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Como uma eleição pode mudar o que uma sociedade considera aceitável

Se o processo eleitoral normaliza uma prática ou opinião, isso facilita "saída do armário" e coordenação, diz Leonardo Bursztyn, da Universidade de Chicago

Leonardo Bursztyn (Universidade de Chicago/Divulgação)

Leonardo Bursztyn (Universidade de Chicago/Divulgação)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 17 de outubro de 2018 às 16h13.

Última atualização em 17 de outubro de 2018 às 20h36.

São Paulo – Nas últimas semanas, um fenômeno ganhou as ruas brasileiras: a transformação da divergência política, central a qualquer democracia, em intolerância e violência de fato.

Foram registrados pela mídia e pela Justiça dezenas de casos, de xingamentos a ataques físicos, em especial contra mulheres e homossexuais. A Polícia Federal concluiu nesta quarta-feira (17) que o assassinato de um capoeirista em Salvador no dia da eleição surgiu de uma discussão política.

Este e a maior parte dos ataques registrados foi associado a apoiadores do candidato Jair Bolsonaro (PSL), líder nas pesquisas, que tem um histórico de declarações homofóbicas e já defendeu o fuzilamento de adversários políticos, assim como as práticas de tortura da ditadura militar.

Há uma semana, ele foi às redes sociais para se afastar da onda de violência: "Dispensamos voto e qualquer aproximação de quem pratica violência contra eleitores que não votam em mim. A esse tipo de gente, peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar”, escreveu no Twitter.

Algumas pistas do que está acontecendo no Brasil podem ser encontradas no estudo das normas sociais, que tem como um dos expoentes o americano Cass Sunstein, um dos juristas acadêmicos mais influentes do mundo.

O tema também é fértil para a economia comportamental, campo de especialidade do brasileiro Leonardo Bursztyn, de 35 anos, PhD em Harvard e professor assistente da Universidade de Chicago, a meca do liberalismo econômico mundial.

Bursztyn já teve seu trabalho publicado em algumas das mais prestigiadas publicações do ramo, como a American Economic Review e o Quarterly Journal of Economics.

Em julho de 2017, ele publicou com Georgy Egorov e Stefano Fiorin um estudo que mediu a propensão de participantes em expressarem opiniões anti-imigrantes diante de medidas de popularidade de Donald Trump. O título: "Do extremo ao mainstream: como as normas sociais se desfazem".

No início desta semana, Bursztyn conversou com EXAME por telefone. Veja a entrevista:

EXAME – O que são normas sociais?

Leonardo Bursztyn - As evidências recentes confirmam, cada vez mais, algo que é intuitivo: as pessoas se preocupam muito em como são vistas e como os outros vão avaliar o que fazemos e falamos. A gente vive em sociedade, e esta é uma característica dos seres humanos.

A percepção disso, se vamos ser punidos ou recompensados socialmente por uma determinada ação, é o que chamamos de normas sociais.

Nas escolas, os jovens se preocupam em não serem vistos como nerds, por exemplo. Na hora de consumir, você quer comprar uma coisa cara para acharem que você é rico. Muitas pessoas doam para caridade para os outros acharem que você é uma pessoa boa.

O próprio voto é um exemplo: em lugares onde ele não é obrigatório, o ato de votar é uma forma de sinalizar que você é uma pessoa preocupada e que pratica seu dever cívico. A gente faz muita coisa não porque realmente quer, mas porque acha que pega bem.

Como o processo eleitoral pode mudar estas normas?

Quando todo mundo está convencido de que uma opinião é tabu, pega mal, ou que pouca gente concorda com ela, essa pessoa vai ficar quieta mesmo concordando com esta opinião, por medo de ser julgada.

Por exemplo: se você era alguém mais xenófobo ou racista nos Estados Unidos. Durante muitos anos, a sociedade foi me dizendo que pouca gente compartilha da minha opinião.

Agora imagine que todo mundo assim pensasse que é minoria; eu não vou falar de um assunto em que ninguém concorda comigo. Se eu acho que você vai me julgar, não vou me expressar, e talvez você faça a mesma coisa comigo por medo.

Mas se algum processo que agrega informação me ensina que muita gente tem a mesma opinião, então eu não preciso mais ficar no armário. E um destes processos pode ser uma eleição.

