Coquetel químico: proposta de projeto de lei pretende lançar bases para gestão e controle de substâncias. (Thinkstock/Thinkstock)
Vanessa Barbosa
Publicado em 13 de setembro de 2016 às 16h24.
São Paulo - Você já prestou atenção na quantidade de substâncias químicas presentes em produtos comuns do dia a dia? Elas estão em todos os lugares: em artigos de cuidado pessoal, limpeza doméstica e cosméticos, passando por remédios, inseticidas, panelas antiaderentes e tintas até aditivos de alimentos e filmes plásticos — apenas para citar alguns. O resultado é um verdadeiro coquetel químico, que cresce no nosso cotidiano a um ritmo alucinante desde a segunda metade do século XX.
Se por um lado a moderna indústria química sintética criou soluções incríveis em resposta às necessidades básicas ligadas à preservação e melhoria da vida humana, ela também reserva riscos potenciais à nossa saúde e à do meio ambiente. São esses riscos que o Brasil começa a encarar, ao propor a primeira legislação nacional voltada ao tema de forma ampla.
O primeiro passo já foi dado: está aberto para consulta pública o anteprojeto de Lei que dispõe sobre o cadastro, a avaliação e o controle de substâncias químicas industriais produzidas, importadas e usadas em território nacional. Estima-se que um universo aproximado de 10 a 15 mil substâncias são colocadas no mercado brasileiro e utilizadas sem nenhum tipo de acompanhamento ou controle sistemático do poder público.
Um dos principais elementos do PL é justamente a criação do Cadastro Nacional de Substâncias Químicas Industriais. "O Brasil tem uma indústria química muito forte, a sexta maior do mundo em volume, o que torna a questão [de gestão de controle] premente. Nesse sentido, o cadastro é um instrumento fundamental porque estrutura toda a plataforma. Vai dar ao poder público a oportunidade de conhecer o universo de substâncias que circulam por aqui", afirma a diretora de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Letícia Reis Carvalho, em entrevista a EXAME.com.
Depois de passar pelo processo de consulta popular, que vai até 28 de setembro, o texto — criado no âmbito da Comissão Nacional de Segurança Química (Conasq), coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente — será encaminhado ao Congresso Nacional.
Para elaborar o anteprojeto de lei, um grupo de trabalho (GT) da Conasq, formado por representantes do setor público, privado, da sociedade civil e dos trabalhadores, analisou modelos e experiências de outros países na gestão e controle de substâncias químicas, com o intuito de verificar instrumentos e estruturas possíveis de serem aplicados à realidade brasileira.
Ao término desse trabalho, o país terá uma lista de substâncias controladas, seguindo investida semelhante de outros países pesquisados, como Estados Unidos, Europa e Canadá. "Com base nessas experiências, estimamos que o número de substâncias que vão precisar de controle é de 150 a 200, o que é algo relativamente baixo dentro do atual universo de substâncias sem acompanhamento", diz Carvalho.
O cadastro de substâncias químicas será público, qualquer pessoa vai poder acessá-lo. "A transparência é um dos pilares do PL e essencial para as pessoas entenderem que os químicos fazem parte da vida. A lei vai fundar uma nova relação da sociedade com os produtos químicos", avalia a diretora de qualidade ambiental do MMA.
A previsão é de que, até o fim do ano, o texto final do anteprojeto esteja pronto para ser submetido ao Congresso Nacional. Para a consulta pública, o MMA criou um hotsite.
Apesar de fechar algumas lacunas legislativas, o PL deixa de fora do cadastro e análise os princípios ativos de fármacos e agrotóxicos. O argumento, conforme texto que fundamenta a criação da lei, é de que, "no caso dos ingredientes ativos de agrotóxicos, a exclusão se deu devido aos possíveis prejuízos advindos da criação de novas obrigações para um setor já regulado por legislação específica, que inclui avaliações quanto à preocupação ambiental e de saúde humana".
Quanto aos princípios ativos de medicamentos, incluindo os de uso veterinário, o texto diz que eles foram excluídos "por possuírem uma forma de utilização específica, cuja ingestão e utilização é intencional para prevenir problemas de saúde, o que foge do escopo dessa lei."
