O novo Surface Studio: com seu primeiro computador de mesa, a empresa parece ter passado a perna na Apple (Divulgação)
Rafael Kato
Publicado em 3 de novembro de 2016 às 12h27.
Última atualização em 3 de novembro de 2016 às 18h38.
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play.
NOVA YORK — Era uma vez, nos distantes anos 1990, uma empresa chamada Apple Computer. Seu fundador, Steve Jobs, estava afastado, e a companhia estava no terceiro CEO em quatro anos. O preço da ações estava tão baixo que, logo depois do anúncio da volta de Jobs, um dos nomes em alta no Vale Silício naquela época, Michael Dell, respondeu da seguinte maneira uma pergunta sobre o que faria se estivesse no comando da Apple: “O que eu faria? Fecharia [a empresa] e devolveria o dinheiro para os acionistas”.
Antes dos Macs coloridos, antes do iPod, do iPhone e do iPad, antes de a Apple ser a empresa mais valiosa e admirada do mundo, um segmento dos consumidores se manteve fiel aos produtos da empresa, mesmo durante os pontos mais baixos de sua história: os criadores. Designers, artistas gráficos, fotógrafos e ilustradores sempre preferiram trabalhar num Mac. Mas dois anúncios da semana passada decepcionaram muitos desses consumidores fieis – e alguns consideram até a maior das traições: mudar para o mundo da Microsoft.
Na quarta-feira 27, a Apple mostrou os novos modelos do Macbook Pro, o laptop para uso profissional. Mais potente e maior que o Macbook Air e o Macbook, os usuários do modelo Pro estavam esperando uma atualização da linha Pro havia mais de seis meses. O grande chamariz dos novos modelos é o Touch Bar, uma pequena tela colorida que substitui as tradicionais teclas de função (F1, F2 etc.).
O Touch Bar é sensível ao toque e se adapta ao software que está sendo usado. A ideia é facilitar a operação dos programas, criando atalhos personalizados. No caso do email, por exemplo, são sugeridas palavras ou correções, como num smartphone. Para quem edita fotos, os controles permitem ajustar parâmetros de cor e luminosidade com a ponta dos dedos, sem ter de navegar por menus ou usar o mouse ou trackpad.
Mas essa inovação – o novo Macbook Pro é o primeiro laptop a utilizar essa tecnologia–, a julgar pela torrente de opiniões negativas que vêm circulando na internet, foi insuficiente. “A empresa não tem uma visão real do que os usuários mais criativos fazem com suas máquinas mais avançadas.
O Mac fez seu nome porque abraçou o design e os gráficos baseados em computadores, enquanto os PCs perderam o bonde. Agora, parece que a Apple vai perder a próxima geração de gráficos, 3D e realidade virtual”, escreveu Peter Kirn, do site Create Digital Music.
Os novos computadores nem sequer estão disponíveis (somente o modelo mais simples do novo Macbook Pro, sem o Touch Bar), mas as reclamações se baseiam em dois pontos: preço e performance. Os novos laptops têm limite de 16 GB para a memória RAM que pode ser instalada. Memória RAM é um dos componentes essenciais para quem usa programas como edição de fotos e vídeos (para o uso do dia a dia, 16 GB são mais que suficientes).
“Não tenho como não achar que a Apple decidiu que o público-alvo [dos seus computadores] são crianças que tomam lattes em cafés universitários. Estou preocupado com o futuro do Mac, pelo menos nas mãos da atual liderança da Apple”, escreveu o blogueiro Adam Knight.
A outra crítica é em relação ao preço. “A nova família Macbook Pro é universalmente mais cara que a que veio a substituir”, escreveu o jornalista especializado Vlad Savov, do site The Verge. O modelo mais simples custa 1.499 dólares, sem o Touch Bar. O mais potente, com tela de 15 polegadas com todos os upgrades possíveis, sai por 4.299 dólares.
Desde o célebre lançamento do iPhone, há quase dez anos, os anúncios de novos produtos da Apple geram enorme expectativa – e, naturalmente, inevitáveis decepções. Sem os chatos de plantão e os eternamente insatisfeitos não existiria internet, é claro, mas o nível das reclamações relacionadas ao novo laptop surpreendem pela causticidade e, acima de tudo, pela origem. As críticas vêm de fãs de longa data, aqueles que não abandonaram o barco quando um naufrágio da empresa parecia inevitável.
Eles certamente são a minoria entre as centenas de milhões de usuários de produtos Apple ao redor do mundo, e nunca é demais lembrar que os computadores são uma parte relativamente pequena do faturamento e dos lucros da empresa (a maior parte do dinheiro vem da venda de iPhones, e a Apple há anos tirou o “Computer” do nome). Mas é difícil ignorar os protestos, especialmente quando eles são dirigidos contra a empresa fundada pelo homem que chamou os computadores de “bicicletas para a mente”.
Numa coincidência incomum, no dia anterior ao anúncio da Apple outra empresa muito famosa, embora não tão adorada, mostrou as suas novidades. A Microsoft apresentou novos modelos do seu tablet, o Surface, mas a grande surpresa foi um computador de mesa elegante, sofisticado e potencialmente revolucionário – três adjetivos que não costumam aparecer junto com o a palavra Microsoft. Batizado de Surface Studio, o computador foi idealizado para quem cria no ambiente digital e introduziu uma nova maneira de interação, usando uma caneta especial e um dial e permitindo que a tela se incline como uma prancheta. (Mais fácil entender assistindo ao vídeo oficial.)
O Surface Studio é o primeiro computador de mesa produzido pela Microsoft – e, a julgar pelas reações iniciais, a empresa pode ter um enorme hit nas mãos. O Surface Studio pode substituir um PC, mas, com um preço inicial de 3.000 dólares, o alvo são profissionais das artes e ocupações criativas – justamente aqueles que um dia depois ficariam decepcionados com o que a Apple apresentou.
As conclusões que pipocaram no fim da semana passada foram as esperadas: a Microsoft está inovando mais que a Apple. Pode ser verdade em relação aos produtos mais recentes, mas o fato é que os papeis das empresas também se inverteu, como nota o jornalista Steven Levy, um dos mais respeitados escribas do Vale do Silício. “Nos tempos de glória em que a Microsoft dominava a Terra, ela tinha o cuidado de não inovar muito além [da capacidade de acompanhamento] de seus consumidores tradicionais. A Apple tinha mais liberdade para se arriscar”, escreve Levy.
Agora a situação é a oposta. A Apple é a dona da mais lucrativa, mais bem-sucedida e mais importante plataforma digital: os smartphones. Cabe à Microsoft, que nem sequer compete nesta área, imaginar rupturas e fazer grandes apostas. Os fãs da Apple podem reclamar à vontade, mas, para resto dos consumidores, a volta da competição direta entre as duas empresas só pode ser uma boa notícia.
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