Exame Logo

Direitos humanos não é questão de direita e esquerda, diz diretora da HRW

Em entrevista à EXAME, diretora da Human Rights Watch no país comenta nossos principais gargalos na segurança pública

O Brasil obteve os piores resultados em homicídios, percepção da criminalidade e acesso às armas (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
LN

Letícia Naísa

Publicado em 2 de fevereiro de 2019 às 08h00.

Última atualização em 2 de fevereiro de 2019 às 08h00.

Desde sua campanha presidencial, Jair Bolsonaro levanta a bandeira da segurança pública . O primeiro mês de gestão se completa com o primeiro passo para o cumprimento de uma das promessas de campanha: flexibilização da posse de armas no país.

A medida foi alvo de críticas, uma delas da ONG internacional Human Rights Watch, que defende os direitos humanos . Para Maria Laura Canineu, diretora da organização no Brasil, a medida deve ser prejudicial principalmente para as mulheres. Um relatório divulgado este ano pela organização classificou a violência doméstica como uma epidemia no país.

Veja também

"É um número muito grande e ainda é subnotificada", afirma. Mesmo com a Lei Maria da Penha, ainda há muito a ser feito.

Em entrevista à EXAME, Canineu avalia os principais problemas e medidas relativos à segurança pública no país.

EXAME - Qual o principal problema de segurança pública no Brasil?

Maria Laura Canineu - Existem vários, mas posso começar por um problema que está por trás de toda a negligência que é a impunidade. A impunidade fomenta um ciclo de violência que não tem fim, que chegou a atingir um recorde em 2017 com mais de 64 mil homicídios no Brasil. Soubemos que existe um relatório que indica que a cada dez homicídios no Brasil, apenas dois são objetos de denúncia pelo Ministério Público. Isso é impunidade.

Grande parte dos crimes violentos no Brasil não recebe investigação, processo e responsabilização, gerando esse clima. E é especialmente problemático quando o Estado é violador. Este ano a polícia matou mais de 5 mil pessoas. No Rio de Janeiro, de maneira extraordinária. Foram mais de 1.500 pessoas mortas pela polícia em um estado com 17 milhões de pessoas. Nos EUA, por exemplo, apesar das diferenças, tem mais de 300 milhões de habitantes e a polícia matou mil pessoas no mesmo ano. Isso dá uma comparação do absurdo que a gente tem.

Obviamente a gente tem que reconhecer que a polícia no RJ enfrenta uma criminalidade violenta. Muitos são em razão de legítima defesa, mas muitos não são e sim, execução. Tem várias circunstâncias em que a polícia mata, muda cena do crime e não há responsabilização.

Quando o Estado comete abusos como esse, contribui mais para o ciclo de violência, porque diminui a chance de ter uma segurança pública mais eficiente, porque coloca o policial em risco. Quando o policial enfrenta um criminoso, o suspeito fica menos propenso a se render pacificamente quando ele sabe que pode ser executado. A própria comunidade em volta, quando sabe que a polícia age com excesso, não colabora. Por isso, os direitos humanos são relevantes.

Ver o suspeito como inimigo e como se estivesse em guerra é uma estratégia de segurança pública que a gente já viu acontecer e que não dá certo. Essa é a nossa análise. Não me parece, infelizmente, a partir de declarações, principalmente de governadores, que são responsáveis imediatos pelas polícias dos estados, parece que eles estão indo contrário a isso, quando eles falam sobre políticas de matar a qualquer custo, ao invés de pensar em investimentos em inteligência, na polícia civil, para que não haja clima de impunidade, a sociedade perdeu a confiança na segurança pública.

O treinamento que a polícia recebe tem relação com esse ciclo?

Tem. A gente sabe que, muitas vezes policiais em operações muitas vezes são muito novos, recém ingressantes na carreira e não têm treinamento para enfrentar situações de perigo. Passa por isso também, mas principalmente, por causa do trabalho que a gente faz, a gente sabe que falta para a polícia é dar oportunidade para a própria polícia participar do debate sobre segurança pública.

Hoje, qualquer policial que critique alguma ação governamental ou queira participar do debate por meio das redes sociais pode sofrer repressão e punição desproporcional. Estamos preocupados com as restrições à liberdade de expressão dos policiais. Q

uando eles se indignam em relação a alguma ação, eles limitam suas falas porque eles podem inclusive ser presos, afastados e outras penalidade por posts nas redes sociais, participação em protestos, por escrever um livro. E quem não melhor do que a polícia para participar do debate sobre qual é a segurança pública que a gente quer? Falta treinamento e participação deles no debate.

