Estagiários da Ernst & Young: a briga por profissionais nunca foi tão intensa (Germano Lüders/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 28 de abril de 2011 às 15h29.
Aos 20 anos, o gaúcho Jorge Menegassi ingressou como estagiário na subsidiária brasileira da Ernst & Young, uma das maiores empresas de auditoria e contabilidade do mundo. O ano era 1977 e ele estava decidido a cumprir o roteiro que sua geração acalentava: fazer carreira numa grande companhia.
Hoje, Menegassi é o presidente da Ernst & Young no Brasil. Por força das circunstâncias, uma de suas tarefas mais árduas é encontrar jovens com a mesma ambição que ele teve e estruturar uma equipe capaz de aproveitar o bom momento da economia. Por comandar uma prestadora de serviços, Menegassi precisa de muita gente — e gente bem qualificada.
A Ernst & Young, com um quadro total de 3 850 funcionários, tem atualmente 200 vagas em aberto. Dos 700 estagiários contratados no ano passado, 30% migraram para outras companhias poucos meses após a seleção. Eles estão na mira não apenas de concorrentes mas também das mais de 200 empresas que planejam abrir o capital no Brasil e precisam montar a área financeira com profissionais habilitados em contabilidade, economia e administração.
“Vivemos uma verdadeira guerra por profissionais, e essa situação só vai piorar”, diz Menegassi. “Vamos ter de aprender a conviver com essa nova realidade. Lutar contra ela é inútil.” A cada ano, os executivos brasileiros da Ernst & Young sabem que terão de atrair e treinar em sua universidade corporativa cerca de 1 000 novos funcionários.
E sabem que, inevitavelmente, perderão grande parte deles. Esse tipo de situação é regra no Brasil de hoje. Gente é um dos principais gargalos do crescimento da economia e das empresas. O país tem hoje 92 milhões de pessoas empregadas, o maior contingente da história. Esse total representa mais de 90% da população em idade e condições de trabalhar.
Nas seis principais regiões metropolitanas, a taxa de desemprego atingiu 5,3% em dezembro, o nível mais baixo desde que a pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística começou a ser feita, em 2002 — na média do ano, a taxa de 6,7% também foi recorde. Trata-se de uma boa notícia, reflexo dos muitos avanços da economia brasileira nos últimos anos.
Mais emprego significa mais gente com renda e crédito para consumir e fazer a roda da economia girar. Recentemente, porém, o país começou a perceber que as boas notícias no mercado de trabalho também impõem desafios complexos. O primeiro deles é justamente o da escassez de gente preparada para preencher os novos postos que as empresas estão criando.
Segundo uma projeção feita por economistas do Itaú Unibanco a pedido de EXAME, caso o país mantenha até 2015 um crescimento médio de 4,6% ao ano, será preciso um adicional de 8 milhões de pessoas — o equivalente a toda a população da Áustria — educadas e qualificadas para assumir funções cada vez mais sofisticadas.
Por coincidência, o Brasil tem hoje cerca de 8 milhões de desempregados. A solução para a carência de profissionais certamente não virá desse grupo. Esses 8 milhões de brasileiros sem emprego foram colocados à margem do mercado por total falta de qualificação. São a herança maldita de um sistema educacional quase sempre inepto e ineficiente.
Quando um país não consegue suprir a demanda por mão de obra, a própria perspectiva de crescimento fica em xeque. O mecanismo funciona da seguinte maneira: o desemprego muito baixo dá poder aos trabalhadores para pedir aumento de salário. Salários maiores pressionam os custos das empresas, que reagem aumentando preços e gerando inflação.
O governo vê-se, então, diante da opção de esfriar a economia ou aceitar mais inflação — e o bom senso manda que a primeira opção seja a escolhida. Atualmente, os salários são um dos itens que mais pressionam a inflação. Os reajustes salariais dos empregados domésticos, um custo que faz parte da composição do IPCA, o índice oficial de inflação, ficam acima do próprio IPCA há cinco anos — o próprio governo contribuiu para isso ao dar aumentos reais expressivos ao salário mínimo.
Mesmo assim, os sindicatos de trabalhadores continuam obtendo reajustes acima da inflação. No ano passado, quase 90% das 700 negociações entre patrões e empregados resultaram em ganhos reais. Recentemente, cerca de 80 000 operários cruzaram os braços em obras do Programa de Aceleração do Crescimento exigindo aumento da remuneração.
Desde 1973, os custos de mão de obra não representavam uma fonte de pressão inflacionária no Brasil. “Corremos o risco de entrar numa espiral de aumentos de preços”, diz Aurélio Bicalho, economista do Itaú Unibanco. “Este é um ano decisivo para conter a inflação — e a única maneira de fazer isso é frear o crescimento.”
