O programador Barreto: um novo sentido para informações coletadas pela prefeitura de São Paulo (.)
Da Redação
Publicado em 2 de junho de 2010 às 17h34.
No dia 23 de fevereiro, um gato sem dono invadiu uma propriedade na rua Manuel da Nóbrega, nos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Uma semana depois, um fio de luz se desprendeu de um poste e ficou caído na rua Quatinguaba, na zona leste da cidade. No mesmo dia, uma feira livre em Pirituba, na região noroeste, deixou montes de lixo esparramado pelas calçadas do bairro. Entre o fim de fevereiro e o início de março, essas foram algumas das reclamações registradas pelos paulistanos no Sistema de Atendimento ao Cidadão (SAC), um serviço mantido pela prefeitura da cidade. Fatos como esses ocorrem o tempo todo, mas você provavelmente nunca tomaria conhecimento deles não fosse por iniciativa de Bruno Barreto, o programador de 20 anos de idade da foto ao lado.
Criado para ser um canal de comunicação entre a prefeitura e os moradores de São Paulo, o SAC funciona de forma que os reclamantes, e somente eles, têm acesso ao registro e ao encaminhamento de suas solicitações individuais pela internet. Como morador da cidade, porém, Barreto achava que o conjunto desses dados poderia ter mais utilidade se estivesse visível a todos. Lançando mão de técnicas de "raspagem" (jargão que significa extrair na marra dados que estão online, mas escondidos), ele obteve uma cópia de todas as reclamações registradas no sistema - e fez justiça com as próprias teclas. Em setembro de 2009, Barreto colocou no ar o SACSP, um projeto independente que presta um serviço inédito aos moradores de São Paulo. Usando rankings, ferramentas de geolocalização e análises gráficas, o site dá novos usos e interpretações aos milhares de reclamações que são registrados pela prefeitura mas ficam invisíveis no sistema oficial. Graças ao SACSP, é possível saber, por exemplo, que a zona oeste é a região da cidade mais atingida por morcegos. Ou, então, que os semáforos nas proximidades do Anhangabaú, no centro, funcionam frequentemente fora de sincronia. O site chamou a atenção da prefeitura, e hoje o programador dá consultoria para novos projetos de abertura de dados públicos.
Exemplos como esse são cada vez mais comuns. Mais do que casos isolados de heroísmo digital, as iniciativas de "hack cívico", como ficaram conhecidas, são um sinal dos tempos, pelo menos no que diz respeito ao futuro da transparência de governos. "Transparência é um passo importante, mas igualmente importante é a maneira como os dados são abertos ao público", afirma Sean Moulton, diretor da OMB Watch, organização que acompanha iniciativas de transparência desde 1983. Embora seja um direito garantido pela Constituição, não existe no Brasil, ao contrário de muitos países, uma lei que estabeleça normas para o acesso a informações públicas. Assim, iniciativas de transparência acabam dependendo da boa vontade, e de políticas difusas, em relação à maneira como os dados são oferecidos. "Há muitos dados públicos abertos no Brasil, mas nenhum sistema que os apresente de forma organizada ou que tenha fácil manipulação", diz Daniela Silva, diretora da Esfera, empresa que presta consultoria na área e organiza eventos em que hackers se reúnem para conceber maneiras criativas de usar as informações públicas. "Ainda é preciso arrancá-las à força." Entusiastas dessa nova modalidade de transparência digital defendem que o grande salto ocorre apenas quando políticas de abertura de dados públicos levam em conta a inventividade e a participação de cidadãos comuns no processo. Muitas cabeças fora do governo pensam melhor do que poucas cabeças lá dentro. Em outras palavras, significa dizer que as informações públicas, se entregues livremente e em formato manipulável, podem ganhar usos inesperados - e melhores - nas mãos da grande massa. "Não queremos somente a informação que já chega editada pelos governos", diz Pedro Valente, gerente do Yahoo! Brasil e um dos pioneiros no movimento de hack cívico no país. Segundo essa lógica, em vez de elaborar serviços de acompanhamento de trânsito pela web, por exemplo, os governos devem concentrar esforços para fornecer, de maneira simples, apenas dados estruturados - e abrir caminho para que aplicativos sejam desenvolvidos por voluntários. "Queremos dados primários, que possam ser lidos por máquinas."
Reivindicar uma menor participação do governo no terreno da transparência pública pode parecer contraintuitivo, mas o espírito dos hackers brasileiros está em sintonia com uma onda recente de políticas de abertura de dados públicos mundo afora. Nos últimos anos, governos dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Austrália e da Nova Zelândia lançaram projetos que organizam o fornecimento de bases de dados crus e prontos para interagir por cruzamentos e cálculos matemáticos. O Data.gov, do governo Barack Obama, é um dos casos em que a abertura e a divulgação de informações públicas ganharam status de política de governo. O projeto também é a realização de uma promessa de campanha: "Devemos usar todas as tecnologias e métodos disponíveis para abrir o governo federal, criando um novo nível de transparência (...) dando aos americanos a chance de participar no governo em deliberações e decisões em maneiras que não eram possíveis há poucos anos atrás".
Há um ano no ar, o Data.gov oferece mais de 1 200 bases de dados, recolhidos de 114 agências e departamentos federais. O mar de informações traz desde estatísticas mais gerais, como incidência de crimes, até informações sobre o hábitat natural de animais em extinção. Tudo está em formato padronizado e pode ser rapidamente manipulado e cruzado por qualquer cidadão. No entorno do projeto, uma comunidade ativa de desenvolvedores e interessados discute possíveis usos para os dados. Mais de 40 aplicativos já foram desenvolvidos, entre eles um que ajuda a identificar e explorar relacionamentos entre políticos eleitos e companhias, e outro que analisa tendências em votações do Congresso. Seguindo os moldes da iniciativa americana, o governo britânico lançou, em janeiro, o Data.gov.uk. Em mais uma prova de que a abertura de dados se tornou coisa séria, o projeto recebeu colaboração de gente do naipe de Tim Berners-Lee, um dos pais da web, e nasceu com mais informações que o primo americano: já são mais de 3 200 bases de dados abertas.
Em meio a toda a empolgação que envolve iniciativas governamentais desse porte, há quem acredite que a transparência digital seja o primeiro passo efetivo para a era do "governo aberto": um governo que abre portas e estimula a participação dos cidadãos. Nas palavras de Gordon Brown, primeiro-ministro britânico: "O teste sobre nosso comprometimento com a democracia não são apenas as mudanças que fazemos no centro das instituições: é o quanto estamos preparados para distribuir poder".