(FaceApp/Reprodução)
Lucas Agrela
Publicado em 31 de agosto de 2019 às 08h59.
Última atualização em 31 de agosto de 2019 às 12h31.
São Paulo – A multa que o Procon-SP aplicou para Apple e Google por terem distribuído o aplicativo FaceApp – conhecido por envelhecer fotos de usuários – para o público brasileiro, abre um precedente ruim, na visão de advogados especialistas em direito digital.
O motivo das multas, que, somadas, totalizam 17,7 milhões de reais, é de que o aplicativo em questão não oferecia seus termos de uso e privacidade no idioma português. Além disso, o órgão de defesa do consumidor indica que o aplicativo coleta dados sem dar explicações claras sobre a intenção de uso, de modo a ferir o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet. As empresas ainda podem recorrer da decisão.
EXAME obteve acesso a parte dos documentos que embasaram a multa. Neles, as empresas explicaram que não poderiam retirar o conteúdo por falta de indicação da URL específica do aplicativo e por respeito ao que determina o Marco Civil da Internet, bem como em razão do modo de funcionamento de suas lojas virtuais de aplicativos. EXAME apurou ainda que as multas milionárias podem ser anuladas pela justiça por falta de enquadramento e base legal para tanto, mostram documentos.
Carlos Affonso Souza, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da PUC-Rio, afirma que o provedor de aplicações, no caso, Apple e Google, só pode ser responsabilizado mediante ordem judicial. O Procon aplicou a multa administrativa sem ter dado entrada na Justiça com um pedido de remoção do FaceApp das lojas virtuais de Apple e Google.
"O caso ilustra bem a dinâmica do Marco Civil da Internet. As lojas de apps estão sendo responsabilizadas por uma interpretação jurídica por diferentes cláusulas contratuais. Me parece indevido em razão do que isso dispõe para o futuro. A multa está sendo aplicada só porque o app viralizou. Termos de uso piores ou iguais estão em outros aplicativos disponíveis para download. Com isso, você abre a porta para responsabilizações jurídicas de termos de uso de apps menos conhecidos. Isso prejudica a inovação", disse Souza, em entrevista a EXAME. "Uma startup que queira se estabelecer no Brasil e cria uma plataforma para publicação de conteúdo de terceiros vai se perguntar se não está sob ameaça jurídica semelhante à do FaceApp."
Para Souza, o Procon está certo sobre a desconformidade dos termos do aplicativo, mas considera que a medida de aplicação de multa é uma decisão drástica. O esperado, em casos assim, seria que o órgão movesse uma ação judicial com pedido de remoção do aplicativo das lojas virtuais da Apple e do Google.
Adriano Mendes, sócio do escritório de advocacia Assis e Mendes, e especialista em direito digital, compartilha da opinião de que as multas são de montante desproporcional.
"O FaceApp realmente coletava mais informações do que o necessário para cumprir sua função e não dizia suas finalidades de forma alguma. Os termos de uso deles eram bem simples, mas isso não é motivo para desespero. Se fosse essa a conduta do Ministério Público e do Procon, empresas como Facebook, Instagram e LinkedIn deveriam ter o mesmo tipo de vigilância", afirmou Mendes. Para o especialista, as empresas que disponibilizam e publicam conteúdo de terceiros não precisam revisar os contratos de usuários porque barrar aplicativos em razão da desconformidade de suas propostas com a legislação brasileira, especialmente com o Marco Civil da Internet, se trataria de uma censura prévia. O caminho indicado seria uma ação judicial movida por um órgão de defesa dos consumidores para remoção do aplicativo com termos de uso e privacidade que não se adaptam ao contexto brasileiro.
"A Lei Geral de Proteção de Dados, que entrará em vigor em agosto de 2020, traz definições de privacidade mais claras. Fotos são conteúdos sensíveis. A coleta delas depende de consentimento específico e precisa de finalidade detalhada. Apps que fazem isso de graça hoje são remunerados com os dados coletados", disse Mendes.
Marcela Mattiuzzo, especialista em proteção de dados e sócia do escritório VMCA, acredita que a decisão do Procon-SP de multar as empresas carece de assertividade. "As multas abrem um precedente ruim, porque não são muito bem fundamentadas. Tanto o provedor de internet não é responsabilizado civilmente nunca, em regra, por conteúdo gerado por terceiro, quanto o provedor de aplicação só pode ser responsabilizado quando, depois de ter uma ordem judicial, ele não toma as providências para tirar aquele conteúdo do ar. O provedor nesse caso seria o FaceApp, portanto, o Procon estaria fazendo uma analogia de que a Apple e o Google poderiam ser encaixados como provedor de aplicação de internet e eles nem chegam a ser isso. Esse caso é bem difícil e essa decisão vai um pouco contra a lógica do Marco Civil", declarou Mattiuzzo.
A Apple não comentou o caso. Já o Google informou que irá recorrer e que as lojas virtuais não devem ser responsabilizadas pelos aplicativos e práticas de terceiros.