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Opinião: Precisamos falar sobre o agro brasileiro

Em artigo exclusivo, José Pugas, da gestora JGP, discute os mitos que retardam o crescimento do agronegócio e colocam em risco o protagonismo do campo brasileiro em escala global

Máquinas agrícolas realizam a colheita da soja na fazenda Morro Azul, próxima de Tangará da Serra (Paulo Fridman/Bloomberg)
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Da Redação

Publicado em 10 de março de 2022 às 12h00.

Última atualização em 11 de março de 2022 às 17h36.

Mitos são essenciais para a construção de nossas identidades individuais e de grupo. Joseph Campbell afirmava que os mitos tinham como função principal guiar o espírito humano e, por que não, nos conferir um propósito de existência. No entanto, mitos podem ser enganosos quando compreendidos literalmente e insensíveis às mudanças dos tempos. Mitos que se transformam em mentiras convenientes perdem suas funções de guiar o espírito humano à grandeza heroica e passam a ser evidências falsas para fantasias coletivas.

O agronegócio brasileiro tem todos os predicados míticos de uma história heroica. A partir de tecnologias disruptivas, conquistamos áreas até então impossíveis de produzir e saímos da desagradável condição de importadores de alimentos para uma potência agrícola em uma geração. Como Gilgamesh, domamos a natureza em nome da civilização.

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Hoje, é impossível pensarmos qualquer outro setor brasileiro que tenha tamanho vigor e que deposite tanto a fé dos economistas e governantes como o agronegócio. De patinho feio e representante do atraso nacional, como as atividades primárias foram vistas por muitas décadas, o agro virou tech, o agro virou pop, o agro virou tudo.

Em 2022, cabe-nos uma pergunta lúcida. Quais mitos oriundos dessa jornada campbeliana permanecem como contos significativos que orientam nosso espírito nacional e quais se tornaram distrações nocivas para problemas que, como uma bomba-relógio, ameaçam a cada tique-taque dinamitar o principal setor econômico brasileiro?

A dissonância entre o que ouvimos nas rodas de conversas entusiasmadas dos representantes do PIB agro brasileiro e o que captamos nos simpósios argutos dos formadores de opinião globais nos dão uma pista de como responder a essa pergunta essencial para nosso desenvolvimento setorial. E nesse exercício doloroso de nos observamos no espelho como realmente somos, fomos identificando quais são as fantasias que estão inevitavelmente nos levando à negação e à impreterível perda de competitividade e relevância econômica e geopolítica.

O primeiro desses mitos que persiste em nos retardar é que o mundo sempre dependerá do Brasil e de sua capacidade ímpar de alimentar a classe média crescente global. Esse é um caso típico de falácia em que parte dos dados é verídica, mas limitada para entender a complexidade do contexto emergente. É verdade que a classe média global está crescendo e que a demanda por proteína vai escalar a picos quase inatingíveis perante as capacidades produtivas globais.

Por sorte, o mundo tem o Brasil e suas vastas extensões territoriais com uma produção altamente tecnificada para suprir com grãos e carne uma população que continuará crescendo até 2050, não é mesmo? Esse mito de redentor da fome global obscurece, no entanto, que o consumo de proteínas não necessariamente se dará pelas fontes em que o Brasil se especializou: proteína animal mantida por uma conversão ineficiente de sacas de grãos em arrobas de carne.

Por que focarmos na carne, principalmente bovina, nessa nossa análise? Primeiro, porque o complexo da carne, ao somarmos a pecuária nacional e os grãos produzidos no Brasil para nutrição animal em outros países produtores, responde por 70% de nosso complexo agroexportador. Segundo, porque nenhuma outra categoria alimentar passará por uma mudança mais profunda nas próximas décadas. O mundo aumentará seu consumo de proteína, mas não devemos apostar que a proteína será originalmente quadrúpede e ruminante.

O custo ambiental é muito elevado e geopoliticamente o setor de proteína animal fragiliza as nações consumidoras não produtoras. A ascensão das proteínas alternativas, seja plant-based ou cell-based, vai mudar de forma definitiva a forma que pensamos proteínas. Ficção científica? Os números provam que não. A redução de preço, a diversificação de métodos produtivos e os ganhos de sabor e consistência têm se aliado ao interesse internacional por proteínas alternativas e transformado esse setor na estrela dos rounds de investimentos em startups nos Estados Unidos e Europa. Se a dúvida ainda persiste, pergunte aos próprios traders de carne e grandes frigoríficos brasileiros. Afinal, eles são os maiores investidores da transição proteica.

