Tecnologia

Exclusão virtual

Todo avanço tecnológico gera desigualdade. Será que isso é ruim?

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 12h42.

Gustavo Franco

O desenvolvimento de novas tecnologias de base digital deverá aumentar a desigualdade no planeta, mas, por favor, caro leitor, não se assuste com isso. Não se trata da crueldade que pode parecer à primeira vista. É certo que essas novas tecnologias vão proporcionar maiores níveis de crescimento do valor adicionado por trabalhador equipado com as referidas tecnologias em comparação com o trabalhador não equipado. O mundo já viveu situações semelhantes quando houve progresso tecnológico veloz: o trabalhador em um tear mecanizado é muito mais produtivo que um artesão, o navio a vapor anda mais rápido e transporta mais carga que os navios a vela, e por aí vamos.

É muito fácil aceitar, por distração talvez, que o progresso sempre gera um mal na mesma proporção em que produz o bem, pois todo avanço tecnológico não homogêneo, qualquer que seja sua natureza, eleva a desigualdade. É certo, portanto, que o mundo estará cada vez mais claramente dividido entre gente digitalizada e gente não digitalizada, e que a produtividade e conseqüentemente a remuneração dos membros do primeiro grupo crescerá mais rapidamente que a dos do segundo grupo.

Esse é o fenômeno conhecido como digital divide. A tradução não é simples. Poderia ser segregação digital ou mesmo algo como concentração de renda com base digital, que até permitiria uma sigla: CRBD. Ambas as alternativas seriam mais fiéis ao tom construtivo e ameno que a maior parte dos usuários do conceito quer emprestar ao tema, como se pode observar, por exemplo, pelo Digital Divide Initiative, do Fórum Econômico Mundial, o de Davos. Basta ver como o tema da cidadania digital preocupa governos, empresas e o Terceiro Setor.

Uma tradução local para o conceito, de temperatura deliberadamente mais alta, seria exclusão digital, mas o leitor que procurar o tema, por exemplo, nas conferências do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o evento anti-Davos, encontrará apenas uma tímida referência à internet num painel sobre democratização dos meios de comunicação de massa. A julgar pela amostra, que nada tem de restritiva, a esquerda tupiniquim não parece muito preocupada com o assunto.

Independentemente disso, o problema não é saber se o fenômeno é real, mas se não estamos falando de um truísmo, ou seja, de uma verdade que, por ser trivial, é destituída de significado. É certo que a desigualdade sempre foi uma decorrência inevitável do progresso tecnológico, como já observado. Mas o grande perigo de uma observação desse tipo, especialmente quando repetida junto com ressentimentos contra a globalização e o neoliberalismo, é criminalizar o progresso, ou, no mínimo, alimentar o sentimento de culpa em quem o promove. E o sentimento de culpa alimenta outra criatura complexa, uma indústria crescente, cada vez maior: a do politicamente correto.

Para evitar a distorção acima mencionada, convém enunciar um princípio básico, o da não-relação. Ele consiste no seguinte: uma nação ou comunidade pode perfeitamente progredir em relação a outras, sem que estas nem sequer sejam tocadas ou informadas sobre o que se passou com a primeira.

Ilhas de excelência

Para ilustrar o princípio, convém recorrer a um exemplo numérico e plausível: vamos imaginar um mundo formado de dez ilhas incomunicáveis, cada qual com um PIB de 100 unidades de uma mercadoria existente em todas as ilhas, e todas sem crescimento. Uma delas, todavia, descobre novas técnicas de produção, ou de processamento de informações existentes na natureza, e passa a crescer o pouco notado 1% anualmente. Em dois séculos, todavia, tal ilha elevará sua participação na renda mundial de 10% para 45%. Em três séculos, a participação chegará a quase 70%. Nada muito diferente do que ocorreu com o Ocidente e com a África a partir do século XVII.

A concentração de renda pode ocorrer de forma muito rápida: se o crescimento gerado pelas novas tecnologias fosse de 7% anuais, os 70% seriam alcançados em 45 anos, após os quais cada uma das outras ilhas produziria pouco mais de 3% da riqueza mundial. Após outros 45 anos, a ilha progressista responderia por 98% da renda mundial, e cada uma das outras por 0,2%. Seria fácil dizer que o mundo se tornou extremamente desigual e que está se tornando cada vez mais injusto, não? Mas que culpa tem a ilha que deu certo?

Nesse exemplo, é tão verdadeiro quanto destituído de significação o fato de que o progresso causou a desigualdade. Com efeito, o exemplo demonstra que qualquer progresso sempre gerará desigualdade, mas disso não se segue que a riqueza exista apenas como pilhagem, exploração ou em decorrência da desigualdade. Não há relação de causalidade entre progresso e pobreza. O exemplo do arquipélago acima foi construído com a intenção explícita de mostrar que as novas tecnologias de base digital não estão tornando os pobres mais pobres, embora possam estar tornando os países ricos mais ricos. Criar riqueza não implica nem exige a criação ou a ampliação da pobreza, ao contrário do que pregam teorias em torno das noções de dependência, troca desigual, mais-valia e outras do gênero. Não é acidental que tenha sido da Conferência da ONU para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) a instituição criada por Raul Prebish e pelo movimento terceiro-mundista que tenha saído um relatório apontando a internet como um fator de ampliação da desigualdade no planeta.

Educação e produtividade

Vale, por fim, uma palavra sobre a pouca atenção que tem sido dedicada ao tema no Brasil. A desigualdade aqui, como se sabe, é um assunto muito sério: foram décadas de crescimento baseadas em inflação, ou seja, na tributação do pobre e em desincentivos à produtividade devidos ao fechamento econômico. A exclusão social é um tema tão importante que a exclusão digital fica parecendo uma importação de mercadoria supérflua, um desses modismos politicamente corretos do Primeiro Mundo, mas meio fora de lugar num país em que a fome ainda é um problema. Talvez seja essa a razão pela qual a esquerda local, em suas festividades em Porto Alegre, tenha ignorado o tema.

Muitos trabalhos foram feitos no passado por economistas preocupados com educação e crescimento econômico. Da sabedoria assim construída ficaram algumas conclusões muito sólidas: 1) a educação gera inovação tecnológica, produtividade e crescimento econômico; 2) é enorme a taxa de retorno bruta do investimento em educação, medida como a diferença entre salários médios para diferentes faixas de escolaridade. Com certeza, o mesmo vale, possivelmente com força ainda maior, para a educação digital (ou inclusão digital), entendida como o treinamento de pessoas para o uso de tecnologias de base digital.

É partindo desse raciocínio que o governo procura instalar mais computadores na rede de escolas públicas, assim como tantas ONGs mundo afora procuram investir recursos na educação digital. Pode ser que a esquerda tenha certa razão em alegar que o problema da fome anteceda o analfabetismo digital, mas talvez não tenha sido percebido que a inclusão digital pode ser um extraordinário atalho para o principal problema distributivo deste país: o aumento da produtividade do trabalho no setor terciário.

O economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, é professor da PUC-RJ e sócio-diretor da Rio Bravo Administradora de Fundos de Investimento.

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