Revista Exame

Sprint final

A corrida contra as mudanças climáticas chega à reta final, e os países querem triplicar os investimentos em energias renováveis. Nesse esforço trilionário, o Brasil tem tudo para receber parte considerável dos recursos — principalmente se fizer a lição de casa

Energia em Dubai: realizada nos Emirados Árabes Unidos, a COP28 produziu o primeiro documento climático que menciona a eliminação gradual dos combustíveis fósseis  (Leandro Fonseca/Exame)

Energia em Dubai: realizada nos Emirados Árabes Unidos, a COP28 produziu o primeiro documento climático que menciona a eliminação gradual dos combustíveis fósseis (Leandro Fonseca/Exame)

Rodrigo Caetano
Rodrigo Caetano

Editor ESG

Publicado em 25 de janeiro de 2024 às 06h00.

Em 2015, o mundo investiu 1,3 trilhão de dólares em energia fóssil e pouco mais de 1 trilhão de dólares em fontes renováveis, de acordo com dados da Agência Internacional de Energia (IEA). Naquele ano, em dezembro, ao final da 21a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, a COP21, os quase 200 países-membros assinaram um compromisso para conter as emissões de gases de efeito estufa e combater o aquecimento global, que ficou mundialmente conhecido como Acordo de Paris, em alusão ao local de realização da COP. Nunca mais os investimentos em energia fóssil superaram os investimentos em energia renovável.

Desde o Acordo de Paris, o mundo passou pelo Brexit, na Europa; pela eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos; Jair Bolsonaro assumiu o comando da maior democracia latino-americana e priorizou uma agenda de desmonte de estruturas ambientais; houve uma pandemia, que bagunçou a economia e a logística mundiais; e o russo Vladimir Putin, contrariado em seus interesses, lançou uma ofensiva contra a Ucrânia, levando os europeus a reviverem o medo da guerra após quase 80 anos. Em todos esses episódios, a transição energética foi colocada em dúvida, e a pergunta “seria o fim dos esforços para conter as mudanças climáticas?” se fez presente em cada ano de campanha por uma economia de baixo carbono. Nada disso, no entanto, abalou a onda de renovação energética. No ano passado, o volume de investimentos foi de 1,7 trilhão de dólares em renováveis, ante pouco mais de 1 trilhão de dólares em fósseis, também de acordo com a IEA.

Helena Matza, diplomata dos EUA: o governo americano quer trabalhar com o governo brasileiro para construir um ambiente propício à chegada de investimentos privados em energia limpa no país (Leandro Fonseca/Exame)

Os cães ladram, e a caravana passa, diria o colunista social Ibrahim Sued. Mas há um pequeno detalhe nesse frenesi de transição para uma economia sem petróleo que faz todo esse comprometimento financeiro parecer uma enorme construção de castelos de areia nas praias artificiais de Balneário Camboriú: o ritmo é insuficiente para fazer o mundo cumprir as metas estabelecidas no Acordo de Paris. “O que está acontecendo é muito simples do ponto de vista científico”, explica o cientista climático Paulo Artaxo, um dos mais citados pelo mundo. “Não é mais possível estabilizar a temperatura em 2 graus Celsius; com as emissões que temos hoje, o planeta vai se aquecer entre 2,5 e 3 graus; e, para a maior parte dos países do Acordo de Paris, a meta de ser ‘net zero’ não é alcançável.”

Na corrida pela descarbonização global, a cada volta a equipe renovável tira um pouquinho da diferença da equipe fóssil, porém a distância segue enorme e o desempenho do oponente, ainda que não evolua, permanece praticamente estável. Os investimentos em petróleo, carvão e derivados, exceto pelos dois anos mais agudos da pandemia (2020-2021), nunca são menores do que 1 trilhão de dólares. A esperança de um sprint final nessa maratona que possa alterar o resultado, agora, recai sobre um novo acordo firmado em uma COP, desta vez na 28a edição da conferência, realizada em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. O documento final da COP28 traz, pela primeira vez em quase três décadas, menção aos combustíveis fósseis — e não são elogiosas. Os países-membros concordaram em estabelecer um plano faseado de saída dos combustíveis fósseis, além de triplicar o volume de geração de energia renovável até o final desta década. O acordo foi considerado histórico.

A COP do fim do petróleo: a presença de lobistas da indústria do petróleo foi recorde em Dubai, mesmo assim os países chegaram a um acordo para acelerar a descarbonização (Leandro Fonseca/Exame)

Investimentos recordes

Há poucas dúvidas sobre a chegada de um tsunami de investimentos em renováveis. A projeção da IEA é que, nos próximos cinco anos, se instale mais capacidade de geração limpa do que a soma de todos os anos desde a construção da primeira geradora comercial de energia renovável, há mais de 100 anos. Antes mesmo da conclusão da COP28, a agência já previa um acréscimo de 2,5 vezes na capacidade global, pouco abaixo da meta estabelecida em Dubai. Duas fontes, especificamente, dominarão 95% desse volume: solar e eólica. Neste ano, as duas já devem ultrapassar a hidrelétrica globalmente (no Brasil, ainda não). Em 2025, o carvão perderá, depois de mais de um século, o posto de maior fonte de energia global para as renováveis. As usinas solares e eólicas superarão as nucleares em entrega no ano seguinte, e, em 2028, 42% de toda eletricidade no mundo virá de fontes limpas, de acordo com as estimativas da Agência Internacional de Energia.