Em teoria, haveria uma alternativa melhor. Em qualquer economia, os salários podem subir de maneira sustentada se forem acompanhados pelo aumento da produtividade. A produtividade, uma medida do valor gerado anualmente pelo trabalhador, depende de diversos fatores: a aplicação de tecnologia, a gestão das operações, o nível de inovação e a formação educacional do trabalhador.
“Nenhum país consegue manter crescimento robusto e consistente se não investir na produtividade”, diz o economista Laurence Ball, professor da universidade americana Johns Hopkins e estudioso da relação entre produtividade e crescimento. As estatísticas evidenciam quanto o Brasil está defasado.
De 2000 a 2008, o índice de produtividade da Coreia do Sul cresceu, em média, 7,4% ao ano. O da China, 5,2%, o dos Estados Unidos, 4,6%, e o da Argentina, 3%. Enquanto isso, a produtividade brasileira evoluiu parco 0,9% por ano.
O passo é vagaroso em boa medida porque a educação nas nossas escolas perdeu qualidade, e isso faz com que a maioria dos recém-formados chegue ao mercado de trabalho com deficiências que nem sempre podem ser corrigidas com cursos de qualificação. Isso sem falar que as empresas estão absorvendo, por falta de opção, pessoas sem nenhuma base educacional.
“Não é fácil treinar”, diz José Márcio Camargo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Você pode ensinar um pedreiro a colocar um tijolo sobre o outro, mas, se ele não souber ler, contar, medir e não conseguir conversar com o engenheiro, seu trabalho vai ser feito com muita lentidão e desperdício.”
Isso significa que um produto custa mais e leva mais tempo para ser concluído no Brasil. É o que está acontecendo no Estaleiro Atlântico Sul, instalado no porto de Suape, em Pernambuco. Desde sua criação, em 2005, o estaleiro corre para garantir a oferta de profissionais da indústria naval numa região sem tradição na atividade.
Nos últimos quatro meses, deflagrou uma operação de busca em sete estados para preencher 1 200 vagas com mão de obra qualificada. Foram avaliados 20 000 currículos. Muitos são de gente que nunca havia trabalhado numa indústria. Na linha de produção do Atlântico Sul trabalham ex-pescador, ex-representante comercial e até ex-doméstica.
O treinamento de pessoas da região foi visto como uma solução prática e um resgate social, festejado pelo governo. Mas é um processo sinuoso. O estaleiro precisa entregar 22 navios petroleiros, sete navios-sonda e um casco de plataforma até 2018. O primeiro petroleiro foi pré-lançado em maio do ano passado numa solenidade com a presença do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A entrega final deveria ter ocorrido em setembro, mas foi adiada para maio deste ano e protelada mais uma vez para o segundo semestre. Se o cronograma vingar, a entrega vai ocorrer três anos após o início da construção. Na Coreia do Sul e em Singapura, petroleiros são construídos em, no máximo, nove meses.
Parte do atraso é atribuída à falta de experiência da equipe. Em fevereiro, Ângelo Bellelis, presidente do estaleiro desde 2008, afirmou que o atraso fazia parte da “curva de aprendizagem” para construir esse tipo de embarcação pela primeira vez. Passados alguns dias, Bellelis pediu demissão alegando que iria assumir “novos desafios”. O fato é que suas declarações pegaram mal perante os clientes — entre eles a Petrobras —, que cobram resultados e mais agilidade.
A teoria econômica tem um nome para a nova dinâmica registrada no Brasil — pleno emprego. Trata-se do estágio em que a taxa de desemprego cai a níveis muito baixos e praticamente todas as pessoas qualificadas estão empregadas. Não existe um número que delimite exatamente quando isso ocorre.
Devido ao grande número de desempregados ainda existente, não há consenso entre os especialistas se, afinal, o Brasil estaria ou não no pleno emprego. Quem defende que sim leva em consideração as dificuldades para o preenchimento das vagas.
“Basta olhar o que está acontecendo: faltam babás, pedreiros, soldadores, técnicos, engenheiros, e a rotina das pessoas e das empresas já está sendo afetada pela escassez de gente”, diz Luiz Carlos Mendonça de Barros, sócio da Quest Investimentos. “Estamos vivendo o pleno emprego — com seus benefícios e problemas.”
O Brasil da classe C
A face positiva do pleno emprego ajudou a colocar o Brasil entre as economias emergentes mais atraentes do momento. A exuberância do mercado de trabalho contribuiu para a ascensão da classe C e a formação da nova classe média, a redução das desigualdades e o aumento do consumo, o que atrai empresas e investidores ao país.
