Revista Exame

Passado o boom do ChatGPT, o que esperar agora da IA?

Antes de contratar IA é preciso entender as dores que ela se propõe a resolver

A IA pode contribuir tanto na eficiência operacional quanto na inteligência comercial, diz Daniel Hoe, vice-presidente de marketing para a América Latina da Salesforce (Salesforce/Divulgação)

A IA pode contribuir tanto na eficiência operacional quanto na inteligência comercial, diz Daniel Hoe, vice-presidente de marketing para a América Latina da Salesforce (Salesforce/Divulgação)

MG
Marcelo Gripa

Jornalista colaborador

Publicado em 29 de abril de 2024 às 06h00.

Última atualização em 2 de maio de 2024 às 15h31.

Foram necessários cinco anos para que a ideia de criar um tradutor simultâneo de Língua Brasileira de Sinais (Libras) evoluísse a ponto de ser finalista na categoria de inteligência artificial (IA) na edição 2024 do prestigiado South by ­Southwest (SXSW), um dos principais eventos de tecnologia do mundo. Único representante da América Latina na competição, o projeto desenvolvido pela Lenovo, em parceria com o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), mostra que a inovação não acontece de uma hora para outra.

O tradutor ganhou vida à base de uma inteligência artificial proprietária capaz de identificar visualmente e contextualizar gestos individuais, por meio de um conjunto de dados de milhares de vídeos de Libras.

Com isso, os movimentos são capturados e transformados em mensagens de texto e áudio, em português. O investimento foi da ordem de US$ 4 milhões, e a contribuição para a inclusão de pessoas com deficiência auditiva não tem preço.

“Em vez de tentar empurrar a tecnologia, é preciso olhar para o problema que eventualmente a IA pode ajudar a resolver, para, depois, difundir seu uso na organização. O que a maioria dos CEOs está fazendo é perguntar por que suas empresas ainda não estão usando inteligência artificial. A resposta é: ok, mas para quê?”, diz Eduardo Peixoto, CEO do Cesar, defensor da tese de que primeiro vem o problema, depois a solução.

Expectativa x realidade

Passado o boom do ChatGPT e superada a etapa de curiosidade, as empresas começam a se preparar para embarcar em um mundo que não é novo, mas cujas possibilidades antes estavam concentradas em grandes corporações que rodavam sem alarde seus algoritmos.

Poder computacional já não é mais um impeditivo para dar vazão ao uso da tecnologia daqui para a frente. A limitação técnica foi vencida, e a tendência é que o acesso se torne cada vez mais facilitado. O que falta, segundo especialistas ouvidos pela EXAME CEO, é um alinhamento melhor entre expectativa e realidade.

A despeito do potencial transformador da IA em vários setores, da criação de áreas­ dedicadas e de orçamentos polpudos, as empresas estão apenas arranhando a ponta do iceberg, segundo Peixoto.

“Estamos longe de ganhar escala no Brasil, porque virar a chave nas organizações é difícil”, avalia. Ele aponta a questão cultural como barreira, mas constata que a evolução é inevitável e acontecerá em diferentes proporções, desde setores que serão radicalmente transformados até atividades do dia a dia facilitadas tão naturalmente que nem sequer perceberemos a presença da inteligência artificial.

Participante do Brazil at Silicon Valley, evento que discutiu o impacto tangível da IA nos negócios, em abril, nos Estados Unidos, Miriam Wimmer, diretora da Autoridade Nacional de Proteção dos Dados (APND, na sigla em inglês), trouxe na bagagem a percepção de que a IA é uma tendência irreversível para as empresas, com ganhos de produtividade e competitividade, não sem um alerta para os cuidados de sua adoção.

“É uma tecnologia em fase inicial de desenvolvimento, que ainda gera muitos resultados equivocados, alucinações, problemas relacionados à discriminação, e precisa ser acompanhada de uma pitada de cautela, com estruturas para mitigar eventuais riscos”, pondera.

