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Disputa entre índios e produtores expõe diferença de valores

A divulgação de uma carta escrita por guaranis kaiowás foi equivocadamente interpretada como uma ameaça de suicídio coletivo

Índios na região do Rio Xingu:  “A situação das comunidades indígenas é precária e os produtores rurais não questionam isso", diz Eduardo Riedel. (Noel Villas Bôas/Wikimedia Commons)
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Da Redação

Publicado em 9 de janeiro de 2013 às 12h15.

Dourados (MS) – Nos últimos meses de 2012, o conflito entre índios e produtores rurais voltou a ganhar destaque nacional. Principalmente depois de dois episódios ocorridos na Região Centro-Oeste. Primeiro, a divulgação de uma carta escrita por guaranis kaiowás da comunidade Pyelito Kue, no Mato Grosso do Sul, equivocadamente interpretada como uma ameaça de suicídio coletivo. Em seguida, o início do processo de retirada dos não índios da Terra Indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso, homologada pelo Poder Executivo em 1998.

Diante do risco iminente de confrontos, diversos setores voltaram a discutir a questão da disputa de terra, problema que perpassa toda a história brasileira e do continente americano. De um lado, os índios reivindicam o reconhecimento dos territórios que afirmam ter pertencido a seus antepassados, para, assim, poderem produzir o necessário à sua sobrevivência, resgatar seus costumes e preservar sua cultura. De outro, os fazendeiros sustentam que a demarcação de terras vai prejudicar a produção de alimentos sem necessariamente contribuir para melhorar as condições de vida dos índios.

“O que poucos entendem é que, no campo, a terra é a base não apenas do poder econômico e político, mas também do poder cultural. Por isso, ainda há quem concorde com o discurso de que os índios são vagabundos. Ou que são todos uns aculturados que só querem terras para deixar o mato crescer”, diz o jornalista Cristiano Navarro, um dos diretores do documentário À Sombra de Um Delírio Verde, sobre o impacto da produção de etanol para as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul e a dificuldade de se conciliar os direitos indígenas com os interesses econômicos.

"O modelo que se quer instalar aqui é do século passado e não cabe mais no estado, que vai ser prejudicado. Fora que, por si só, a demarcação não vai melhorar em nada a situação indígena já que ter terra, hoje, não resolve o problema dos índios”, disse à Agência Brasil e à TV Brasil o presidente do Sindicato Rural de Dourados, Marisvaldo Zeuli, destacando as vantagens do modelo de produção agrícola sul-mato-grossense, de larga escala. Modelo graças ao qual o estado se tornou um dos maiores produtores brasileiros de soja, milho, cana-de-açúcar e carvão vegetal.


“Os caras que dizem defender os índios estão os condenando a viver perpetuamente no estado em que se encontram hoje”, disse o produtor Raul das Neves, dono de uma fazenda no município de Rio Brilhante (MS), próximo a Dourados (MS). A propriedade é vizinha de outra em que, entre idas e vindas, cerca de 140 índios guarani-kaiowá vivem acampados (ATT: Lincar com a segunda matéria) desde 2007. Atualmente, por força de uma decisão judicial, eles estão concentrados em 25 hectares, na aldeia conhecida por Laranjeira Ñanderu, aguardando a decisão final sobre a possível demarcação de uma área que afirmam ter pertencido a seus antepassados. Um hectare corresponde a dez mil metros quadrados, aproximadamente um campo de futebol de medidas oficiais.

“Vivemos na miséria porque não tem mais floresta, nem bicho pra gente caçar. Só tem fazenda com soja e pasto [ao redor das terras que os índios reivindicam]”, diz o cacique de Laranjeira Ñanderu, Farid Mariano. “Podem nos oferecer o que for, o que queremos é permanecer onde nossos antepassados morreram. E vamos permanecer. Para o índio, conforto é ter nossa terra”, acrescenta Mariano, explicando que, se a área for reconhecida, dezenas de famílias indígenas que abandonaram o grupo devido à falta de terras poderão voltar a viver na aldeia devidamente ampliada.

Já o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Eduardo Riedel, sustenta que o direito ao usufruto exclusivo da terra não vai solucionar os problemas dos índios. “A situação das comunidades indígenas é precária e os produtores rurais não questionam isso. Só que a origem do conflito é a fragilidade social, representada pela fome e pela falta de assistência à saúde e à educação em que vivem as comunidades indígenas”, frisou Riedel. Ele destacou que o setor rural responde por cerca de 18% do Produto Interno Bruto (PIB) estadual – a soma de bens e serviços produzidos no estado. “A criação ou ampliação de áreas indígenas é posta como a única solução, enquanto nós, produtores, somos colocados como bandidos. Se seguirmos a lógica de que [se os índios precisam] de mais terras basta ampliarmos os territórios já demarcados, onde vamos parar? Isso não terá fim nunca”.