Imagine que há um tópico bem saliente sendo discutido por um candidato, e você começa a ver que ele está tendo muito voto. Você achava que quase ninguém era contra imigrante nos EUA, e de repente um candidato está falando muito contra eles. E este candidato não apenas não está sendo punido, ele está tendo muito voto. Uma eleição faz as pessoas verem que algo que parecia tabu na verdade não era.

É necessário que o candidato vença ou basta ficar claro que aquela posição é mais disseminada?

São dois processos diferentes. Um é de aprendizado: se eu achava que 5% das pessoas tinham certa visão e o cara está com 40% de voto, eu me sinto mais confortável de expressá-la. Esse independe do candidato ganhar ou não.

A segunda questão é: para além do aprendizado, a vitória de um candidato que endossa certas opiniões pode ter um efeito separado, dando uma legitimidade extra a elas. Eu me sinto mais empoderado de expressar uma opinião quando um líder, ou uma celebridade, ou o presidente a expressa. É o efeito da institucionalização de uma opinião; que "se ela fosse tão ruim, não estaria no governo."

Não conheço estudo que tenha avaliado a vitória especificamente, mas tem evidências anedóticas. No nosso artigo, vimos que uma semana antes e uma semana depois da eleição, houve uma diferença muito grande em quão confortáveis os participantes do experimento estavam em relação a doar dinheiro publicamente para uma organização xenófoba.

Onde são vistas as mudanças de percepções?

Nos Estados Unidos, várias coisas que eram consideradas inimagináveis já foram normalizadas. Por exemplo: há pouco mais de um ano, houve uma manifestação de supremacistas brancos em Charlottesville com eles mostrando a cara na televisão.

E se as pessoas ficam mais confortáveis em expressar opiniões antes consideradas extremas, fica mais fácil de encontrar quem tem as mesmas opiniões, e mais fácil para elas organizarem crimes de ódio.

Houve um aumento muito grande ao longo da eleição americana deste tipo de crime, e é algo que também estamos vendo no Brasil e pode estar relacionado a este processo. As pessoas escondiam as opiniões mais agressivas e agora se sentem mais à vontade para expressá-las e tem mais formas de fazer isso, o que facilita a coordenação. É só ver os vídeos no whatsapp.

Qual seria o papel das lideranças políticas para contrabalançar este processo?

Essa é a grande pergunta. Tinha muita gente xenófoba e homofóbica que descobriu que não está sozinha, e o problema é que elas estão descobrindo a verdade. Não é que necessariamente foram criadas mais pessoas com estas visões, mas que depois que elas descobrem que não são minoria, é muito difícil elas desaprenderem isso.

O processo de saída do armário pode ser muito rápido, e colocar elas de volta é muito mais difícil e gradual. Não existe um consenso de como gerar isso.

Algumas coisas podem ser feitas, como por exemplo o uso da lei: punições fortes a isso, ou proibir certo tipo de expressão - como fez a Alemanha, onde expressões nazistas não são permitidas. É um processo mais demorado e mais de cima para baixo.

Isso nos leva a uma pergunta: como essas pessoas foram levadas a achar que eram minoria? Também foi algo gradual, de criação do “politicamente correto” e dos governos através de campanhas, além de mudanças legais e da mídia.

O processo de evolução da lei contém informação: se a lei agora autoriza casamento entre pessoas do mesmo sexo, então deve ser porque muita gente ou a maioria concorda. Porque o governo repete o que a sociedade pensa.

A mesma coisa com as telenovelas, que passaram a retratar mais os casais homossexuais. Se a novela está mostrando isso e tem muita audiência, muita gente deve concordar.

Mas a diferença da política é que ela é legitimada pelo voto. Se o próprio candidato se afasta do discurso violento, o fenômeno pode ser contido?

É uma boa pergunta, e seria uma forma de separar o papel da legitimidade dada pelo líder versus o aprendizado do que os outros pensam. Se o líder passa a criticar, você não tem mais essa desculpa.

Mas se você já entendeu, pelo processo da eleição, que a sociedade concorda com isso, você não vai desaprender, certo? Então mesmo que o líder mude de ideia, pode não ser suficiente.

E isso também filtra por outros caminhos, certo? Mesmo que a lei e o líder se afastem destas posições, as instituições também tem suas culturas e seu processo de aprendizado. 

As normas mudam. As pessoas mudam o jeito que elas falam, as coisas que elas fazem, e um comportamento antes considerado extremo se torna normal. Esse é um cenário mais assustador, talvez não chegue a esse ponto, mas é possível, e é o que estamos começando a discutir.

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