Como avalia o tratamento dado às minorias por parte da polícia?

Posso falar com mais certeza sobre o tratamento às mulheres. A falta de treinamento para lidar com casos de violência doméstica é muito clara na polícia do Brasil como um todo. Mesmo policiais que trabalham em delegacias da mulher às vezes não têm preparo suficiente para tratar os casos como eles devem ser tratados. Toda denúncia de violência contra mulher tem que ser efetivamente levada a sério. Já vimos situações em que se a mulher não chega ensanguentada na delegacia, não é levada a sério.

Em relação ao combate à violência contra a mulher ainda falta muito investimento, não temos polícia especializada em número suficiente para a quantidade de notificações. Mas mesmo sem isso, os policiais deveriam estar mais preparados.

Por que a violência doméstica foi classificada como epidemia no relatório da Human Rights Watch? Houve aumento do número de casos de feminicídio?

Os dados não são suficientes, não tem uma base comparativa muito boa para saber se houve um aumento ou não, há problemas na classificação dos boletins. Mas é um número muito grande e ainda a violência doméstica é sub notificada. Então acho que a epidemia é de violência doméstica e há ocasiões de homicídios como produto da violência doméstica e ela muitas vezes procurou ajuda e o estado não estava presente. É epidêmico se você comparar com outros países.

O Bolsonaro fez uma comparação com os padrões do Brasil com o resto dos países da OCDE. É uma comparação curiosa, porque o Brasil é o país da OCDE com um número muito superior de homicídios contra mulher.

A Lei Maria da Penha é efetiva para esses casos?

É uma lei exemplar, mas não é implementada de forma eficaz. Ela prevê vários mecanismos de proteção para as mulheres, mas o que a gente vê é que o Brasil ao invés de estar aumentando o número de equipamentos para combater a violência contra a mulher, está diminuindo, até pelo corte de gastos. Temos 75 abrigos para mulheres no Brasil inteiro, pouco mais de 23 foram fechados nos últimos anos.

A Lei Maria da Penha prevê esses mecanismos, não é só a questão policial, mas do apoio. A mulher precisa estar forte para enfrentar o processo e precisa confiar que a justiça vai ser feita. Até por isso a violência doméstica é sub notificada. E a lei prevê esses mecanismos de proteção, além da execução penal.

Outra coisa que a lei previu era a necessidade de investir em prevenção por meio de educação. Isso é uma questão que quase virou tabu, falar de questão de gênero. É uma lei considerada internacionalmente de referência.

Como chegou-se nesse ponto?

É uma epidemia que continua. Apesar de grandes avanços que o Brasil fez legalmente, continua havendo muitos casos. Não só a lei Maria da penha existe, como a lei do feminicídio. Se todos os instrumentos que estão previstos nessas legislações fossem colocados em prática, teria impacto na quantidade de casos. Não se levou a sério isso em um país que ainda tem uma cultura machista. Ainda existe a percepção de que a violência doméstica se resolve dentro de casa.

Quais são medidas de curto prazo que podem ajudar a resolver a questão da segurança pública?

Na questão da violência doméstica, pode-se fazer treinamento de policiais dentro e fora das delegacias da mulher. Antes de falar que precisa expandir o número de delegacias da mulher, o que precisa, mas toda delegacia deve estar preparada para lidar com casos como esses.

Outra coisa é expandir os horários das delegacias. São medidas que devem ser pensadas. Investir na capacidade investigativa desses casos. Em relação à polícia como um todo, acho que precisa aumentar a capacidade técnica investigativa para os crimes graves.

O governo Bolsonaro está com uma postura de combate à corrupção e ao crime organizado. Isso deve ser prioridade?

Acho que, logicamente, dentro do tema que a gente trabalha, crimes violentos e crime organizado devem ser prioridade. É uma sociedade que está temerosa e com razão pelos índices de homicídio e estupro, por exemplo. Ter medidas para lidar com essas questões é prioritário.

Mas tem que pensar no que é eficiente. Precisamos investigar melhor os crimes. Se você olhar no sistema prisional o número de pessoas presas por homicídio e aquelas presas por crimes não violentos, será que estamos prendendo as pessoas certas?

