Revista Exame

OPINIÃO: o Brasil matou o dragão da inflação, mas brinca com seus ossos

O que tem gerado inflação hoje no Brasil — e em quase todo lugar — é antes um choque de oferta do que de demanda, mas a alma indexadora do brasileiro faz com que o perigo esteja sempre à espreita

A Selic de 2% foi a menor taxa de juro que nunca existiu. Os juros caíram de fora para dentro, não por uma melhora nas percepções sobre o Brasil  (Andriy Onufriyenko/Getty Images)

A Selic de 2% foi a menor taxa de juro que nunca existiu. Os juros caíram de fora para dentro, não por uma melhora nas percepções sobre o Brasil (Andriy Onufriyenko/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 19 de agosto de 2021 às 05h49.

Última atualização em 25 de agosto de 2021 às 13h06.

A vida de um economista no Brasil é uma tarefa curiosa. Num país pródigo em crises sistemáticas, o ofício de “dar sentido” ao que se passa é uma tarefa extenuante e um tanto imprecisa. O economista tem de fornecer a seus clientes impressões sobre o futuro com parcos instrumentos teóricos e mensurações nebulosas da rea­lidade.

Nesse sentido, o trabalho se assemelha ao de um intelectual: somos os chamados a opinar sobre o que está sendo e o que vai ser. Costumo brincar com meus colegas na Faria Lima que deve ser um tédio ser economista na Suécia, mas nem isso explica o nível de exigência que um economista vive no Brasil. Nem questões que se davam como resolvidas estão de fato equacionadas. Veja a inflação, por exemplo.

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Apesar de o Plano Real ter acabado com o período mais agudo da inflação, até hoje a tarefa que mais ocupa tempo e esforço de qualquer departamento econômico, pelo menos no mercado financeiro, é calcular e projetar índices de inflação. Não por menos: todo santo mês são pelo menos 11 índices de preços diferentes divulgados nesta terra ensolarada. Vamos contar.

Índices oficiais temos dois, o IPCA e sua prévia, o 15. Os da Fundação Getulio Vargas mais cinco, onde temos os IGPs do primeiro e segundo decêndio, o 10, o M e o DI. Da região metropolitana de São Paulo temos mais quatro medidos pela Fipe, um para cada quadrissemana do mês, tanto faz se é ano bissexto ou não. Isso sem contar índices desagregados, como o INCC, ou medições de inflação ao produtor, como o IPP do IBGE.

Matamos o dragão da inflação em 1994, mas estamos brincando com os ossos no jardim. Não é uma reação neurótica como algum veterano de guerra que ao ouvir um barulho de pratos caindo na cozinha corre para debaixo da cama. Há outros bons motivos para mantermos essa exagerada atenção sobre os preços no Brasil.

Certa vez um economista bastante famoso disse, ao criticar os planos de estabilização de preços da década de 1980, que o erro desses planos consistia em achar que a inflação era uma febre sem uma infecção, ou seja, o erro era achar que a inflação era um fenômeno por si e sem relação com a emissão monetária.

O que ele queria apontar era que a raiz dos problemas inflacionários era o descontrole fiscal. Aparentemente um ex-presidente disse a um grupo de economistas que, se para controlar a inflação fosse necessário cortar gastos públicos, ele não precisaria de economistas. Que inveja dos suecos.

A geração de economistas antes da minha tinha como obsessão controlar a inflação. Já a minha tem como meta a queda dos juros de tal sorte que a economia brasileira possa crescer de maneira saudável. Foi aí que chegou um presente de grego: os juros, um belo dia, caíram muito mais do que ousamos sonhar. A Selic bateu em 2% e, atônitos, vimos uma taxa de juro como nunca antes na história deste país.

No entanto, os juros caíram de fora para dentro. Mesmo a taxa de juro em recorde de baixa não criou os efeitos benéficos esperados para o crescimento do país.

Minha avaliação mais geral sobre o que aconteceu pode ser resumida no seguinte raciocínio: a boa notícia é que está ruim. Os juros caíram não por uma melhora geral das percepções sobre o futuro do Brasil, mas antes por uma piora generalizada de todos os indicadores, além de uma inédita liquidez externa. Como costumo falar aos clientes, esta Selic de 2% foi a menor taxa de juro que nunca existiu. Chegamos assim ao fenômeno inflacionário mais uma vez. 

Houve quem achasse que o problema central da inflação estava na perspectiva fiscal, numa teoria quantitativa da moeda que vincula preços a meio circulante. Após a crise de 2008, contudo, essa hipótese canônica caiu por terra e todos os bancos centrais do mundo mandaram às favas os bons modos monetaristas imprimindo como se não houvesse amanhã.

A queda dos juros de fato gerou inflação, mas de ativos financeiros, não de bens de consumo num primeiro momento. O que tem gerado inflação hoje no Brasil — e em quase todo lugar — é antes um choque de oferta do que de demanda, e isso tem feito os juros oscilar como loucos tentando dar conta da nova realidade.

No Brasil, é nesse ponto que olho os ossos no jardim e começo a ver uma luz estranha sair da carcaça do dragão abatido. Dado que a inflação hoje é de oferta,  uma vez que a demanda está fragilizada (o que explica em parte o efeito fraco dos juros “baixos” sobre o investimento geral), a verdadeira alma do dragão volta a procurar seu corpo.

Não ouso dizer que a inflação não é também um fenômeno quantitativo, afinal a quantidade é uma qualidade em si, mas a verdadeira natureza da inflação brasileira talvez derive do fato de que nossa alma é ela mesma indexada. Num país onde a cordialidade se estabelece como uma estratégia para circular numa sociedade onde público e privado se confundem, a indexação é sua versão econômica.

Não discutimos nossas relações, como um mísero aluguel. O certo seria quando vencesse um contrato as duas partes sentarem e repactuarem a relação. Mas por aqui mandamos um “até logo, abração e passa lá em casa” dizendo que nossa relação será mediada por um terceiro, um índice. As relações no Brasil não são diretas, são mediadas, e os índices são sintomáticos da nossa própria cordialidade, este sim um sintoma muito maior da nossa própria estrutura social. Estocolmo me parece um lugar muito mais agradável estes dias.  

(Arte/Exame)

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