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Vidas secas e a falta de saneamento

Sossego, na Paraíba, é um retrato do que há de pior no setor de saneamento. Seus habitantes estão entre os 30 milhões de brasileiros sem-torneira

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Donas de casa na zona rural de Sossego: no Brasil, só 6% dos municípios são totalmente abastecidos por tubulações de água (Cristiano Mariz/EXAME.com)

Donas de casa na zona rural de Sossego: no Brasil, só 6% dos municípios são totalmente abastecidos por tubulações de água (Cristiano Mariz/EXAME.com)

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Eduardo Salgado

Publicado em 14 de abril de 2011 às, 11h59.

Tudo em Sossego, cidade paraibana a 240 quilômetros de João Pessoa, parece um clichê, o velho estereótipo das áreas mais pobres do sertão imaginado por quem nunca pisou no semiárido nordestino. Sim, ainda existem casas de taipa. Sim, a população depende, na sua maioria, de aposentadorias e do Bolsa Família. E, sim, a água é escassa, motivo de briga política e artigo de luxo. Sossego
é uma das 21 cidades brasileiras, 13 delas nordestinas, sem nenhum tipo de encanamento de água, uma gota que seja. Os caminhões-pipa são os únicos responsáveis por todo o abastecimento. É na zona rural de Sossego que vive dona Severina Flor, de 64 anos. Ela divide a casa de taipa forrada de imagens de políticos e santos (sim, Padre Cícero está lá) com o marido, Antonio, e o cachorro, Peixinho.

Toda manhã, dona Severina desperta às 5 horas, varre o terreiro e tira a água da cisterna com a ajuda de um balde. Em seguida, enche os potes que ficam na sala, na cozinha e no banheiro, vai passar o café e chama o marido. Ela ouviu dizer na televisão que é importante fazer exercício, e por isso sai para caminhar na estrada de terra por 30 minutos. Na hora do banho, nada de chuveiro. É tudo na base da cuia — os vizinhos mais modernos usam uma garrafa PET cortada ao meio. A água que sai do banheiro vai na direção de um canteiro onde crescem mudas de cana-de-açúcar. “A gente é obrigada a aproveitar cada gota”, diz dona Severina. O consumo diário nos Estados Unidos é de 375 litros de água por habitante. A média brasileira é de 151 litros. Na casa da família Flor, não passa de 65 litros.

Morar numa cidade como Sossego, do ponto de vista estatístico, é um extremo azar. Num país de quase 200 milhões de pessoas, apenas 200 000 vivem em municípios sem nenhum encanamento, ou 0,001%. Mas a carência de água é, com o perdão do trocadilho, uma questão bem mais profunda. Se forem somadas as pessoas que dependem de caminhões-pipa, açudes e poços mesmo morando em cidades abastecidas parcialmente por tubulações, o número dos sem-torneira pula para mais de 30 milhões de brasileiros, a maior parte deles na Região Nordeste. Em todo o país, apenas 6% dos municípios são totalmente abastecidos com água encanada — nesse quesito, São Paulo é o estado mais à frente, com 97% das casas ligadas à rede.

Num país com ambição de se tornar uma potência emergente, é irritante a demora em se livrar de mazelas típicas do subdesenvolvimento. A cobertura da rede de abastecimento de água aumentou de 81% para 84% na última década. Mantido esse ritmo, o Brasil vai demorar quase 100 anos para universalizar o serviço de água encanada. Hoje, a cobertura existente é inferior à do México e à da Turquia, para citar dois países em nível de desenvolvimento semelhante. Essa demora torna relativos os próprios avanços. No caso do acesso ao esgoto, embora o percentual de casas ligadas à rede coletora tenha subido de 46% para 53% desde 2000, o número de domicílios sem acesso ao serviço subiu de 25 milhões para 28 milhões. Vale lembrar que o país tem um déficit habitacional de 7 milhões de moradias e precisará de mais 16 milhões delas para abrigar as famílias que serão constituídas até 2022.


