câmeras e outros sistemas de vigilância, dificultando o crime presencial.
A necessidade de estar presente no meio virtual provocou, em certa medida, uma onda de "profissionalização" do crime.
"O que ocorreu foi uma migração da atividade para modalidades de crime que embutem riscos menores e que tem um potencial de ganho maior", diz o pesquisador Renato Sergio de Lima, presidente do FBSP. — No crime virtual, a relação custo-benefício é muito maior do que a de roubar veículo, assaltar bancos ou roubar carga.
Com a tipificação da modalidade virtual de estelionatos em lei desde 2021, ficou claro, de todo modo, que nem sempre os crimes cibernéticos requerem alta sofisticação. Há uma parcela pequena de criminosos e hackers capazes de perpetrar crimes financeiros sem sair de casa, mas a maior parte dos golpes virtuais que têm se verificado nascem a partir de um outro crime: o furto de celular.
Essa modalidade é a conexão dos "crimes de rua" com os crimes virtuais porque, além de permitir manipular aplicativos de compra, ela dá acesso a dados de cartão de crédito e a informações pessoais que permitem roubo de identidade.
Crime diversificado
Quando um ladrão furta ou rouba um celular desbloqueado, não raro usando moto ou bicicleta para surpreender transeuntes que estão usando o aparelho, ele não precisa ser um hacker para dar golpes virtuais depois.
"O celular desbloqueado é a porta de entrada para golpes que são perpetrados de uma forma muito rápida e rentável", diz. "Depois de trocar a senha, além do aplicativo do banco, que pode ser usado para fazer um empréstimo e transferências via Pix, estão lá aplicativos para comprar alimento, medicamento, bebida, que podem ser comprados para revender no mercado ilegal".
O especialista lembra que aplicativos de relacionamento também estão sendo usados para golpes, e mesmo que o ladrão tenha acesso apenas a um aplicativo de mensagem, ele pode usá-lo para contatar amigos e familiares da vítima e pedir dinheiro.
Um problema que o Anuário de 2024 identifica diante da digitalização do crime é que a polícia não está conseguindo se adaptar ao novo cenário com velocidade. Ferramentas de inteligência úteis para resolver grandes desfalques, como o sistema do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), também seriam úteis para investigar operações pequenas, mas são pouco usados hoje pelas polícias estaduais.
"Com isso, a produtividade das polícias civis fica muito dependente dos casos de prisões em flagrante realizados pelo policiamento ostensivo das polícias militares", escrevem os autores do anuário, que criticam o currículo defasado das academias de polícia do país.
Fuga de cérebros
Lima afirma que um problema sendo vivenciado pela Polícia Civil de grandes cidades é que os poucos profissionais altamente qualificados em investigação digital são cortejados pelo mercado privado e acabam deixando a corporação.
"Quando você acaba de treinar um policial excelente, o setor privado vem e pega, porque segurança cibernética hoje é crucial em várias áreas na fronteira da economia. Aparece uma empresa e fala: 'vem que eu te pago o triplo",an diz Lima.
O estado de São Paulo, particularmente, tem tido essa dificuldade, também porque ficou muitos anos sem concurso e porque o efetivo não foi sendo renovado. Segundo o Anuário de Segurança, a digitalização do crime agrava um problema mais profundo nas polícias, que é o sucateamento da polícia civil para concentrar atividades na corporação militar.
"A mensagem é clara: é preciso reforçar o trabalho de investigação criminal feito pelas polícias civis brasileiras", diz o relatório do FBSP.