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Gustavo Gusmão
Publicado em 6 de novembro de 2018 às 05h55.
Última atualização em 14 de novembro de 2018 às 11h31.
São Paulo — Um texto que parece ter sido copiado e colado descreve um projeto inovador. A promessa é de dinheiro fácil para os primeiros a participar — e tudo que você precisa fazer é se cadastrar neste link e convidar mais pessoas para ser parte do esquema. Pirâmide? Soa como uma, mas não é necessariamente o caso. Esse método de "marketing boca a boca" está sendo usado por um projeto israelense chamado Initiative Q, que promete ser o sistema de pagamento do futuro e dá alguns milhares de "Qs", a moeda virtual, a quem estiver disposto a participar. E não, não é nenhum esquema fraudulento, garante o fundador da empresa, Saar Wilf.
"Não é como se estivéssemos oferecendo dinheiro de graça para conseguir algo em troca das pessoas", disse o executivo, também de Israel, a EXAME. "Não há um plano secreto ou esquema enganoso, é só um modo bem razoável de tentar resolver o problema nos meios de pagamento: você cria uma nova moeda e a distribui para quem ajudar a acelerar a adoção."
Wilf foi diretor do PayPal por dois anos, entre 2008 e 2010. Antes disso, porém, fundou a Fraud Sciences, empresa de prevenção de fraudes e verificação de transações que foi comprada pelo eBay e teve a tecnologia integrada ao sistema de pagamentos em 2008. Foi ainda presidente de um bom número de startups de oito anos para cá, todas focadas no mercado corporativo. Ou seja, experiência, ao menos, o executivo tem.
A proposta de sua Initiative Q é um tanto mais ambiciosa do que a de seus projetos anteriores, no entanto. A iniciativa quer servir como uma moeda, um meio de pagamento único e global, mais ou menos na linha do que é o Bitcoin. Mas com um diferencial bem importante para a criptomoeda: ele não é descentralizado. O executivo, inclusive, acredita que o "sistema auto-gerenciável das criptomoedas é insuficiente para esse propósito".
O objetivo é substituir os meios descritos por Wilf como antiquados — cartões de crédito, de débito e dinheiro em papel, que usam a mesma infraestrutura de anos atrás — por um sistema mais prático e seguro para processamento. O plano tem como elemento central um aplicativo para smartphones, por onde deverão ser feitos os pagamentos em Q, a moeda do projeto, tanto em lojas virtuais quanto em estabelecimentos físicos. A segurança das transações deve ser garantida pelos sensores dos celulares, outras soluções do mercado (como as oferecidas por empresas como Forker e Riskified) e até mesmo a confiança dos membros, que só deverão convidar pessoas que conhecem.
A ideia ainda envolve ter um comitê monetário independente, uma espécie de Banco Central, monitorando a atividade na rede de pagamentos e as reservas financeiras. Tudo para garantir "a estabilidade e o poder de compra da moeda nos próximos meses e anos". Muito bonito no papel, "mas pode falhar e nada sair disso tudo", explicou Wilf. Mas ao menos ninguém sai perdendo: como o próprio fundador do projeto disse, embora a expectativa seja de fazer um Q valer um dólar, o dinheiro ainda nem existe.
Não quer dizer que o executivo não tenha um plano para tirar a ideia do papel. E o primeiro passo dele é angariar pessoas que apoiem o projeto.
"Até hoje, qualquer um que tenha tentado criar uma rede de pagamentos nova — eu incluso, em 1997 — falhou", explicou. "Tudo porque não foi possível trazer o primeiro comprador, porque não havia vendedores, e nem o primeiro vendedor, porque não havia clientes."
Por isso essa estratégia de marketing que lembra a de uma pirâmide — mas que também se assemelha bastante à adotada por empresas como Uber, Dropbox e, aqui no Brasil, PicPay, que garantiam benefícios extras a quem se fizesse cadastro primeiro.
O processo de adoção ainda está no começo. "Baseado no que vimos por agora, é provável que levemos um ou dois anos até começarmos a ver a Q sendo usada em algumas regiões", explicou o executivo. "E eu diria que pode levar mais ou menos 10 anos até que a moeda comece a circular globalmente como uma das principais redes de pagamento no mundo."
A previsão segue o cronograma divulgado no site da iniciativa. Segundo a linha do tempo, o "recrutamento" de pessoas vai até "meados de 2019". Se bem sucedido, o passo seguinte será desenvolver a rede de pagamento. Nessa fase, a empresa pretende angariar financiamentos usando o número de inscritos como chamariz.
Há quem duvide da veracidade e, principalmente, da viabilidade da ideia da Initative Q. Em entrevista à Forbes, Mike Rymanov, CEO da Digital Securities Exchange (DSX), ressaltou que a empresa ainda precisa de um produto de verdade e atender os controles regulatórios. "Antes de se tornar uma opção viável para investidores, a Initiative Q vai precisar se assegurar de atender a todos os requisitos governamentais em todas as jurisdições em que operar — o que pode e vai levar anos", explicou.
Mas em relação a ser ou não uma pirâmide, o cenário é mais favorável ao projeto. "Em um primeiro momento, não vejo risco porque eles não pedem dados além de e-mail e nome", disse a EXAME o advogado especialista em fraudes Jair Jaloreto. "Não pedem CPF, não pedem dados bancários ou cartão de crédito. E o que diferencia um esquema assim de um de pirâmide? Exatamente a compra e a venda, a troca de dinheiro." O jurista destacou os termos de privacidade do projeto e ressaltou que o maior risco por ora, é de que o acordo seja quebrado e os endereços de e-mail acabem comercializados, algo que é proibido por lei.
Leandro Bissoli, advogado especialista em direito digital da PG Advogados, concorda. "Em linhas gerais, pirâmide está ligada a um crime financeiro", explicou. "Esse formato de marketing da Initiative Q até fica caracterizado como 'pirâmide', mas, ainda que haja uma promessa de ganho, não há um aporte e não se sabe quando o dinheiro vai entrar. Estamos falando praticamente de ganho de confiança, por ora."
No entanto, ainda que os riscos sejam hipotéticos, os dois especialistas recomendam cautela quanto as etapas seguintes do projeto. Bissoli destaca que é importante ter sempre cuidado com os próprios dados, enquanto Jaloreto diz que, "quando o próximo passo acontecer, será necessário fazer uma análise mais aprofundada do projeto".