O impacto desse salto em direção às proteínas alternativas sobre a geografia produtiva será definitivo. A possibilidade de produzir proteína em escala e preço com baixo impacto ambiental em países sem aptidão para grandes rebanhos ou produções de grãos (em que o Brasil é imbatível) é tentadora demais para ser ignorada por esses países que até então são os maiores importadores de nossos produtos. Essa transição não se dará de uma hora para outra. Pelos próximos anos, o mito da dependência alimentar do mundo seguirá se provando verdade até o momento que deixará de sê-lo.

Como convidados inconvenientes, mas necessários, seguiremos participando dos fluxos internacionais de negócios. Como em todo relacionamento tóxico, no entanto, a cada gafe ou constrangimento do gigante brasileiro, as partes desagradadas investirão mais para adiantar a chegada do momento em que poderão se ver livres da obrigação de nos incluir.

Esse momento se aproxima com a velocidade típica das inovações disruptivas e do ódio do amante abusado. Com a covid e a quebra das cadeias internacionais de suprimento, a autonomia alimentar se tornou imperiosa e o que eram investimentos para um futuro em que os faux-pas ambientais pudessem deixar de ser tolerados ganham ares de investimentos estratégicos para soberanias nacionais. Inclusive da China, próximo mito que trataremos.

Dependência da China

Uma vez confrontados com a perda de mercados, recorremos sempre ao argumento que sempre teremos a China. Voraz no consumo de commodities de todos os tipos e sortes, a potência asiática é considerada nosso reduto de esperança quando União Europeia ou os países árabes nos esnobam. A Arábia Saudita quer investir os seus petrodólares em aviários e ser a maior fornecedora de avicultura Halal do planeta? Não tem problemas, a China compensa. A Europa não nos quer mais pois desmatamos nossas florestas? Deixe os intrometidos europeus de lado, a China respeita nossa soberania e não nos cobrará pelos nossos pecados ambientais. Enquanto o primeiro mito da dependência global em relação ao Brasil se deteriorará aos poucos, esse segundo já não se sustenta para aqueles de olhos mais atentos.

No ano passado, fomos surpreendidos com a interrupção inédita de compra de carne brasileira pelos chineses de 04 de setembro a 15 de dezembro. Lembro-me bem que na primeira semana do bloqueio, estava conversando com um grande pecuarista e jocosamente, eivado pela hubris típica que o agro nacional adquiriu nos últimos anos, falava que a China não conseguiria ficar sem nossos bois. Passadas algumas semanas, o mesmo pecuarista passava a fazer projeções que aquele pesadelo não duraria mais que duas semanas.

Os grupos de WhatsApp falavam que aquela pirraça ia prejudicar mais a China que o Brasil. Passado o segundo mês, o luto passou da negação para barganha e aceitação. Os chineses não se levantariam contra o Partido Comunista pela falta da picanha brasileira, como alguns mais desesperados chegaram a supor. Aos que entendem as sutilezas do mercado internacional, ficou claro que não podemos depender de nossos primos ricos do oriente para sustentar a nossa resistência contra as mudanças geopolíticas globais que nos retiram a competitividade. Até mesmo porque a China também está comprometida com a eliminação do desmatamento — de qualquer tipo: legal ou ilegal — de suas cadeias de commodities.

Aos atentos, os sinais haviam sido dados anos antes do embargo chinês de 2021. A busca pela autossuficiência alimentar nos principais grãos se arrasta há mais de uma década e é considerada estratégica pelo governo comunista. Enquanto estávamos distraídos contando os dias que os chineses pediriam arrego e desculpas por terem cometido a ousadia de barrar nossa carne, o ministro de agricultura chinês anunciava que a China havia conseguido atingir a soberania na produção de sementes de soja e que a autossuficiência na produção da oleaginosa, incluindo soja para consumo humano, seria alcançada, ainda que com certo atraso.

Desde 2010, a produção total de grãos cresceu, em média, 1,8% ao ano, alcançando um recorde de 669,5 milhões de toneladas em 2020. No mesmo período, a taxa média anual de aumento populacional natural foi de apenas 0,52%. O aumento da produção média de grãos per capita de 417 para 474 quilos entre 2010 e 2020 é o número mais significativo de todos, demonstrando que, em termos de produção de grãos, a China desfruta agora de um superávit muito confortável, acima dos 400 kg por cabeça considerados como a exigência mínima para atender às suas necessidades diretas e indiretas de consumo de grãos.