Há controvérsias.
"A justificativa para deixar de lado princípios ativos de agrotóxicos e de medicamentos não se sustentam. Ao nosso ver, são registros distintos, e considerando as próprias legislações internacionais, muitas delas incluem princípios ativos destes compostos, como sendo uma substância química como outra qualquer", diz a EXAME.com Maria Cristina Canela, professora e pesquisadora associada ao Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (INCTAA).
Fruto da investida de pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de Campinas (Unicamp) e do qual participam inúmeras instituições de ensino e pesquisa do país, o INCTAA é referência no país em estudo de poluentes emergentes, especialmente aqueles com potencial de desregulação endócrina.
"É necessário esclarecer de maneira objetiva como deverá ser feita esta exclusão e se a legislação que irá cobrir estes compostos estará realmente em consonância com os aspectos toxicológicos e ambientais da própria regulamentação de substâncias químicas. Em se tratando de Brasil, as questões devem ser bem esclarecidas para que não haja nem duplicidade e tampouco omissão", enfatiza Canela.
Além de criticar a exclusão de agrotóxicos no PL, os pesquisadores também questionam alguns aspectos da avaliação de risco.
"A questão, por exemplo, da maneira de avaliar atualmente os riscos ambientais e humanos não é nada objetiva ou então é baseada apenas em testes laboratoriais que não estão relacionados com o ambiente ou com as condições em que os compostos são expostos. Por isso, muitos trabalhos científicos criticam os testes utilizados atualmente e este ponto deveria ser melhor esclarecido na nova legislação", explica a pesquisadora do INCTAA.
Em relação aos fármacos, os pesquisadores recomendam o enrijecimento das leis de controle e qualidade da água potável, uma vez que muitos resíduos desses produtos podem passar incólumes pelos sistemas de tratamento de água e esgoto, mas essa é uma preocupação que foge ao escopo da lei proposta em questão.
O Instituto prepara um documento com contribuições para a nova legislação. Você, como cidadão e consumidor, também pode (e deve) participar da construção dessa lei, afinal o que está em jogo é a sua saúde e a saúde do ambiente.
Conheça abaixo os principais pontos do anteprojeto de lei de gestão e controle de substâncias químicas industriais:
Para criar o Cadastro Nacional de Substâncias Químicas Industriais, produtores e importadores de substâncias químicas em quantidade igual ou superior a uma tonelada ao ano serão obrigados a prestar uma série de informações.
Essa prestação de conta inclui: (a) identificação da empresa produtora ou importadora; (b) identidade da substância química, de acordo com nome e número de registro no banco de dados da Chemical Abstracts Service, uma divisão da Chemical American Society; (c) faixa de quantidade produzida ou importada por ano; (d) usos da substância química; e (e) classes de perigo à saúde e ao meio ambiente, de acordo com o Sistema Harmonizado Globalmente para a Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos (ou GHS em inglês), que basicamente define os perigos dos produtos químicos e facilita a comunicação dessas informações.
O cadastro ficará disponível para inclusão de informações por um prazo de 3 anos a partir de sua criação. Ao fim do prazo, o governo terá conhecimento das substâncias químicas industriais produzidas e importadas em território nacional. As empresas que não efetuarem o cadastro de informações dentro do prazo determinado terão suas operações interrompidas até que prestem as informações devidas.
Como o conhecimento científico está em constante mudança, quando necessário, será possível atualizar a qualquer momento as informações prestadas no cadastro, principalmente diante de novas evidências sobre perigos potenciais de uma determinada substância.
Com o cadastro pronto, será hora de estabelecer os procedimentos de avaliação das chamadas substâncias químicas prioritárias. A responsabilidade pela realização da avaliação será do governo, mas caberá à indústria subsidiar essa avaliação com estudos e informações técnicas.
