A eleição do “kit gay”
Buscas na internet por “kit gay” nestas eleições bateram recorde de 2011, quando o assunto veio à tona; Bolsonaro e Malafaia lideram menções ao “kit”
Clara Cerioni
Publicado em 17 de outubro de 2018 às 17h24.
Última atualização em 17 de outubro de 2018 às 19h02.
São Paulo - Renata Bragança, professora do ensino fundamental, recebeu recentemente, no WhatsApp, uma nova denúncia comprovadamente falsa. Segundo a mensagem, a “cartilha gay” estava lá, em uma escolinha no município de Ipatinga, no interior de Minas Gerais. No texto, outra professora afirmava que o material seria distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) a escolas de todo o país – um “alerta para proteger nossas crianças”, ao menos segundo a mensagem.
A professora, que recebe mensagens falsas com frequência, respondeu que pagaria R$ 100 pelo kit: “Não tinha, claro. Esse material nunca nem chegou às escolas”, comenta. Renata enviou à reportagem da Pública uma série de correntes e conteúdos compartilhados em grupos de família, de amigos e da igreja evangélica que frequenta que alertam sobre a distribuição do “kit gay” nas escolas ou de outras “tentativas de doutrinação de gênero” no ensino. Todos os conteúdos estão associados ao Partido dos Trabalhadores (PT) e impulsionam a campanha política de Jair Bolsonaro (PSL), que vem reiteradamente se referindo ao kit nas suas próprias redes.
Conteúdos postados pelo próprio Bolsonaro e seu filho Carlos Bolsonaro, vereador no Rio de Janeiro, foram alvo de decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na segunda-feira, 15 de outubro, o ministro Carlos Horbach determinou a retirada de seis vídeos que afirmaram que o livro Aparelho sexual e cia foi adotado durante a gestão de Haddad no MEC. Em agosto, Bolsonaro apresentou o livro no Jornal Nacional, da Rede Globo, e afirmou que o material foi distribuído para crianças pelo MEC na gestão de Fernando Haddad.
“Além do ‘kit gay’, recebo mensagens dizendo que as meninas vão ser obrigadas a beijar outras meninas, que o Haddad vai fechar as igrejas, que vai obrigar as escolas a ensinar que todos são gays. Uma, duas, três, de várias pessoas diferentes”, relata a professora.
Na experiência de Renata, mensagens sobre o “kit gay” são difíceis de contestar, mesmo ela sendo professora e afirmando aos que enviam as mensagens falsas de que essa realidade está longe de ser a da sala de aula. “Todo mundo quer proteger uma criança, criança é sagrada na sociedade. Mas eles se aproveitam de uma brecha que foi descobrir que os pais não vão na escola, no máximo deixam os filhos e buscam, mas eles não sabem o que acontece lá. Qualquer mentira é difícil de desmentir”, reclama.
Postagens e pesquisas por “kit gay” disparam nas redes na eleição
A pedido da Pública, o Monitor do Debate Político no Meio Digital listou as dez publicações mais compartilhadas que mencionam o “kit gay” no Facebook de 15 de setembro a 15 de outubro. O monitor é um projeto do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP).
No topo das publicações mais compartilhadas está o perfil oficial do candidato Jair Bolsonaro, que reiteradamente se refere a Haddad como o “pai do kit gay”. A publicação no Facebook, no dia 10 de outubro, que teve mais de 115 mil compartilhamentos faz ataques a Haddad e reafirma que o petista é o criador do "kit".
A segunda publicação com mais compartilhamentos foi feita pelo deputado federal pelo PT, Enio Verri. Neste caso, a postagem questiona as afirmações de Bolsonaro sobre o “kit” e traz uma entrevista de Haddad sobre o boato. A postagem teve 35 mil compartilhamentos.
A terceira, quarta e quinta publicações com mais compartilhamentos são todas favoráveis à versão de Bolsonaro, feitas por páginas como Brasil com Bolsonaro, Somos Todos Bolsonaro e Movimento Brasil Livre (MBL). Juntas, elas somam 77 mil compartilhamentos.