Para investir na capacidade investigatória, é preciso investir na polícia civil, mas também na interação com os outros órgãos, como o Ministério Público, que têm capacidade de investigar. Nossa preocupação é que o governo apoie medidas que ampliem penas sem pensar primeiro nessa questão da investigação e sem pensar nas consequências disso para um sistema prisional que já é controlado por facções criminosas.

É bem-vindo o plano de combater os crimes violentos se tratar o tema na sua complexidade e investir nas coisas certas.

Qual avaliação vocês fazem dos sinais que o governo deu nesse início de mandato para resolver a questão de segurança, como a flexibilização da posse de arma?

Vimos dois sinais ruins: a flexibilização do controle de armas e a indicação por parte do governo de que haverá fiscalização de ONGs mesmo sem recursos público. Isso se enquadra grande parte das ONGs no Brasil. Com relação às armas, vimos a medida como um erro, porque não existem estudos que comprovem que mais armas geram maior segurança. Pelo contrário, indicam mais violência. Não é uma decisão subsidiada em estudos científicos. E tem vários, tanto no Brasil quanto fora do Brasil.

As medidas não podem estar distante da realidade da segurança pública no Brasil. Não parece uma medida adequada para enfrentar uma coisa que é preocupação do governo, parece, e da opinião pública, que são os índices de criminalidade e violência. Considero um erro, especialmente considerando os índices de violência doméstica. Uma arma não vai ajudar as mulheres.

Como a organização prisional do Brasil influencia o crime organizado?

Facilita amplamente. O sistema prisional brasileiro e a ineficiência em lidar com esse sistema, o abandono do Estado, foram responsáveis pela situação hoje e pelo controle das prisões pelas facções criminosas. Não tem dúvida de que a falta de que a negligência e a falta de proteção e a superlotação, muitas pessoas nem deveriam estar em reclusão, tudo isso deu espaço para que as facções se organizassem e promovessem a proteção que os presos precisam em troca de favores.

Hoje a presença das facções extrapolou os muros das prisões e atua por fora. O descontrole do estado passa pela infraestrutura para separação dos presos. Falta justiça, porque muitos estão sem julgamento, são provisórios e ficam com condenados. O estado perdeu o controle, o que facilita o recrutamento.

Uma das propostas do Moro é de investimento em inteligência para combater as facções e o uso do Coaf contra organizações criminosas. São medidas que podem dar certo?

São medidas importantes, mas não podem ser destituídas de uma compreensão e de políticas que realmente resolvam o problema prisional. Por exemplo, o acesso à justiça. Hoje existem programas das agências de custódia que precisam ser internalizados e ainda não acontece de forma eficiente, que é a possibilidade do preso ver uma autoridade judicial logo após a prisão para verificar se é o caso de ficar na prisão ou não. Ou seja, você passa a selecionar melhor quem entra na prisão.

Investir nas audiências de custódia também. Você não pode fazer medidas como se a gente não tivesse um ambiente controlado por facções. Essa realidade que estamos lidando mostra que apenas 15% dos presos têm atividade laboral ou educação. Inteligência é essencial, mas outras medidas também.

Existe respeito aos direitos humanos no Brasil? Esse respeito deve se manter com um governo de direita?

Olha, nos assusta muito os governos populistas anti direitos tanto de esquerda quanto de direita. Na América Latina temos os dois extremos. Tem que ter um debate mais sofisticado em relação aos direitos humanos. Não é de esquerda nem de direita, eles são universais e têm que ser aplicados por todos os governos, independente da ideologia política. Esse debate é mal-feito e usado politicamente para distrair de assuntos que são realmente relevantes.

Nossa luta é por uma política pública mais eficiente. Sempre que uma política pública não respeita os direitos humanos, ela é ineficiente. Direitos humanos são para todo mundo. Precisa ter um debate mais qualificado sobre isso. O Brasil vive um momento muito difícil. Durante a campanha, tivemos uma preocupação com o discurso anti direitos humanos, o ano não começou bem para os direitos humanos.

Não é um momento fácil, mas quero acreditar que podemos contar com todas as instituições para garantir os direitos humanos. Esperamos que algumas promessas não sejam efetivadas.

Acompanhe tudo sobre:ArmasDireitos HumanosFeminicídiosGoverno BolsonaroSegurança pública

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se

Mais de Brasil

Mais na Exame