Estádio Soccer City, em Johanesburgo: as arenas ganharam brilho; o restante do país, nem tanto (Alexander Joe/AFP)
Da Redação
Publicado em 4 de março de 2011 às 18h49.
A menos de um mês do início da Copa de 2010, a África do Sul ainda corre para concluir obras. A parte mais diretamente ligada aos jogos deverá ficar pronta a tempo e poderá encantar os turistas e amantes do esporte mais popular do planeta. O legado para os 49 milhões de sul-africanos após 11 de julho, quando o juiz apitar o fim do último jogo, porém, é incerto.
Num país com muitas carências, alimentou-se por quatro anos a expectativa de que o esforço para realizar o maior evento esportivo global traria avanços em áreas como transporte urbano e segurança, além de atrair investimentos e gerar empregos. Já se sabe que a falta de planejamento e os problemas com mão de obra pouco qualificada resultaram em atrasos de cronograma, abandono de projetos e estouro do orçamento. O custo inicial estimado para as obras, de 3,5 bilhões de dólares, subiu para 4,2 bilhões, dos quais 1,5 bilhão só em estádios.
Como nem tudo foi concluído, a conta pode crescer. Um balanço do que foi feito até agora mostra um cenário desigual, como se vê nesta e nas próximas páginas. Houve avanços claros nas áreas vitais para o funcionamento do evento. Os aeroportos das cidades-sede foram reformados e provavelmente serão a principal herança da Copa. O governo também se apressou em melhorar a ligação até os estádios com a criação de linhas de ônibus para os turistas.
Nas áreas de energia e telecomunicações, os esforços se centraram na garantia de que as transmissões não tenham problemas - e só. Mudanças de fundo parecem improváveis e dependem de obras a ser feitas após a Copa. Idealmente, grandes eventos deveriam catalisar planos maiores de um país. Em muitas áreas, o governo sul-africano se limitou a tapar buracos - na linha do que se viu no Rio de Janeiro por ocasião dos Jogos Pan-Americanos de 2007. O Brasil, também cheio de deficiências estruturais, precisa aprender a principal lição da Copa do Mundo da África do Sul. Uma coisa é realizar os jogos. Outra é aproveitar a oportunidade para um verdadeiro salto de qualidade.
Transporte urbano
A promessa: devido à herança dos tempos do apartheid, quando os brancos andavam de carro e o regime segregacionista não se preocupava com o serviço para a população negra, o transporte público é uma das maiores deficiências das cidades sul-africanas. Com poucas linhas de ônibus e sem metrô, um caótico sistema de vans e táxis coletivos é o principal meio de deslocamento. A Copa trouxe a expectativa de um salto na mobilidade urbana.
O que foi feito: após quatro anos de obras, o governo corre para inaugurar a primeira e única linha de metrô do país, em Johanesburgo (só para comparar: o Brasil atualmente constrói cinco linhas). Algumas cidades ganharão corredores de ônibus, em especial na ligação com os estádios. O governo criou também uma linha de ônibus entre Johanesburgo e Soweto, subúrbio que concentra grande população negra e de baixa renda. É melhor do que nada, mas obviamente uma gota num oceano de necessidades. Por isso, a expectativa é que o caos continue. Muitos corredores de ônibus prometidos e outras obras vitais não saíram do papel e há o temor de que sejam deixados de lado após o campeonato.
Estradas
A promessa: reformar as principais estradas e conectá-las a terminais de transporte urbano.
O que foi feito: houve avanço real em alguns trechos de estradas como a N1 e a N2, ambas partindo de Johanesburgo. Mas o investimento de 640 milhões de dólares se limitou às áreas entre as cidades que sediarão a Copa. Uma transformação mais profunda ficou para depois. Assim como no caso do transporte urbano, teme-se que após o evento a continuidade dos planos de expansão seja adiada e as obras fiquem abandonadas.
Segurança
A promessa: reduzir os índices de criminalidade e violência do país, que registra mais de 18 000 assassinatos e meio milhão de estupros por ano.
O que foi feito: o esforço começou tarde e foi em grande parte centrado no aumento de efetivo apenas durante a Copa - o que, por si só, compromete o legado pós-jogos. Durante o evento, o número de policiais passará de 55 000 para 190 000. O país contará também com alguns equipamentos novos, como 40 helicópteros, 100 viaturas para patrulhamento de rodovias e 300 câmeras de vigilância. Há sérias dúvidas sobre a real eficiência da estratégia. Na Copa das Confederações, torneio preliminar realizado em 2009, mesmo com a segurança reforçada por 41 000 guardas, várias equipes de futebol e jornalistas relataram furtos. O mais importante é a constatação de que pouco ficará como herança. A Copa dificilmente mudará o cenário de um dos países mais violentos do mundo.