O Monitor rastreou também conteúdos antigos que voltaram a ser compartilhados no período eleitoral. No topo deles, está uma postagem do site evangélico Gospel Prime, que afirma que o “kit gay” seria reformulado e lançado até o fim do ano de 2011. A postagem faz referência a uma matéria da revista Veja na qual Haddad afirmava que o material anti-homofobia seria revisado, sem custos adicionais, após a pressão de grupos religiosos. A postagem do Gospel Prime alcançou 140 mil compartilhamentos.
Além desse conteúdo, uma reportagem da revista Nova Escola, que esclarece do que se tratava o material “escola sem homofobia”, também voltou a circular no Facebook. O conteúdo de 2015 alcançou 22 mil compartilhamentos.
“As páginas que estão fazendo campanha para Bolsonaro claramente estão apelando para exageros como ‘protejam suas crianças!’, sugerindo que o material seria nocivo aos jovens. Do outro lado, a campanha de Haddad faz um grande esforço para desmentir o caso, mas com o ônus de ter de esclarecer as nuances do projeto original”, comenta o professor da USP e coordenador do Monitor, Márcio Moretto. Para o pesquisador, como, de fato, houve uma tentativa do PT de produzir material de conscientização sobre a homofobia, foi criada uma zona cinzenta fértil para todo tipo de abusos.
Família Bolsonaro e pastor Malafaia lideram menções ao “kit gay”
A Pública, através do Crowdtangle – ferramenta de monitoramento do Facebook, Twitter e Instagram –, pesquisou os conteúdos com maior número de engajamento nas três redes que mencionaram o “kit gay” na semana anterior à votação de primeiro turno e na seguinte. O resultado: Jair Bolsonaro, seu filho Carlos (PSL-RJ) e o pastor Silas Malafaia estão entre os autores que alcançaram maior engajamento citando o “kit”.
O pastor Silas Malafaia também é autor de um vídeo no qual Bolsonaro afirma que Haddad é o pai do “kit gay”. Apenas essa publicação teve mais de 210 mil visualizações em cerca de 24 horas e quase 7,5 mil compartilhamentos. Malafaia é um tuiteiro contumaz sobre o kit: desde 1º de outubro, o pastor fez 15 postagens sobre o “kit gay” – média de um tuíte por dia –, todas associadas ao candidato do PT. No mesmo período, Malafaia fez apenas oito tuítes com a palavra “Deus”.
Outras páginas de Facebook de conteúdo religioso também relacionaram o PT à criação do material. Frases de Fé, Paraclitus, Apocalink e O Leão de Judá estão entre as que mais geraram compartilhamentos. Páginas de apoio a Bolsonaro também disseminam o conteúdo, como a Somos Todos Bolsonaro, Chega de Corruptos – mais de uma vez no mesmo dia –, Brasil Verde e Amarelo, Exército Bolsonaro, Eu Vou Votar no Bolsonaro, Direita Opressora e Bolsonaro Sarcástico. Ao todo, essas páginas geraram quase 14 mil reações e mais de 85 mil compartilhamentos.
Segundo a ferramenta de pesquisa do Google, o Trends, a quantidade de buscas na internet sobre o termo “kit gay” em setembro de 2018 foi a maior já registrada, superando até quando o assunto eclodiu pela primeira vez em 2011. Entre os assuntos mais relacionados a essa busca estão “escola” e os dois candidatos à presidência: “Bolsonaro” e “Haddad”.
Boatos encontram no WhatsApp terreno ideal
Os responsáveis pelas iniciativas de checagem de boatos E-Farsas e Boatos.org são unânimes em concordar que o “kit gay” tem sido um argumento onipresente na campanha política deste ano.
Como explica Edgard Matsuki, fundador do site Boatos.org, as buscas pelo “kit” cresceram significativamente no período de eleições, assim como as correntes que foram desmentidas pelos checadores. “Não entramos na discussão principal se Haddad é pai do “kit gay” ou não, porém tudo que é imagem que não fazia parte do projeto original, aí sim, a gente entrou”, explica.
Segundo Matsuki, uma das imagens mais utilizadas é a de uma campanha do Ministério da Saúde de combate ao HIV voltada para adultos, que é apresentada como se fosse material do conteúdo desenvolvido para as escolas. “Por mais que você mostre o fato objetivo, que não é esse o material de escola, as pessoas não querem ouvir muito. Por outro lado, tem muita gente que compartilha a informação correta para tentar esclarecer. Posso te deixar claro que, sem dúvida, esse é um dos temas que mais estão sendo falados nas eleições, principalmente utilizado como argumento para voto ou não voto”, avalia.