Dora Kaufman, professora na PUC-SP: “A tecnologia deve ser interpretada como uma parceira do especialista humano” (Arquivo Pessoal/Divulgação)

Muita calma nessa hora

Do alto de quem acompanha a evolução desse mercado há quatro décadas e colocou a mão na massa em cerca de 20 projetos, ­Cezar Taurion, CEO da Redcore, recomenda conter a empolgação. “Toda nova tecnologia que surge parece mágica. Ao criar uma superexpectativa, começamos a usá-la além de seus limites, e isso gera frustração. Não posso pegar um carro no Rio de Janeiro e querer chegar a São Paulo em 1 hora”, exemplifica. “É preciso observar onde aplicar e onde dá para ganhar dinheiro.”

Taurion destaca ainda a percepção de que o ChatGPT, lançado em novembro de 2022, é revolucionário, quando, na visão dele, a revolução está na interface, que permitiu o contato das pessoas com algoritmos sofisticados pela primeira vez.

“É como se tivéssemos ido dormir na Idade Média e acordássemos na era espacial”, compara. Diferentemente dos modelos de IA generativa que rodavam dentro das big techs, guardados a sete chaves, o “pulo do gato” da OpenAI foi abrir o modelo e contar com o apoio de quem estivesse interessado em interagir com o chatbot.

Deu certo: em poucos dias, uma multidão passou a usar a solução, que se aprimorou, voluntária e gratuitamente, a partir da técnica de aprendizado por reforço. Quase um ano e meio depois, já são perto de 200 milhões de usuários.

“Quando o hype é maior do que a tecnologia em si, pode haver quebra de expectativas e formação de bolhas”, alerta Pedro Henrique Ramos, professor de direito e tecnologia no Ibmec/SP e estudioso do tema.

Ele destaca o momento atual “maravilhoso” para a expansão da IA, mas pondera que avanços precisam ser feitos para que provoque o impacto esperado, o que levanta a necessidade de investimento em letramento digital para uma maior consciência dos riscos da tecnologia.“Ao usarem uma ferramenta de IA generativa, as pessoas têm de se perguntar sobre os elementos de confidencialidade e possíveis erros que podem derivar dela, junto com a verificação de vieses. No caso de uma produção de texto, por exemplo, é preciso verificar fontes”, observa.

IA na prática

A inteligência artificial já alimenta há anos plataformas de companhias que são protagonistas da economia digital, como ­Amazon, Netflix, Spotify e Uber. Ela funciona por meio do reconhecimento de padrões e, para isso, precisa ser treinada com um grande volume de dados que lhe permitam dar respostas coerentes às solicitações feitas.

A novidade que chacoalhou o mercado foi a popularização da inteligência artificial generativa, técnica que permite gerar a próxima palavra de uma frase ou imagem com base em tudo que a máquina “aprendeu”, e dos large language models (LLMs), modelos treinados com base em grandes quantidades de dados a fim de “conversar” mais naturalmente com as pessoas. Fato é que nem toda IA é generativa, mas toda IA generativa é IA.

Não basta querer

O aumento do apetite mundo afora pelo tema e a maior acessibilidade da inteligência artificial podem dar a impressão de que sua adoção é simples ou trivial. Como explica Dora Kaufman, professora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Faculdade de Ciências e Tecnologia da PUC SP, “a IA pode agregar um valor extraordinário aos negócios, é a tecnologia estratégica do século 21, mas sua implementação requer investimento prévio em processos, equipe qualificada e um arcabouço de governança”.

No ímpeto de embarcar na primeira fila nessa viagem rumo ao futuro, é comum que as empresas cometam erros de compreensão técnica e de pré-requisitos básicos para o funcionamento adequado de um projeto na área. Segundo Cezar Taurion, o mercado está repleto de histórias que começam com bons propósitos e ficam no meio do caminho.

É o caso de uma organização que estava interessada em fazer um sistema de manutenção preditiva para equipamentos agrícolas. Na hora da análise dos dados, descobriu-se que havia várias gerações de máquinas operando em fazendas e que cada geração tinha um grupo de sensores diferentes, acusando o problema de conciliação de dados.