Em termos de investimentos, os cálculos variam muito. Há alguns anos que diferentes previsões estabelecem uma necessidade anual de investimentos para fazer a transição energética num intervalo entre 1 trilhão e 7 trilhões de dólares anuais. De concreto, com base nos dados do ano passado e nos cenários mais realistas, pode-se esperar um patamar mínimo de 2 trilhões de dólares para os próximos anos, sendo o Brasil o destino de uma décima parte disso. O governo brasileiro espera um volume considerável de investimentos, e tem recebido sinais de que é para ficar otimista. Mas negociar a entrada de tamanho volume de dinheiro é uma tarefa cheia de riscos, e os perigos, como se sabe, moram nos detalhes.

“A maioria dos países assinou um compromisso de descarbonização, e ninguém faz uma coisa dessas com a intenção de não cumprir”, disse à EXAME, durante a COP28, Roberto Azevêdo, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, que esteve em Dubai representando a Abag, associação ligada ao agronegócio. “O problema é que não há um modelo ou uma entidade capaz de organizar esses esforços, então cada país faz do seu jeito. Isso gera o risco de transformar algo positivo para o planeta e para a economia em motivo para o estabelecimento de barreiras comerciais, que às vezes são necessárias; e às vezes, não.”

Nessa geopolítica da transição, os grupos de afinidades vão sendo formados, e o Brasil, por uma série de motivos, é um jogador cobiçado. Em meados de janeiro, Helaina Matza, coordenadora especial do programa de parcerias em infraestrutura dos Estados Unidos (PGI), esteve no Brasil para uma série de encontros com empresas, investidores e governo — além de uma conversa com a EXAME. Sua missão é preparar o cenário para a entrada de dinheiro privado, majoritariamente, no setor de infraestrutura brasileiro, com grande enfoque em energia. “O Brasil tem grandes vantagens competitivas em se tratando de energia renovável”, disse Matza.

Essas vantagens são de ordem natural, pelo país concentrar algumas das melhores áreas de vento e de sol do planeta para a produção de energia limpa; e de ordem econômica. A diplomata americana ressalta que, embora a exportação de energia seja um negócio interessantíssimo do ponto de vista do investidor, a capacidade interna de absorver parte relevante da produção é um aspecto central na definição do volume de recursos que serão alocados em cada região. Nesse ponto, o país tem a seu favor a indústria siderúrgica e a mineradora. Se o mundo quiser realmente cumprir as metas do Acordo de Paris, ou pelo menos chegar perto delas, terá de atacar os maiores poluidores, ou seja, a chamada “velha economia”.

No plano americano também está contemplada a evolução social das regiões investidas. Matza ressalta que o modelo a ser construído envolve as lideranças dos dois países e tem por objetivo facilitar o investimento privado, o que significa, numa generalização grosseira, reduzir riscos. Nesse sentido, a participação governamental se dará em três elementos da equação: juros subsidiados, capital a fundo perdido e políticas públicas. Os dois primeiros atuam diretamente no apetite de risco do investidor, e buscam potencializar os aportes. O terceiro visa direcionar esforços regulatórios e aplicar recursos públicos para infraestruturas de base, cuja ausência pode até não inviabilizar o sucesso comercial do empreendimento, mas limita o benefício econômico e social disponibilizado à população. Basicamente, é garantir que os projetos considerem o impacto nas comunidades locais e promovam o desenvolvimento sustentável.

Recursos naturais: turbinas eólicas no Ceará tiram proveito da condição excepcional de vento no estado, que antes era considerada um entrave para o desenvolvimento (Image Source/Getty Images)

Para algumas regiões brasileiras, esse posicionamento é música para os ouvidos. Em especial, o Nordeste. Há uma oportunidade, nessa transição energética, para o país corrigir injustiças históricas e reduzir gaps de desenvolvimento entre estados. Em se tratando de energias renováveis, o maior potencial de geração está concentrado em áreas mais pobres, como no Ceará. O estado vive, atualmente, uma euforia pela expectativa da chegada de bilhões em investimentos, graças a características naturais que sempre foram um entrave para o desenvolvimento: o excesso de vento, que prejudica a pesca, e o excesso de sol, que inviabiliza a agricultura. Elmano de Freitas, governador do Ceará, esteve na COP28 para vender o projeto de um polo de produção de hidrogênio verde, em fase avançada de implementação no Porto de Pecém.

O hidrogênio verde, no caso, é uma espécie de novo petróleo produzido a partir da quebra das moléculas da água com o uso de energia limpa. As propriedades do hidrogênio como combustível são conhecidas há muito tempo, porém sua produção exige uma quantidade descomunal de eletricidade, o que até pouco tempo atrás só era viável com o uso de fontes não renováveis. O barateamento da geração limpa, em especial a eólica, tornou possível a produção em escala de uma versão carbono neutro do combustível, hoje a maior aposta para substituir o petróleo em indústrias poluentes, como as de transporte pesado, mineração, siderurgia etc. Elmano de Freitas se gaba de ter, em seu litoral, “talvez a melhor condição para produção de energia de vento do mundo”. “Pelos estudos a que tive acesso, o nosso hidrogênio verde será produzido a um custo equivalente a 30% do que é produzido lá fora”, disse Freitas à EXAME.

Esse potencial chamou a atenção de europeus, que já se estabeleceram no estado. O Porto de Rotterdam, na Holanda, comprou uma participação relevante no Porto de Pecém, com o intuito de fazer dois hubs para hidrogênio verde, um de exportação, em terras brasileiras, e outro de importação, em terras holandesas. A ambição é ter o maior polo de combustível limpo da Europa, e abastecer todo o continente. Segundo o governo cearense, já foram comprometidos, por diversas empresas, 17 bilhões de dólares em projetos no porto. O tsunami está chegando.


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