A última vez que o emprego e a renda cresceram com tanta força foi na década de 70, durante o chamado milagre econômico. Para o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, apesar das semelhanças, o momento atual é muito mais representativo. “Agora há distribuição da renda, algo que não aconteceu nos anos 70”, diz Neri.
Desde 2003, a renda dos 20% mais pobres cresceu praticamente o dobro do que cresceu a dos 20% mais ricos. Esse ciclo foi uma espécie de redenção para pessoas como Juscilene dos Santos. Ela migrou do Piauí para São Paulo no começo da década de 90. Sem o ensino fundamental completo, ficou anos desempregada, vivendo de bicos.
Em 2005, aos 38 anos, encontrou a oportunidade para dar uma guinada. Conseguiu emprego com carteira assinada numa prestadora de serviços de limpeza e concluiu os estudos nos cursos gratuitos oferecidos pelo Seac, o sindicato das empresas do setor.
Juscilene fez a prova do Exame Nacional do Ensino Médio no ano passado, conseguiu uma bolsa de estudos, prestou vestibular e hoje, aos 41 anos de idade, está no primeiro semestre de gestão da segurança na Unip. O curso é de formação técnica, com dois anos de duração. “Ainda preciso do emprego na limpeza, mas a vida já melhorou”, diz Juscilene. “E vai melhorar ainda mais.”
Seu caso mostra que a carência de profissionais tem gerado novas oportunidades para o setor educacional. Com foco no mercado de trabalho, duração mais curta e grade curricular voltada para a prática, os cursos de tecnologia dispararam nos últimos anos.
O total de matrículas passou de menos de 70 000 em 2001 para mais de 680 000 em 2009 — e os cursos de tecnologia já respondem por 11% do total de matrículas na graduação. “Os tecnólogos têm uma formação tão qualificada quanto os bacharéis, apenas mais específica”, afirma Arthur Sperandéo de Macedo, vice-reitor das Faculdades Metropolitanas Unidas, de São Paulo.
Nos Estados Unidos, os cursos superiores de curta duração, chamados de associate degree, correspondem a uma parcela ainda maior dos alunos do ensino. Segundo o Departamento de Educação dos Estados Unidos, em 2008 os graduados em cursos de curta duração eram mais de 750 000, enquanto os cursos de graduação tradicionais formam 1,6 milhão de americanos.
Esforços de qualificação à parte, o fato é que a demanda por profissionais corre muito à frente da oferta. Isso pode ser visto nitidamente na construção, um dos setores mais aquecidos da economia. Há três anos a demanda por operários virou uma espécie de poço sem fundo, e as construtoras drenam trabalhadores também de outros setores.
Em São Paulo, há um buraco de 100 000 técnicos na área de prestação de serviços de TV por assinatura e outro de 20 000 nas empresas de limpeza porque muitos empregados conseguiram salários melhores na construção civil.
Numa situação de escassez generalizada, vale qualquer estratégia para fechar o quadro de trabalhadores. Uma das mais desesperadas é tirar o pessoal do concorrente em pleno andamento do projeto. Um emissário procura os trabalhadores e avisa que há uma empresa oferecendo mais para quem aceitar mudar de canteiro de obra.
No final do ano passado, um residencial com três torres de 27 andares na zona oeste de São Paulo, erguido pela PDG, a maior incorporadora do país, perdeu do dia para a noite mais de 100 operários para uma obra em Santos, a 70 quilômetros da capital. A dificuldade para repor os trabalhadores atrasou a conclusão dos apartamentos, que deveriam ter sido entregues até dezembro.
O setor estima que 70% das obras estão atrasadas por falta de gente. Em Caxias do Sul, maior cidade do polo metal-mecânico gaúcho, a fabricante de carrocerias Randon deixou de exigir experiência dos candidatos e partiu para uma forma inusitada de recrutamento.
Com 100 vagas em aberto, a empresa colocou um carro de som circulando na periferia de Caxias e em cidades vizinhas oferecendo treinamento, emprego com carteira assinada e benefícios a quem queira aprender um novo ofício.
“No mundo normal, você anuncia uma vaga e escolhe os candidatos”, diz Luiz Antonio Oselame, diretor executivo da Randon. “No mundo do pleno emprego, você aceita quem quiser trabalhar.”
A vez dos estrangeiros
A busca de gente também está mexendo com os fluxos migratórios do país. Em Teresina, no Piauí, para garantir a expansão das operações, o Grupo Pão de Açúcar lançou recentemente um programa batizado de De Volta Para a Minha Terra Natal.