Capacitação e emprego
A promessa: criar mais de 20 000 empregos fixos e desenvolver empresas de pequeno e médio porte, principalmente da comunidade negra, que é economicamente a mais carente.
O que foi feito: estima-se que os empregos diretos e indiretos gerados temporariamente na preparação e durante a Copa somem 130 000 em diversas áreas, principalmente na construção civil e nas ligadas à saúde. Houve, com isso, um ganho de qualificação, mas há risco de que o esforço se perca. Muitos dos trabalhadores que participaram da construção dos estádios já foram dispensados. A economia do país, ainda em recuperação após a queda de 2% em 2009, não tem absorvido os trabalhadores recém-qualificados. Os investimentos estrangeiros inicialmente esperados não ocorreram e o fluxo de turistas ficará aquém do estimado com a Copa.
Energia e telecomunicações
A promessa: as grandes cidades sul-africanas sofrem apagões de energia elétrica constantemente. Apesar disso, não houve promessas de solução ampla. Desde o início, a proposta foi apenas garantir o necessário para o andamento da Copa. No que diz respeito às telecomunicações, o acesso a banda larga é restrito e o funcionamento da internet é lento. Chegou-se a falar em contratação de novos satélites para fazer a transmissão de 40 gigabytes por segundo - esses satélites seriam utilizados após o torneio para ampliar os serviços de banda larga. Mas a ideia foi logo abandonada.
O que foi feito: confirmando a pretensão modesta, o que o governo fez foi providenciar geradores movidos a óleo ao lado dos estádios para garantir que não haja problema de falta de energia durante os jogos. Os apagões que atormentam a população vão continuar. No campo das telecomunicações, apenas investimentos localizados foram feitos para que a mídia internacional não tenha problemas na transmissão das partidas.
Saúde
A promessa: melhorar o atendimento, criando duas centrais hospitalares equipadas, no valor de 4,8 milhões de dólares, em cada província que receberá o torneio.
O que foi feito: nos últimos três anos, o governo investiu 106 milhões de dólares em equipamentos para o Serviço de Emergências Médicas e contratou pessoal. Agora, somente em Johanesburgo há mais de 1 300 funcionários à disposição. Desse modo, o sistema de saúde sul-africano é uma das áreas mais benefi ciadas pela Copa. Essa pode ser uma oportunidade para cortar os índices de infecção pelo vírus HIV, que atualmente atinge 18% dos adultos e faz do país um dos que mais têm doentes de Aids.
Aeroportos
A promessa: modernizar e expandir a infraestrutura dos aeroportos com uma injeção de 2,5 bilhões de dólares.
O que foi feito: a infraestrutura aeroportuária de fato melhorou e deve ser o maior legado da Copa. Os aeroportos das cidades-sede foram reformados, como o da Cidade do Cabo, o de Mangaung e o de Johanesburgo. Depois do evento, prevê-se que as novas estruturas sejam utilizadas para receber principalmente voos de outros países africanos, responsáveis por cerca de 70% do turismo do país.
Imagem
A promessa: a África do Sul, por ser o primeiro país africano a sediar um evento global, desejava representar o continente e, mostrando seu potencial e sua diversidade cultural, melhorar uma imagem convencionalmente ligada a problemas como miséria e violência. O governo anunciou recentemente a intenção de receber também a Olimpíada de 2020.
O que foi feito: a falta de organização, que levou o país a chegar às vésperas do evento correndo para aprontar as obras, prejudicou o plano de mostrar evolução. Sem confiar na melhoria da segurança e cientes das dificuldades de deslocamento interno, muitos estrangeiros, que seriam potenciais espectadores dos jogos, não se animaram a viajar. A grande prova para a África do Sul se dará obviamente com a bola rolando nos gramados - somente então será possível aferir qual a imagem final do evento. "A Copa dá aos sul-africanos a oportunidade de demonstrar ao mundo quem realmente somos ao completar 16 anos de democracia", diz Danny Jordaan, chefe do comitê organizador. O Brasil, próximo da fila com a Copa de 2014, deverá prestar atenção redobrada nos sul-africanos - não tanto em sua seleção, que não assusta ninguém, mas nos erros e acertos do país na condução do maior evento do mundo.