Trem da Rumo All, em Rondonópolis: quase 9 bilhões de reais para salvar a empresa (foto/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 16 de fevereiro de 2016 às 10h51.
São Paulo – Bastaram duas semanas à frente da empresa de logística Rumo ALL, em abril de 2015, para Julio Fontana começar a reunir funcionários, credores e clientes para conversas francas. “A empresa está tecnicamente quebrada. Vamos lidar com isso e reverter esse quadro. Acabou o ‘me engana que eu gosto’ ”, disse em pelo menos cinco reuniões.
Fontana, que havia comandado as empresas Cosan Logística e MRS, de 1999 a 2015, sabia que o desafio seria grande. Comprada em julho de 2014 pela Rumo, empresa de logística do grupo de energia Cosan, a ALL havia sido, por anos, considerada a empresa de operações ferroviárias mais eficiente e rentável do país.
Aos poucos, porém, problemas operacionais começaram a arranhar aquela imagem. Cheia de ambição e com mais fôlego financeiro, a Cosan viu nos tropeços da ALL a chance de criar um novo gigante da logística. A fusão da Rumo com a ALL foi aprovada em abril de 2015, e Fontana colocou mãos à obra. Mas, por mais que soubesse que não teria vida fácil, Fontana não podia estar preparado para a tormenta que viria nos meses seguintes.
O plano da nova gestão era aumentar a capacidade de transporte da ALL e melhorar o serviço prestado aos clientes após anos de relacionamento difícil. Em paralelo, renegociar as dívidas que haviam se acumulado. Tudo sem atropelos, como convém a esse setor. Mas, hoje, o cenário é bem diferente.
A empresa tem dívidas de 6 bilhões de reais que vencem em três anos, precisa de 8 bilhões de reais para investir e, a rigor, ninguém sabe direito de onde virá esse dinheiro todo — hoje, seu endividamento equivale a cinco vezes a geração de caixa, patamar considerado perigoso.
Em vez de acalentar sonhos grandiosos de curto prazo, os novos donos da ALL correm contra o tempo para que a empresa tenha futuro. “Tivemos de traçar um plano emergencial de 18 meses para viabilizar a companhia”, diz um executivo que participa da reestruturação. Procurada, a Rumo ALL não deu entrevista. EXAME ouviu funcionários, consultores, clientes e credores.
O plano de emergência é separado em duas partes. Na primeira, o objetivo é aliviar o que executivos do grupo descrevem como uma crise operacional. A ALL foi criada em 1997, quando os empresários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles arremataram concessões ferroviárias em leilões de privatização.
Na época, o trio ainda comandava o fundo GP Investimentos, vendido a uma nova geração de sócios em 2004. Nas mãos dos empresários, a ALL deu um salto. Em duas décadas, a empresa multiplicou o lucro mais de 20 vezes e tornou-se um “celeiro” de formação de executivos com o jeitão de Lemann — entre os mais destacados, Alexandre Behring, que presidiu a ALL de 1998 a 2004, e seu sucessor, Bernardo Hees.
Hoje, os dois comandam as empresas americanas do império de Lemann. A GP deixou o controle da ALL em 2008, mas seu estilo de gestão perdurou. Num setor marcado pela ineficiência, a preocupação da ALL com metas e geração de caixa era elogiada por analistas, investidores e concorrentes.
Mas, no caminho, a empresa foi perdendo a mão e, segundo os críticos, passou a descuidar da parte operacional para não sacrificar resultados de curto prazo. A empresa tornou-se líder em autuações da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) por descumprimentos de normas de manutenção e procedimentos de segurança, e também tem alta ocorrência de acidentes, tanto em números absolutos quanto nos índices que levam em conta o tamanho da malha de cada empresa.
Com a rede depauperada, os trens precisam trafegar em velocidade reduzida. A média da ALL é de 13 quilômetros por hora, segundo a agência, menos da metade da média brasileira. Segundo especialistas, os números são consequência de um período de quase sete anos com poucos investimentos.
“A ALL investiu muito no começo da privatização, mas depois segurou os gastos”, diz Cláudio Frischtak, diretor da consultoria InterB, especializada em infraestrutura. Os cortes haviam sido tão profundos que não havia nenhuma área diretamente responsável pela interlocução com a ANTT — a área foi criada após a fusão.
Seguindo seu plano de emergência, a Rumo começou, então, a substituir a malha ferroviária que veio da ALL. Em nove meses, investiu 2 bilhões de reais na manutenção de trilhos e na compra de locomotivas e vagões. O investimento médio da ALL na última década havia sido de 800 milhões de reais por ano. O plano da Rumo é investir 2,6 bilhões de reais por ano até 2018.
Na gestão anterior, foram instalados suportes de trilhos (os dormentes) de eucalipto, mais baratos e menos duráveis. Eles deveriam ter sido substituídos depois de cinco anos, o que não foi feito. Nos últimos meses, a Rumo ALL substituiu 60 quilômetros de linhas por dormentes de aço. A empresa deve substituir quase 1 500 quilômetros, na estimativa de especialistas.
