Comitê da ONU diz que governo Bolsonaro viola tratado contra tortura
Decreto presidencial que esvaziou Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura é avaliado como "retrocesso" na política de direitos humanos do Brasil
Clara Cerioni
Publicado em 16 de dezembro de 2019 às 12h02.
Última atualização em 16 de dezembro de 2019 às 12h17.
São Paulo — O governo de Jair Bolsonaro violou um tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) de combate à tortura, de acordo com um relatório de peritos do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura divulgado nesta segunda-feira (15).
O tratado em questão é o "Optional Protocol to the Convention against Torture (OPCAT)", do qual o Brasil faz parte desde 2007.
Em um relatório de onze páginas, os membros do órgão avaliam que o Decreto 9.831, assinado pelo presidente em 10 de junho, que alterou o funcionamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, "enfraqueceu severamente a política de prevenção da tortura no Brasil". Leia na íntegra o documento da ONU
De forma geral, o decreto definiu que os peritos de combate à tortura no Brasil deixariam de ser remunerados pela função e passariam a atuar de forma voluntária. A medida acabou, ainda, com a exigência de diversidade de gênero, raça e representação regional dos membros do órgão.
Além disso, o ato de Bolsonaro ainda proibiu que os novos peritos tenham qualquer vinculação a redes e entidades da sociedade civil e a instituições de ensino e pesquisa, dentre outros.
"A combinação de medidas do decreto significa que os membros não poderão continuar exercendo efetivamente seus mandatos, considerando o volume de trabalho realizado no Brasil. É implausível acreditar que um pequeno grupo de pessoas não remuneradas, em regime de meio período e sem suporte, poderiam realizar ações preventivas e visitas, de maneira compatível com o OPCAT", diz o documento.
O órgão da ONU aponta para uma soma de fatores, como a superlotação e os recorrentes massacres nos presídios brasileiros, que confirma a necessidade de que os peritos brasileiros "trabalhem em período integral, com uma remuneração adequada. "Especialistas voluntários não remunerados em período parcial não podem efetivamente cumprir tal tarefa".
Ativistas, entidades e organizações não governamentais denunciaram a medida à ONU em setembro. De acordo com a denúncia, a medida é um retrocesso ao combate à tortura e uma violação ao tratado. O documento alerta, ainda, para um retrocesso do Brasil no combate à tortura.
"Estas mudanças na abordagem do Estado Parte em relação à prevenção da tortura e ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura são difíceis de entender, contrárias ao progresso feito anteriormente para a implementação de suas obrigações o e constituem um retrocesso para o sistema no Brasil", diz o texto.
Apesar de não ter força punitiva, o documento da ONU desgasta ainda mais a imagem internacional do país, principalmente no que se refere à defesa dos direitos humanos. Atualmente o decreto está em disputa judicial: a Justiça Federal já suspendeu os efeitos da medida, mas o governo recorreu e espera julgamento.
Bolsonaro é um notório defensor do Coronel Brilhante Ustra, primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira por tortura durante a ditadura, que chama de "herói nacional".O presidente tambémcostuma fazer referências jocosas à símbolos da tortura no país, como "pau de arara" e "ponta da praia".
Recomendações
Após exposição das mudanças, o documento recomenda que o governo Bolsonaro ofereça recursos humanos e financiamento para o funcionamento do MNPCT.
"ODecreto Presidencial nº 9.831 deve ser revogado para garantir melhor que o sistema de prevenção de tortura do Brasil de forma eficiente e independente, com autonomia financeira e estrutural e capacidade adequada recursos, de acordo com as obrigações internacionais do Brasil", orientam os peritos da ONU.
Em seguida finalizam afirmando que "antes da criação do mecanismo, a política de prevenção da tortura no Brasil era insatisfatória. Além disso, as mudanças atuais significam que os mecanismos ainda a serem criados em muitos Estados podem seguir um modelo, que os tornaria incapazes de funcionar de acordo com o Protocolo Facultativo, o que colocaria o Brasil em grave violação de suas obrigações internacionais".
Procurado, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob gestão de Damares Alves, ainda não se pronunciou sobre o documento. O espaço está aberto para manifestações.