Além de estar à procura de gente para cobrir 2 500 vagas hoje em aberto, o grupo precisará de 15 000 novos trabalhadores até dezembro em cidades como Palmas, no Tocantins.
No Rio de Janeiro, um dos maiores nós está no setor de petróleo e gás. Até 2013 o setor vai exigir mais de 200 000 profissionais. Há um esforço concentrado de formação, mas, enquanto o país não consegue suprir a demanda, as vagas são preenchidas com a importação de pessoal qualificado. O setor é o recordista de pedidos de visto de trabalho para estrangeiros.
No ano passado, o estado do Rio de Janeiro recebeu quase 22 000 trabalhadores vindos do exterior, 40% dos que entraram no Brasil no período.
Em alguns casos, as profissões requisitadas nem sequer existem no país. Para criar no Rio de Janeiro seu quinto centro de pesquisa no mundo, a americana GE precisa de 200 pesquisadores com habilidade para trabalhar na iniciativa privada — um perfil exótico num país em que esse tipo de profissional costuma ficar confinado nas universidades.
São engenheiros e doutores especializados nas áreas de óleo, gás, energia, transporte e saúde. “Vamos fazer visitas a 17 das melhores instituições brasileiras e sensibilizar os acadêmicos”, diz João Geraldo Ferreira, presidente da GE do Brasil. “Usamos essa estratégia quando criamos os centros da Índia, da China e da Alemanha, mas ainda não sabemos qual será o resultado aqui.”
Outra carreira ignorada aqui é a de analista de tesouraria, especialista que planeja operações financeiras para aplicar e captar recursos. “Na Europa e nos Estados Unidos, existem especializações e MBAs na área”, diz o francês Thierry Giraud, presidente da subsidiária local da Sage XRT, especializada nesse tipo de serviço.
“Aqui não há um único curso, e somos obrigados a formar nossos profissionais.” Formam e perdem. A equipe da Sage precisaria ser de 90 pessoas, mas hoje faltam dez. A lacuna foi causada pelos próprios clientes. Eles levaram os profissionais porque — obviamente — não encontraram outros no mercado.
Vagas em aberto são uma barreira ao crescimento e causam perda de negócios — às empresas e ao país. Na área de tecnologia da informação, a carência atual é da ordem de 200 000 profissionais. Estima-se que o setor precisará de um contingente extra de 750 000 pessoas até 2020. Por falta de gente, os negócios já emperram.
A IBM tem um bom termômetro da situação. A empresa define o número de profissionais de que precisa à medida que os clientes fazem os pedidos. No dia 25 de março, havia quase 300 ofertas de emprego no site da empresa. “Só fechamos um contrato depois de formar a equipe que irá tocá-lo”, diz Edson Luis Pereira, executivo de desenvolvimento profissional da IBM.
“Quando não conseguimos reunir o grupo, o Brasil perde a encomenda para a subsidiária de outro país.” Fica a pergunta: o que faz uma empresa sem unidades em outros países? “Seleciona e treina o maior número possível de pessoas o tempo todo para garantir gente”, afirma Benjamin Quadros, sócio da BRQ Solutions, prestadora de serviços de tecnologia.
A empresa tem treinado 300 profissionais por trimestre, ao custo de 5 000 reais por aluno. “Viramos uma escola de informática”, diz Quadros. Mesmo assim, a BRQ tem sempre cerca de 200 vagas em aberto.
Problemas como os que o Brasil enfrenta no campo do trabalho são próprios de países emergentes. Nesse sentido, não deixa de ser uma mostra de sucesso saber que o desafio, hoje, é o desemprego muito baixo, não o contrário. Esse desafio terá de ser enfrentado com um ganho de qualidade de nossa mão de obra.
O valor da alta produtividade do trabalho ficou claro quando os Estados Unidos atingiram o pleno emprego no final dos anos 90. Foi um dos períodos de maior prosperidade econômica da história americana, que combinou estabilidade com crescimento e desemprego abaixo de 5%.
Uma das explicações para a bonança sem inflação foi o crescente aumento da produtividade, que entre 1997 e 2000 se expandiu, em média, 3% ao ano a reboque da revolução tecnológica. Com certo exagero, o momento virtuoso foi batizado de Nova Economia. Replicar o exemplo americano é vital para que consigamos, também nós, lidar com o desafio do pleno emprego.
Estamos diante de uma oportunidade histórica de qualificar nossa mão de obra e pavimentar o crescimento dos próximos anos — ou de ver o bonde passar mais uma vez.