Citando a situação da mais populosa reserva indígena do Mato Grosso do Sul, a Terra Indígena Dourados, onde os 3,5 mil hectares são insuficientes para que os cerca de 14 mil kaiowá, nhandeva e terena possam manter o modo de vida tradicional indígena, o cacique Getúlio Juca de Oliveira, uma das lideranças locais, afirma que, sem terras onde os índios possam plantar e viver, de nada adiantarão ações assistencialistas destinadas a tentar resolver a situação de miséria em que os índios vivem.


“Aqui não tem mais como a gente crescer. É tudo apertado. Precisamos de mais espaço e lutamos para aumentar a aldeia porque nosso medo é que daqui a mais cinco ou dez anos, com filho nascendo e a comunidade crescendo, não tenhamos mais lugar. Sem [mais] terra, pode ter vários tipos de apoio do governo que nada vai resolver”, diz o cacique, explicando que há anos os índios de Dourados aguardam que a União reconheça(ATT: Lincar com a terceira matéria)ao menos nove tekohas (territórios sagrados) na região.

Como a Fundação Nacional do Índio (Funai) não concluiu os estudos antropológicos necessários à demarcação das novas áreas e não comenta a possível dimensão das reservas, a reportagem optou por não reproduzir os números mencionados pelas lideranças indígenas ou produtores rurais. Ontem (8), a fundação divulgou o resultado preliminar de um dos processos de reconhecimento de 39 tekohas de sete áreas reivindicadas como indígenas. A conclusão dos processos é objeto de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público Federal (MPF), em 2007. O documento estabelecia que a Funai concluiria os estudos e os entregaria até abril de 2010 ao Ministério da Justiça para que este pudesse declarar terras indígenas os territórios identificados. Diante do descumprimento dos prazos, o MPF-MS recorreu à Justiça em agosto de 2011, cobrando o cumprimento do acordo.

"Acho que o índio tem que se integrar à sociedade. Porque demarcar as reservas que os índios estão pedindo vai trazer uma paz temporária, mas daqui a dez, vinte anos, os índios vão ser o dobro e vai ser preciso arrumar mais terra para eles. Tenho medo de que isso nunca tenha fim", acrescenta o fazendeiro Esmalte Barbosa Chaves, cuja fazenda, em Porto Cambira, Dourados (MS), foi parcialmente ocupada em 2004 por um grupo de índios desaldeados da Terra Indígena Dourados.

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Dourados (MS) – Nos últimos meses de 2012, o conflito entre índios e produtores rurais voltou a ganhar destaque nacional. Principalmente depois de dois episódios ocorridos na Região Centro-Oeste. Primeiro, a divulgação de uma carta escrita por guaranis kaiowás da comunidade Pyelito Kue, no Mato Grosso do Sul, equivocadamente interpretada como uma ameaça de suicídio coletivo. Em seguida, o início do processo de retirada dos não índios da Terra Indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso, homologada pelo Poder Executivo em 1998.

Diante do risco iminente de confrontos, diversos setores voltaram a discutir a questão da disputa de terra, problema que perpassa toda a história brasileira e do continente americano. De um lado, os índios reivindicam o reconhecimento dos territórios que afirmam ter pertencido a seus antepassados, para, assim, poderem produzir o necessário à sua sobrevivência, resgatar seus costumes e preservar sua cultura. De outro, os fazendeiros sustentam que a demarcação de terras vai prejudicar a produção de alimentos sem necessariamente contribuir para melhorar as condições de vida dos índios.

“O que poucos entendem é que, no campo, a terra é a base não apenas do poder econômico e político, mas também do poder cultural. Por isso, ainda há quem concorde com o discurso de que os índios são vagabundos. Ou que são todos uns aculturados que só querem terras para deixar o mato crescer”, diz o jornalista Cristiano Navarro, um dos diretores do documentário À Sombra de Um Delírio Verde, sobre o impacto da produção de etanol para as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul e a dificuldade de se conciliar os direitos indígenas com os interesses econômicos.

"O modelo que se quer instalar aqui é do século passado e não cabe mais no estado, que vai ser prejudicado. Fora que, por si só, a demarcação não vai melhorar em nada a situação indígena já que ter terra, hoje, não resolve o problema dos índios”, disse à Agência Brasil e à TV Brasil o presidente do Sindicato Rural de Dourados, Marisvaldo Zeuli, destacando as vantagens do modelo de produção agrícola sul-mato-grossense, de larga escala. Modelo graças ao qual o estado se tornou um dos maiores produtores brasileiros de soja, milho, cana-de-açúcar e carvão vegetal.