Na impressão de Gilmar Lopes, criador do E-Farsas, os boatos sobre o kit gay” circularam com força no primeiro turno, mas voltaram de forma ainda mais intensa com a definição do confronto entre Bolsonaro e Haddad. “É a mesma corrente de anos atrás, mas com uma nova roupagem. Quando desmentimos essas histórias, muita gente fica brava, nos acusam de não sermos imparciais. Há quem diga que, mesmo sendo mentira, eu não deveria desmentir para não atrapalhar a candidatura do outro lado”, relata.
“De forma geral, questões identitárias, que envolvem uma série de preconceitos como homofobia, machismo etc., estão mais proeminentes neste debate atual que outros temas macro, como políticas públicas, habitação, saneamento básico e educação”, afirma o pesquisador da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Lucas Calil.
O grupo vem monitorando o debate nas redes sociais desde 2013 e avaliou, no domingo das votações do 1º turno, mais de 1,7 milhão de menções com ofensas no Twitter relacionadas às eleições. No levantamento, LGBTs foram o terceiro tema mais citado em postagens ofensivas — nordestinos ficaram em primeiro lugar. Em segundo, vieram discussões sobre nazismo e fascismo.
Segundo Calil, os confrontos nas redes digitais sobre temas como o “kit gay” e direitos LGBT têm se dado de forma ainda mais intensa que nas eleições de 2014. Na análise do pesquisador, atualmente, fora os direitos LGBT e questões de gênero, os outros únicos temas que têm se mostrado tão capazes de engajamento nas redes são a corrupção e a segurança pública.
O problema é que as redes mais facilmente rastreáveis, como Facebook e Twitter, são apenas a ponta do iceberg na disseminação de conteúdos sobre o “kit gay”. De acordo com o pesquisador do Instituto de Internet da Universidade de Oxford, na Inglaterra, Caio Machado, as mensagens de WhatsApp têm apresentado mais frequentemente discursos de ódio ligado a temas como a homossexualidade que as de outras redes como o Twitter e o Facebook. “O material que circula no WhatsApp, de certa forma, não tem dono. Ele tem uma retórica própria, que pode ser falaciosa. Você nunca vai remontar quem criou ou disse aquilo. Além disso, é muito difícil você mensurar o que é disparado diretamente pelas campanhas e o que é feito por usuários”, avalia.
Segundo o pesquisador, que prepara uma pesquisa sobre conteúdos no WhatsApp no contexto das eleições brasileiras, o cenário nacional tem sido diferente da eleição de Donald Trump, entre outros motivos, justamente pela predominância do aplicativo em nosso país. “O Brasil sozinho tem quase 10% dos usuários do WhatsApp do mundo. Os Estados Unidos são mais Facebook e Twitter, e isso se revelou inclusive na disseminação de notícias falsas: o que a gente detectou no Twitter no Brasil foi o menor índice de notícias falsas até agora, não tem porque alguém se expor lá se você tem essa massa de WhatsApp disponível”, avalia.
Boatos do “kit gay” definem aliados e inimigos e espalham pânico social
Em 2012, a coordenadora do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (UnB), Tatiana Lionço, tornou-se alvo de uma campanha difamatória na internet conduzida por Bolsonaro, então deputado federal.
À época, Tatiana falou sobre sexualidade na infância durante o IX Seminário LGBT na Câmara. “Bolsonaro editou a minha fala e levou a sociedade a entender que eu estaria defendendo a ‘homossexualidade infantil’, começaram a produzir conteúdos dizendo que eu estaria fazendo inclusive um estímulo à pedofilia”, relata a pesquisadora. Dois anos depois, a Câmara dos Deputados publicou nota sobre o evento, com o conteúdo das palestras na íntegra. “Essa é uma das pautas que mais mobiliza ódio e repulsa social. A figura do pedófilo e do abusador sexual de crianças é uma das figuras do monstro moral contemporâneo”, afirma Tatiana.