Órgãos federais responsáveis pelos setores de meio ambiente, saúde, trabalho e indústria formarão um comitê técnico com a função de selecionar e avaliar, quanto ao risco ao meio ambiente e à saúde humana, as substâncias químicas industriais constantes no cadastro. Uma vez identificadas essas substâncias prioritárias, entrará em cena um novo comitê, de caráter deliberativo, para definir as medidas de gestão de risco a serem implementadas, visando eliminar ou reduzir seus impactos potenciais à saúde e ao meio ambiente.
Para definir quais são as medidas ideais para cada caso, o comitê avaliará características como a persistência (ele não degrada naturalmente e permanece por anos na natureza), bioacumulação ou toxicidade ao meio ambiente; potencial de exposição humana ou ao meio ambiente; e ainda constar em alerta, acordo ou convenção internacional, do qual o Brasil seja signatário.
A capacidade de produzir ou ocasionar o aparecimento de câncer no organismo e a capacidade de estimular mutações e prejudicar de alguma forma a reprodução são outras características que serão analisadas.
Hormônios "impostores" e o caso do Bisfenol A envolvendo bebês
As substâncias também serão avaliadas quanto às características de disrupção endócrina, a capacidade de forjar hormônios impostores" que interferem no correto funcionamento do sistema endócrino. A literatura científica reúne vastas evidências dos efeitos deletérios na saúde pela exposição a essas substâncias, que se acumulam principalmente no tecido adiposo dos seres vivos, ou seja na gordura, e se acumulam ao longo da cadeia alimentar. Por estarmos no topo dessa cadeia, nós, humanos, estamos perigosamente expostos a elas.
Os efeitos dos perturbadores endócrinos muitas vezes evidenciam-se no longo prazo, após anos de acumulação nos organismos, a partir de ingestões mínimas durante a vida. Seus efeitos na saúde incluem disfunções da tireoide, atrofia dos testículos, abortos, redução da função do sistema imunológico e aumento de doenças infecciosas, problemas comportamentais e neurológicos, deformidades no nascimento, diminuição da fertilidade, entre outros. Um notório disruptor endócrino que ganhou as manchetes do país é o Bisfenol A, ou BPA.
Trata-se de uma substância incorporada à fabricação de policarbonato, que é utilizado na produção da maioria dos plásticos rígidos e transparentes, e também na produção da resina epóxi, que faz parte do revestimento interno de latas que acondicionam bebidas e alimentos. Em 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu proibir no Brasil a venda de mamadeiras de plástico, chupetas e outros utensílios de uso infantil que tenham a substância capaz de enganar o corpo e fazê-lo pensar que é hormônio real. Na literatura médica, o BPA tem sido associado a diversos tipos de câncer e problemas reprodutivos, além de obesidade, puberdade precoce e doenças cardíacas. Apesar de ter sido retirado de alguns produtos, o BPA ainda está presente no revestimento de interno de latas de alimentos em conserva, o que poderá ser revisto com a aprovação do PL.
Outras substâncias e elementos que devem ser revistos sob a lente mais rígida da nova lei são o polêmico amianto (também conhecido como asbesto), tolueno (comumente presente em tintas, colas e esmaltes de unhas), triclosan (encontrado em produtos bactericidas e em algumas pastas de dentes), chumbo (presente em tintas, baterias de carro e até em cosméticos), ftalatos (usados em um variedade de produtos, de plásticos a perfumes), parabenos (utilizados como conservantes em alimentos, medicamentos e em cosméticos), cádmio (encontrado, por exemplo, em baterias de celular) e mercúrio.
Após a avaliação, as substâncias consideradas preocupantes ficarão sujeitas a medidas para redução ou até mesmo eliminação de riscos que deverão ser cumpridas pelos produtores, importadores e empresas usuárias, alcançando assim toda a cadeia produtiva. Essas medidas vão desde acordos voluntários entre o governo e a indústria, passando pela definição de limites de concentração da substância química e exigência de autorização prévia ao seu uso, até a restrição e, em última instância, até mesmo a proibição de produção, importação, exportação, comércio e uso. O PL também prevê a possibilidade de substituição de substâncias consideradas de risco por outras alternativas mais seguras.