Para desespero da turma do amendoim, talvez o Brasil tenha alguma chance. Se olharmos com distanciamento, poderemos perceber um notável amadurecimento institucional (Andriy Onufriyenko/Getty Images)
Colunista
Publicado em 28 de julho de 2023 às 06h00.
“No Brasil, até o passado é incerto.” “Este país não é para amadores.” “Não se preocupe: o Brasil não corre o menor risco de dar certo.” Ai, que preguiça. Empresto a citação do nosso herói modernista duplamente preguiçoso para resumir minha antipatia às pessoas que citam clichês pseudointeligentes para pousar de descoladas em seu pessimismo sobre o Brasil.
Preciso ser honesto: admito alguma inclinação às ideias de Roger Scruton e suas “vantagens do pessimismo”, no sentido de que não devemos ver de maneira muito positiva ideologias utópicas ou revolucionárias, sob o risco de incorrermos em alguma aventura perigosa, como aquelas dos anos 1930 na Europa. É melhor conservarmos uma coisinha mais ou menos do que nos arriscarmos como otimistas num desconhecido novo modelo que sabe lá Deus aonde pode nos levar.
Mas isso não tem nada a ver com essa suposta superioridade intelectual dos que gostam de repetir que a melhor saída para o Brasil é o Aeroporto de Guarulhos. Eles parecem se apoiar naquela visão de que os filósofos mais pessimistas seriam aqueles mais bem informados, cientes da trágica condição humana: Montaigne, -Schopenhauer, Nietzsche...
Não é só no Brasil que o passado é incerto. Quem veio com essa ideia tosca de que a história só poderia ter caminhado numa determinada direção se apoia naquela balela de materialismo histórico. Sob o viés de retrospectiva, olhamos para trás achando que só poderia ter sido desse jeito, mas, na verdade, apenas se materializou um cenário dentro de uma distribuição infinita de possibilidades.
Boa parte da psicanálise se resume a ressignificar acontecimentos pretéritos, tratando-os com empatia e arejamento. Aquilo que parecia tão certo e traumático pode ganhar uma conotação completamente nova e construtiva. Contardo Calligaris tem (verbo no presente porque ele e tudo o que representa são eternos) uma metáfora linda para isso, comparando as tempestades psíquicas com uma caatinga. Quando chove (acontece um trauma), formam-se sulcos no chão pelos quais a água escorre. Então, ocorre uma nova tempestade e a água volta a escoar pelos mesmos traços já demarcados. O trabalho estaria em evitar revisitarmos sempre os mesmos caminhos e conseguir ressignificar as coisas. Podemos mudar o passado dentro de nossa cabeça.
Também confesso não ver problema algum na ideia de que o Brasil não é para amadores. Passa a impressão de que é um país para profissionais. Ainda bem! Imagine só se sobrassem apenas os leigos por aqui. Uma das vantagens brasileiras é que há um tecido empresarial robusto e profissional, com uma imprensa institucionalizada forte e uma elite intelectual engajada, que atuam- com as instituições e organizações para evitar uma ruptura. Entre morar num país de amadores ou de profissionais, eu escolheria o último.
Para desespero da turma do amendoim, talvez o Brasil tenha, sim, alguma chance. E, se olharmos com distanciamento, poderemos perceber que houve um notável amadurecimento institucional. Num intervalo de seis anos, aprovamos duas reformas tidas como impossíveis, a previdenciária e a tributária (esta última ainda apenas na Câmara, claro). Essa agenda é debatida há pelo menos três décadas nas casas legislativas e, mesmo em meio a uma série de dificuldades e com frustrações típicas da realidade objetiva, avançaram. A tributária, inclusive, foi originalmente apresentada no governo Temer, para ser votada de forma concreta no governo Lula. Enfrentar o manicômio tributário brasileiro virou uma pauta de Estado, além de governos.
Superada a discussão dos impostos sobre consumo, entraremos no debate da tributação da renda. Não nos esqueçamos: uma agenda formalizada também pelo ex-ministro da Economia de Jair Bolsonaro. Se Haddad e Guedes entram em acordo, sinal de convergência da sociedade como um todo. Abaixo da superfície muito ideológica e polarizada, parece haver algum consenso sobre as necessidades do caminho a seguir. Claro que as coisas não acontecem na velocidade desejada pelos platônicos economistas (sim, estou entre eles). Tampouco chegaremos a um resultado dos sonhos. Mas existe uma agenda mais profunda de convergência a alguma racionalidade, mais próxima ao centro do que as conversas de palanque ou os ataques ao Banco Central fazem parecer.
Temos hoje uma regra fiscal que evita uma trajetória explosiva da dívida pública brasileira. Avançamos com a reforma tributária. A atividade econômica se mostra mais resiliente do que se esperava, com crescimento projetado para o ano superior a 2%, ainda que dados recentes do IBC-Br e das vendas ao varejo tenham desapontado. O câmbio está muito bem-comportado. A inflação e as expectativas de inflação convergem. A Selic deve começar a cair em agosto, possivelmente ao ritmo de 50 pontos-base por reunião do Copom. Se formos caminhar para o juro neutro, veremos a Selic por volta de 8% ao ano. É um país muito diferente do que o imaginado pelo consenso em janeiro deste ano.
Essa janela de curto prazo já foi percebida pelos mercados e o Brasil é um dos destaques de performance nos últimos meses. O que talvez falte ser apropriado pelo consenso é essa melhora institucional, talvez mais estrutural, que poderia culminar numa eleição presidencial menos polarizada em 2026 — uma disputa entre Haddad e Tarcísio/Zema, por exemplo, seria celebrada com antecipação pela Faria Lima e pelo Leblon.
Há uma ressalva importante a fazer antes de terminarmos. Apesar do material avanço institucional brasileiro, os desafios são enormes e o horizonte é recoberto de riscos. O último Censo mostrou uma tendência demográfica preocupante: estamos envelhecendo a uma velocidade muito superior à previamente contemplada. Incorremos no sério risco de ficar velhos antes de ficar ricos, o que seria uma tragédia.
Nossa oportunidade está em desenvolvermos uma agenda focada em ganhos de produtividade, o que necessariamente vai passar por ampla e profunda reforma de nosso sistema educacional. No mundo, está acontecendo uma revolução em torno da inteligência artificial, cujos ganhos de produtividade chegaram a ser comparados àqueles da revolução agrícola. Talvez essa seja nossa última janela, uma espécie de trem das sete horas, o último do sertão. Precisamos todos — governo, sociedade civil, empresários, intelectuais etc. — nos engajar nesse debate. Por ora, infelizmente parecemos mais preocupados em estimular carros populares de motor a combustão e geladeiras.