“Os caras que dizem defender os índios estão os condenando a viver perpetuamente no estado em que se encontram hoje”, disse o produtor Raul das Neves, dono de uma fazenda no município de Rio Brilhante (MS), próximo a Dourados (MS). A propriedade é vizinha de outra em que, entre idas e vindas, cerca de 140 índios guarani-kaiowá vivem acampados (ATT: Lincar com a segunda matéria) desde 2007. Atualmente, por força de uma decisão judicial, eles estão concentrados em 25 hectares, na aldeia conhecida por Laranjeira Ñanderu, aguardando a decisão final sobre a possível demarcação de uma área que afirmam ter pertencido a seus antepassados. Um hectare corresponde a dez mil metros quadrados, aproximadamente um campo de futebol de medidas oficiais.

“Vivemos na miséria porque não tem mais floresta, nem bicho pra gente caçar. Só tem fazenda com soja e pasto [ao redor das terras que os índios reivindicam]”, diz o cacique de Laranjeira Ñanderu, Farid Mariano. “Podem nos oferecer o que for, o que queremos é permanecer onde nossos antepassados morreram. E vamos permanecer. Para o índio, conforto é ter nossa terra”, acrescenta Mariano, explicando que, se a área for reconhecida, dezenas de famílias indígenas que abandonaram o grupo devido à falta de terras poderão voltar a viver na aldeia devidamente ampliada.

Já o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Eduardo Riedel, sustenta que o direito ao usufruto exclusivo da terra não vai solucionar os problemas dos índios. “A situação das comunidades indígenas é precária e os produtores rurais não questionam isso. Só que a origem do conflito é a fragilidade social, representada pela fome e pela falta de assistência à saúde e à educação em que vivem as comunidades indígenas”, frisou Riedel. Ele destacou que o setor rural responde por cerca de 18% do Produto Interno Bruto (PIB) estadual – a soma de bens e serviços produzidos no estado. “A criação ou ampliação de áreas indígenas é posta como a única solução, enquanto nós, produtores, somos colocados como bandidos. Se seguirmos a lógica de que [se os índios precisam] de mais terras basta ampliarmos os territórios já demarcados, onde vamos parar? Isso não terá fim nunca”.

Citando a situação da mais populosa reserva indígena do Mato Grosso do Sul, a Terra Indígena Dourados, onde os 3,5 mil hectares são insuficientes para que os cerca de 14 mil kaiowá, nhandeva e terena possam manter o modo de vida tradicional indígena, o cacique Getúlio Juca de Oliveira, uma das lideranças locais, afirma que, sem terras onde os índios possam plantar e viver, de nada adiantarão ações assistencialistas destinadas a tentar resolver a situação de miséria em que os índios vivem.


“Aqui não tem mais como a gente crescer. É tudo apertado. Precisamos de mais espaço e lutamos para aumentar a aldeia porque nosso medo é que daqui a mais cinco ou dez anos, com filho nascendo e a comunidade crescendo, não tenhamos mais lugar. Sem [mais] terra, pode ter vários tipos de apoio do governo que nada vai resolver”, diz o cacique, explicando que há anos os índios de Dourados aguardam que a União reconheça(ATT: Lincar com a terceira matéria)ao menos nove tekohas (territórios sagrados) na região.

Como a Fundação Nacional do Índio (Funai) não concluiu os estudos antropológicos necessários à demarcação das novas áreas e não comenta a possível dimensão das reservas, a reportagem optou por não reproduzir os números mencionados pelas lideranças indígenas ou produtores rurais. Ontem (8), a fundação divulgou o resultado preliminar de um dos processos de reconhecimento de 39 tekohas de sete áreas reivindicadas como indígenas. A conclusão dos processos é objeto de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público Federal (MPF), em 2007. O documento estabelecia que a Funai concluiria os estudos e os entregaria até abril de 2010 ao Ministério da Justiça para que este pudesse declarar terras indígenas os territórios identificados. Diante do descumprimento dos prazos, o MPF-MS recorreu à Justiça em agosto de 2011, cobrando o cumprimento do acordo.

"Acho que o índio tem que se integrar à sociedade. Porque demarcar as reservas que os índios estão pedindo vai trazer uma paz temporária, mas daqui a dez, vinte anos, os índios vão ser o dobro e vai ser preciso arrumar mais terra para eles. Tenho medo de que isso nunca tenha fim", acrescenta o fazendeiro Esmalte Barbosa Chaves, cuja fazenda, em Porto Cambira, Dourados (MS), foi parcialmente ocupada em 2004 por um grupo de índios desaldeados da Terra Indígena Dourados.

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