A Rumo também está trocando as locomotivas — boa parte comprada de segunda mão na década de 90. As novas custam 1,8 milhão de dólares e duram 20 anos; as usadas custavam 500 000 dólares e deveriam ser trocadas em dez anos. Mas não foram. As administrações anteriores defendem suas estratégias.
“No Brasil da década de 90, investimos como era possível para melhorar a capacidade operacional de uma empresa que não gerava caixa. O índice de acidentes caiu pela metade somente nos dez primeiros anos de privatização e o volume transportado dobrou”, diz um ex-diretor da ALL.
O fato é que, desde 2013, os problemas operacionais da ALL haviam originado uma série de brigas com clientes, que reclamavam de atrasos e serviços não prestados. A própria Rumo cobrava 1 bilhão de reais, e a empresa de armazenagem de grãos Agrovia, 580 milhões. Com o compromisso de investir na malha, Fontana conseguiu alongar contratos que tinham prazo de um ano para três anos com clientes como as gigantes de alimentos Bunge e Cargill.
A empresa diminuiu 5 horas o tempo de trânsito entre Rondonópolis, em Mato Grosso, e o porto de Santos. No terceiro trimestre, a nova ALL teve recorde de volume transportado, com 1,5 milhão de toneladas por mês, ou 587 vagões por dia — alta de 15% no volume.
A relação com funcionários também tinha lá seus atritos. Em 2010, a ALL foi condenada a pagar 15 milhões de reais por manter um grupo de 51 funcionários em situação “degradante”. A empresa sempre alegou que os trabalhadores eram de uma empresa terceirizada (a Cosan, que hoje controla a ALL, também já frequentou a lista de empresas acusadas de trabalho escravo, e também alegou que os funcionários em questão eram terceirizados).
Em 2014, o Ministério Público chegou a acusar a ALL de não fornecer água potável a seus trabalhadores — a Justiça obrigou a empresa a dar garrafas térmicas a seus funcionários para que pudessem abastecê-las de água a cada estação, mas a companhia recorreu.
Quando a Rumo assumiu a ALL, Fontana mandou entregar a 7 500 empregados que trabalham ao longo das linhas férreas uma mochila com garrafa térmica, talheres e toalha. E os maquinistas, que antes dormiam nas estações, passaram a pernoitar em hotéis.
Além da frente operacional, a Rumo tem de encarar um desafio ainda mais urgente — o financeiro. Em julho de 2014, os analistas do banco BTG Pactual projetavam para a Rumo ALL um lucro de 585 milhões de reais em 2015, mas, até setembro, o resultado foi um prejuízo de 240 milhões. Atrapalhou muito, aqui, uma baixa contábil de 1,5 bilhão de reais que a Rumo teve de fazer no ano passado.
egundo três executivos próximos à empresa, os novos donos entenderam que a ALL reportava algumas despesas como investimento, o que inflava os resultados e, para usar a expressão adotada por Fontana nas reuniões com seus executivos, pagava bônus no estilo “me engana que eu gosto”.
A Rumo mudou outras práticas contábeis. De 2010 a 2013, considerado o período de maior deterioração operacional e financeiro da empresa, a ALL pagou 60 milhões em bônus à diretoria.
Além de precisar de 8 bilhões de reais para investir, a Rumo ALL tem 6 bilhões de dívida vencendo dentro de três anos. Com o mercado de crédito fechado em razão da crise, esse é o tipo de problema que empresa nenhuma quer ter. A fusão contava com o apoio do BNDES, que teria prometido uma linha de crédito de 1,5 bilhão de reais em 2015 — mas, com as restrições orçamentárias do banco, o dinheiro não saiu.
A empresa também receberia um aporte de 1 bilhão do FI FGTS, que usa recursos do Fundo de Garantia. Mas o fundo tem adiado o negócio devido à preocupação com o endividamento. A solução de emergência é uma injeção de capital de 650 milhões de reais (a captação está em curso). A Cosan vai colocar 250 milhões de reais no negócio.
Na conta de analistas, o aporte deve diminuir o endividamento em cerca de 15% e melhorar a estrutura de capital, o que pode agilizar a entrada do FI FGTS e começar a aliviar as coisas. Executivos de bancos afirmam que a Rumo ALL precisa de pelo menos mais 900 milhões de reais de capital em 18 meses.
Com a injeção de 650 milhões de reais, a empresa espera ganhar tempo para melhorar seus resultados e, aí, sim, “abrir” o mercado de capitais. Em paralelo, está negociando com a ANTT a renovação antecipada da concessão da malha paulista (que equivale a 20% da extensão total), o que poderia facilitar os novos investimentos. A concessão acaba em 2028 e a Rumo quer assegurar que terá mais 30 anos de operação — mais tempo para encarar o trabalho pesado que parece ter pela frente.