O desejo pela autossuficiência foi renovado com o 14º Plano Quinquenal Chinês, no qual grande parte dos objetivos listados estão diretamente atrelados à redução de dependência chinesa de alimentos importados. As limitações de áreas aráveis são uma realidade, fato. Mas vale a lembrança que, em 1970, o cerrado brasileiro era considerado uma terra improdutiva, com pouca fertilidade, ácida, com baixo teor de matéria orgânica e de nutrientes químicos para plantas. Se nós conseguimos, deveríamos duvidar que os chineses conseguirão a mesma proeza?

Além dessa capacidade de conquista de sua autossuficiência, a aproximação da China com países africanos e a possibilidade concreta de uma Rússia comercialmente alinhada com a China, fornecendo trigo, milho e soja em abundância para atender o reduzido déficit da produção chinesa, completam o quadro. Apesar de sermos produtores competitivos não somos únicos. E definitivamente a China manterá suas escolhas de parceiros comerciais não mais por dependência e sim por conveniência.

Àqueles incrédulos que, ao serem indagados sobre a capacidade de autossuficiência chinesa, respondem cripticamente que não se deve confiar nos números chineses que confirmam esse cenário benéfico aos chineses e desfavorável ao Brasil, recomendo que vejam Don’t Look Up. Qualquer similaridade com seu comportamento negacionista não será mera coincidência.

E vamos ao último e mais controverso dos mitos: o Código Florestal Brasileiro é o mais robusto do mundo, portanto qualquer questionamento à nossa política ambiental é uma conspiração. Sem querer entrar nas profundidades do Código Florestal Brasileiro — que considero com muitas virtudes, bem completo e robusto — vamos nos ater às partes controversas que põem esse mito por terra. Estamos falando do desmatamento e sua divisão entre desmatamento legal e ilegal.

Para começarmos a análise dessa falácia, vou tomar emprestada uma frase de uma objetividade nórdica cruel, pronunciada por um dos executivos da gigante norueguesa Storebrand: investidores e consumidores não querem saber da legalidade ou ilegalidade do desmatamento, mas sim da inexistência do desmatamento.

Ao ouvirem críticas de estrangeiros sobre esse trecho do Código Florestal, muitos se apoiam em discursos nacionalistas de invasão da soberania nacional e ignoram o fato de que não se discute globalmente a mudança no Código Florestal Brasileiro. O debate internacional é na defesa da erradicação de qualquer tipo de subtração vegetal e biodiversidade nos biomas brasileiros. E estariam eles errados?

Somos uma geração sortuda de brasileiros. Finalmente conseguimos usar da nossa riqueza ambiental ímpar como lastro para o crescimento econômico e reconhecimento internacional como protagonistas globais da economia verde. No entanto, em mais um dos momentos de triste ironia que marcou o desenvolvimento econômico brasileiro, negamos o fato e achamos que venceremos pelas antigas regras ainda que as novas nos sejam infinitamente mais favoráveis.

Mudanças climáticas

Por teimosia, arrogância, pirraça infantil ou total falta de imaginação histórica, ficamos sob o holofote da opinião pública global, orgulhosos de nossa ignorância esbanjadora enquanto a plateia piedosa nos pede para reconsiderar o que estamos fazendo. A diferença é que quando o assunto são as mudanças climáticas, nossos abusos são sentidos por todos e não somente por nós, então não podemos esperar o mesmo nível de tolerância que tínhamos da opinião internacional que apenas lamentava que seguíamos como o país do futuro inalcançável. Os países interferirão, sanções serão impostas, barreiras levantadas e não adianta apelar para OMC, pois o que fazemos ao ignorar as boas práticas ambientais globais não é um ato de soberania, mas um ato de dumping ambiental. Não me parece muito inteligente e realmente não é.

Poderíamos seguir esse artigo com várias outras falácias, tais como a que a Europa já destruiu todas suas florestas e agora não quer deixar que façamos o mesmo (lembro-me de minha mãe perguntando se, caso meus amigos pulassem no abismo, eu pularia com eles) e ignorando que a Europa já replantou um Uruguai de novas florestas desde 1990, mesmo volume de área desmatada na Amazônia Legal Brasileira entre 2004 e 2021.

Contudo, não é esse nosso objetivo. Escrevemos esse artigo com a sofreguidão da garganta que guarda o grito seco daqueles que veem que as mentiras convenientes foram longe demais e que precisamos falar de verdades inconvenientes. Já passou da hora de contarmos ao agro brasileiro que o Papai Noel não existe, ainda que isso estrague o espírito natalino que rega os sonhos de safras recordes sentenciadas pelas mudanças climáticas ou parcerias comerciais sólidas constituídas de ar e esperanças vãs.

 

*José Pugas é sócio e responsável pelas estratégias de crédito sustentável da JGP, gestora de recursos fundada em 1998 e tem cerca de R$ 21 bilhões sob gestão.

 

 

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