Adicionalmente, nem todas as filiais do negócio armazenavam os dados ao longo do tempo, porque nunca houve demanda por manutenção preditiva, apenas corretiva. Um exemplo claro de uma ideia que poderia funcionar no papel, mas que, sem os insumos necessários, não se sustenta em pé.

Pedro Henrique Ramos, professor de direito e tecnologia no Ibmec/SP: “Ao usar uma ferramenta de IA generativa, é preciso questionar os elementos de confidencialidade” (Arquivo Pessoal/Divulgação)

IA para que, afinal?

A IA tem ajudado as empresas a aumentar a eficiência operacional, melhorar as tomadas de decisões e fornecer experiências personalizadas para os clientes. Não à toa as áreas de atendimento, vendas e marketing estão na dianteira da adoção da tecnologia na América Latina.

É o que mostra um relatório divulgado em agosto de 2023 pela empresa de venture capital Atlantico. Entre 2019 e 2022, o interesse pelo tema nesses departamentos disparou 110% e 23%, respectivamente. Daniel Hoe, vice-presidente de marketing para a América Latina da Salesforce, destaca ganhos nos seguintes processos:

Automação — realização de tarefas repetitivas e demoradas, liberando os colaboradores para se concentrarem em trabalhos mais estratégicos e de maior valor para a empresa.

Melhoria nas tomadas de decisões — análise de grandes volumes de dados para identificar padrões e tendências.

Personalização — recomendações e ofertas com base nos comportamentos e preferências indivi­duais dos clientes.

Previsão — análise preditiva, com base em dados, que apoia as empresas a planejar e otimizar suas operações. 

Um exemplo prático é a plataforma proprietária Einstein 1, que faz mais de 1 trilhão de previsões alimentadas pela tecnologia semanalmente. “Isso permite que as empresas desenvolvam conversas mais personalizadas com seus consumidores, compreendam melhor o comportamento deles e, consequentemente, fechem negócios mais rapidamente”, conta.

Entre cases globais, Hoe destaca a Fórmula 1, que utiliza computação na nuvem para desenvolver novas maneiras de engajar os fãs. Por meio de chatbots automatizados, foi possível melhorar a satisfação dos clientes de 70% para 88%, a partir de insumos em tempo real utilizados pelas equipes de vendas, atendimento e marketing.

O futuro é logo ali

Especialistas preveem a IA onipresente com o passar do tempo, sendo decisiva para a otimização de praticamente qualquer demanda empresarial que possa ser realizada a partir de dados e inferências probabilísticas, seja via técnicas de aprendizado de máquina, seja pela IA generativa. “Vai deixar de ser notícia”, prevê Taurion, à medida que estiver embarcada em aplicações com algoritmos sofisticados, ainda mais automatizados e com dados à disposição.

A indústria da produção de conteúdo está na linha da frente do impacto causado pela IA. O uso de soluções já permite a compilação ou o resumo de textos rapidamente. O mesmo vale para os escritórios de advocacia.

A expectativa é que os chatbots possam gerar modelos de pareceres jurídicos com muito mais agilidade do que uma pessoa, o que não significa que o trabalho humano será descartado. Pelo contrário. A aposta de especialistas é que, da mesma forma que houve um salto de produtividade significativo da máquina de escrever para o Word, no futuro será normal utilizar recursos da IA como copilotos na execução de tarefas digitais rotineiras, como já acontece nas buscas do Google, que se autocompletam com base no contexto da pergunta. “A IA expande a potencialidade de profissões mais criativas por causa da interação com a base de dados global”, analisa Eduardo Peixoto, do Cesar.

Cezar Taurion, CEO da Redcore: “É preciso observar onde aplicar e onde dá para ganhar dinheiro” (Redcore/Divulgação)

Uma nova era adiante

Em seu relatório anual, Amy Webb, uma das principais futuristas do mundo e CEO do Future Today Institute, classifica o momento atual como um “superciclo da tecnologia”, período no qual a difusão da inovação será tão potente que vai remodelar a estrutura da sociedade e alterar os hábitos das pessoas, transformando, consequentemente, os negócios.