Na teoria, tudo certo

No papel, o setor de saneamento parece encaminhado. O Brasil tem um marco regulatório que garante os direitos de investidores privados e estabelece o papel de municípios e estados. Há investidores interessados nesse mercado e uma demanda enorme por atender. Na prática, porém, os avanços são mínimos. Pelos cálculos da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas dos Serviços Públicos de Água e Esgoto, menos de 5% dos municípios deram o primeiro passo, que é escolher um modelo para tratar da questão do saneamento: seja com uma autarquia municipal ou estadual, seja com uma empresa privada.  “O setor público é muito lento na hora de decidir”, diz Yves Besse, presidente da entidade. A desorganização é tamanha que as obras de saneamento concluídas no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (Pac) entre 2007 e 2010 utilizaram apenas 4% dos 35,5 bilhões de reais previstos para o período. “O maior desastre do Pac é o setor de saneamento”, diz Gil Castello Branco, secretário-geral do Contas Abertas. A bagunça também impera em boa parte das empresas estaduais de saneamento. “Muitas não estão preparadas para aumentar os investimentos por problemas de gestão”, diz Cassilda Teixeira de Carvalho, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental. “Faltam organização, processos e gente preparada.” Mesmo diante desses obstáculos, poucas empresas públicas procuram parcerias com a iniciativa privada. Hoje, de cada 10 reais investidos, a iniciativa privada responde por menos de 2. Para universalizar os serviços de saneamento básico, estima-se que seria necessário investir mais de 250 bilhões de reais. “Não vamos vencer essa batalha sem o dinheiro privado”, diz Cassilda.

A enfermeira Laura Silveira, funcionária do posto de saúde de Sossego, sabe exatamente as consequências dessa demora em construir uma rede de coleta de esgoto e água encanada. No segundo semestre de 2010, o município de 3 157 habitantes teve seis casos de hepatite A, um número alarmante ante a média anual brasileira de 5,4 por 100 000 pessoas. Outro problema comum é a diarreia infantil. Por essas e outras doenças, Sossego tem um Índice de Desenvolvimento Humano entre o da Guiné Equatorial e o de Gana, na África. A falta de infraestrutura tem sido aliviada por programas emergenciais. Desde 2007, 85% da população rural recebe água gratuitamente da Operação Pipa, programa administrado pelo Exército com verba do Ministério da Integração Nacional. Iniciado no governo de Fernando Henrique Cardoso, o programa foi ampliado nos últimos oito anos. São os militares que contratam os “pipeiros”, analisam a qualidade da água e fiscalizam os volumes colocados em cisternas de 754 municípios em estados do Nordeste, em Tocantins e em Minas Gerais.

Os números totais da operação são impressionantes. Todo dia, mais de 2 400 caminhões distribuem 31 milhões de litros de água para 2,2 milhões de pessoas por 132 000 quilômetros de estradas. Antes da Operação Pipa e da construção de cisternas, as famílias mais pobres do semiárido eram obrigadas a caminhar horas até os açudes e a improvisar barreiros — fossos feitos na terra para conservar por algum tempo a água da chuva. Hoje, com a distribuição de água, os comerciantes mais bem-sucedidos nessas regiões são, não por coincidência, os proprietários de caminhão-pipa. Em Sossego, eles compõem a elite local e podem se dar ao luxo de contratar, por 15 reais semanais, uma das lavadeiras da cidade — Rosinha Caboré, Teresa dos Santos, Lenira de Chico, “Do Céu” e Carmelita.
De toda a população da cidade, essas cinco mulheres são as que correm mais risco de perder o trabalho nos próximos meses. A Companhia de Água e Esgoto da Paraíba, que acumula um prejuízo mensal da ordem de 6 milhões de reais, promete levar água encanada à cidade ainda neste ano. Os canos entre a adutora e o centro de Sossego já foram colocados. Falta fazer a rede de distribuição das ruas e acabar a construção do reservatório. As obras estão paradas desde dezembro (o prefeito de Sossego apoiou o candidato derrotado na última eleição), mas os sosseguenses não perderam a esperança. Até nas ruas da área mais pobre da cidade há valetas à espera dos canos.

A expectativa pela chegada da água é grande. “Se a obra for realmente concluída, vai ser uma revolução”, diz Genaldo de Souza Pereira, um dos mais combativos vereadores da oposição local. “Será o enterro da política da seca.” Sossego vai continuar sendo uma cidade sem hospital, sem banco, sem hotel, mas finalmente com água encanada na área urbana. Para dona Severina e toda a população da zona rural, onde não estão previstas obras, a vida vai continuar sendo o velho clichê. A água do Exército seguirá sendo usada a conta- gotas. De janeiro a julho, seu Antonio vai plantar milho, feijão e fava. No resto do ano, dona Severina vai continuar “esperando a chuva de Deus”.

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