Tatiana acionou a Procuradoria-Geral da República e o Ministério Público pelos crimes de difamação e calúnia, mas os processos foram arquivados porque ambas as instituições entenderam que a questão deveria ser tratada no âmbito civil, como danos morais. A pesquisadora enviou ofício também à Presidência da Câmara e a resposta que obteve foi que o deputado estava protegido pela liberdade de expressão. “O Estado brasileiro foi absolutamente conivente com isso”, desabafa.
Para o doutor em ciência política e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Thiago Coacci, a pauta do “kit gay” é um gatilho utilizado para despertar o pânico moral. “Pânicos morais são um fenômeno já identificado desde a década de 1960 pelas ciências sociais. Eles ocorrem quando há um relativo consenso na sociedade ou em parte significativa dela de que um grupo de pessoas ou comportamento ameaça a ordem social. Por serem um fenômeno social de massa, são muito utilizados politicamente”, explica.
Segundo o pesquisador, no atual contexto brasileiro, movimentos feministas e LGBT são associados à suposta degradação de valores, e isso não ocorre por acaso. “Pânicos morais não são fenômenos irracionais ou que ocorrem espontaneamente, frequentemente são frutos da ação coordenada e intencional de grupos organizados, como igrejas ou partidos”, afirma Coacci.
De acordo com a pesquisadora da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação Magali Cunha, especialista em comunicação, religião e política, embora a crítica a direitos LGBT gere um consenso entre os principais líderes evangélicos, sobretudo os pentecostais, o mesmo não ocorre com os fiéis.
Na visão da pesquisadora, essas pessoas, embora não concordem necessariamente com discursos extremistas dos líderes das igrejas, acabam sem meios para contrapor essas posições. “Boa parte dos pastores midiáticos, esses que exercem maior influência, como o Malafaia, são donos de igrejas. Nesse caso, não tem nenhum questionamento, diferente de outras igrejas em que há eleições para pastores ou escolhas dentro de uma forma mais participativa. Esses líderes se sustentam porque não há nenhuma organização institucional que questione a autoridade deles”, avalia.
Contudo, como aponta a pós-doutoranda em ciência política na UFMG, Viviane Gonçalves em ciência política da Universidade Nacional de Brasília (UnB) Viviane Gonçalves, utilizar discursos morais em campanhas políticas não é uma exclusividade de 2018. “Em 1989, Fernando Collor levou a público a história – posteriormente desmentida – de que Lula teria pedido à mãe de sua filha Lurian que a abortasse. Em 2010, Dilma Rousseff e José Serra também protagonizaram acusações e explicações quanto à temática do aborto. No último pleito, em 2014, a capacidade ou competência de Rousseff para governar foi questionada num explícito alinhamento ao debate quanto ao lugar das mulheres ser no ambiente doméstico ou fora de casa, inclusive com atuação direta nas tomadas de decisões”, relembra.
Polêmica sobre “kit” silencia problemas reais como abuso sexual e intolerância
Se, por um lado, os boatos sobre o “kit gay” se alimentam da preocupação de pais com suas crianças, por outro, eles acabam tomando o lugar de debates de problemas reais, como assédio sexual e a violência contra jovens LGBT. “Nós deveríamos ter o direito de conversar abertamente sobre isso, inclusive porque existem muitos crimes e muitas violências relacionadas à sexualidade”, afirma Tatiana Lionço.
Tiago Coacci relembra que o objetivo que levou à formulação do kit “Brasil sem homofobia” para as escolas: facilitar atividades para a promoção do respeito e o fim da violência contra mulheres e a população LGBT. “Discutir gênero e sexualidade nas escolas é uma forma de concretizar direitos à liberdade, igualdade e, em última instância, até mesmo o direito à vida, que nos é negado tantas vezes por meio de assassinatos LGBTfóbicos”, argumenta.
Enquanto o debate não avança, a professora Renata Bragança, que continua recebendo correntes sobre o “kit gay” nas escolas, segue precisando intervir para diminuir a violência gerada por preconceito no ambiente escolar. “É engraçado que a gente tem que ficar o tempo todo mediando homofobia na sala de aula, aluno xingando o outro de ‘viadinho’, batendo no outro, e ninguém está preocupado com isso, com o problema de fato”, lamenta.
Leia a checagem que desmente que Haddad teria criado o “kit gay” – material encomendado pela Câmara nunca foi distribuído e era, na verdade, para promover tolerância e contra discriminação de homossexuais.