A inteligência artificial é um dos propulsores desta nova era que, na visão dela, assim que ganhar maturidade e superar a fase do hype, vai levar as empresas a outro patamar. Mas há preocupações no radar, como a disrupção da força de trabalho e questões relacionadas à ética e à privacidade dos dados.

Regulamentação e cuidados

A discussão sobre o futuro da inteligência artificial passa pela busca da regulamentação do setor e pela definição de regras claras e diretrizes que orientem os próximos passos da tecnologia. No Brasil, as discussões estão a todo vapor e há dezenas de projetos em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Para Miriam Wimmer, diretora da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), caso o país opte por um modelo inspirado no da União Europeia, é importante que haja o esforço de preservar e ampliar os direitos protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, e que exista um órgão central capaz de estabelecer coerência na interpretação da legislação, em articulação com reguladores setoriais. Na visão dela, esse papel poderia ser desempenhado pela própria ANPD.

“Um arranjo desse tipo seria o mais favorável para trazer segurança jurídica e proteger os interesses dos indivíduos que são afetados por sistemas de inteligência artificial”, opina.

Combustível para o bom funcionamento da IA, os dados também merecem atenção especial de olho no futuro, segundo Wimmer. Ela recomenda que as bases de dados nas empresas sejam consistentes, sem elementos que possam conduzir a erros, vieses e discriminação.

Eduardo Peixoto, CEO do Cesar: “A IA expande a potencialidade de profissões mais criativas por causa da interação com a base de dados global” (Arquivo Pessoal/Divulgação)


A corrida pela inteligência artificial

638 bilhões de dólares — projeção para 2024

1,8 trilhão de dólares — projeção até 2030

15 trilhões de dólares de contribuição para a economia global    projeção até 2030

40% — lideranças de negócios que reportam o aumento da produtividade por meio da automatização

33% — cases de automatização da área de TI

Fontes: Statista / PWC / Precedence Research


Cases com IA na América Latina

Atendimento ao cliente — Nubank

O lançamento da Precog, IA em tempo real para resolver dúvidas dos clientes, aumentou a habilidade da empresa de prever a intenção do consumidor nas interações em 50%.

Atendimento ao cliente — iFood

Uma IA com base no ChatGPT agilizou a compra de mercado pelo WhatsApp via comandos de voz. Nos primeiros 30 dias, houve alta de 157% no volume de pedidos, e as conversões triplicaram.

Vendas e marketing —  Mercado Livre

Ferramentas de IA analisaram 5.000 variáveis em menos de 1 segundo. Com isso, apenas 0,56% dos 536 milhões de anúncios da empresa precisaram de moderação manual durante um trimestre.

Vendas e marketing — NotCo 
O lançamento de uma campanha de IA generativa com imagens hiper-realistas aumentou a consciência do público sobre animais com expectativa de vida reduzida na indústria de alimentos.

Fonte: Relatório da Atlantico sobre transformação digital na América Latina.


A evolução da IA ao longo do tempo

Em seu livro AI Superpowers, lançado em 2018, o cientista da computação e empresário Kai-Fu Lee aborda a disputa entre EUA e China pela hegemonia tecnológica e conceitua as quatro ondas da inteligência artificial.

Onda 1 — IA na internet

Com base no rastro dos usuários online entre um clique e outro, o primeiro estágio da inteligência artificial usa dados para acumular conhecimento, classificar grupos de perfis e criar ofertas personalizadas.

Onda 2 — IA nos negócios

Na segunda fase, o treinamento dos algoritmos com dados proprietários, como as compras dos clientes, apoia as tomadas de decisões. Ao analisar grandes volumes de informação, a máquina chega a conclusões probabilísticas, como scores de crédito.

Onda 3 — IA com percepção

A proliferação de sensores inteligentes, assistentes pessoais e sistemas de reconhecimento facial representa o terceiro estágio, com dados nunca antes capturados pela IA. É como se as máquinas ganhassem olhos e ouvidos.

Onda 4 — IA autônoma

Fase mais complexa, que integra todas as outras e dá às máquinas a capacidade de “sentir” como se fossem pessoas, reagir de acordo com o que acontece ao redor e manipular objetos. Os veículos autônomos são um exemplo da quarta onda da IA.

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