Revista Exame

Os dólares chineses chegam ao campo brasileiro

Proibidos de comprar terras em volume economicamente viável, os chineses investem em parcerias com produtores brasileiros

Lavoura de arroz em Goiás: produtores locais, como Odécio Kieling, contam com a vinda de dinheiro chinês para expandir a produção (Cristiano Mariz/EXAME.com)

Lavoura de arroz em Goiás: produtores locais, como Odécio Kieling, contam com a vinda de dinheiro chinês para expandir a produção (Cristiano Mariz/EXAME.com)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

Quando o economista inglês Jim O’Neill, do banco Goldman Sachs, cunhou a sigla Bric, em meados dos anos 2000, as relações comerciais entre Brasil e China eram pouco significativas. As exportações brasileiras para o parceiro de sigla não chegavam a 1 bilhão de dólares ao ano. Hoje, o cenário é bem diferente. Brasileiros e chineses nunca estiveram tão próximos. O intercâmbio bilateral quadruplicou nos últimos cinco anos, para 37 bilhões de dólares em 2009 — montante suficiente para colocar a China no topo da lista de parceiros comerciais do Brasil. A aproximação também fez com que os investimentos chineses no país ganhassem corpo.

De janeiro a setembro, apenas 372 milhões de dólares vindos da China entraram de fato no país — num total de 23 bilhões que o país recebeu. Mas os projetos anunciados por empresas chinesas somam cerca de 28 bilhões de dólares. Seu capital começa a ingressar com força nos mais diversos setores, da mineração à siderurgia, da exploração de petróleo à produção de veículos. É assim, aliás, no mundo todo, como mostrou em recente reportagem de capa a revista inglesa The Economist. Bancos, petroleiras e outras companhias, com centenas de bilhões de dólares na retaguarda, fazem propostas irresistíveis em qualquer lugar do planeta.

Um setor em que o Brasil tem atrativos óbvios e representa um desafio para a entrada dos chineses é o agronegócio. Trata-se de uma investida considerada vital para garantir o abastecimento de alimentos na China. Outro objetivo é fugir de tradings como ADM e Bunge, que dominam o comércio do setor, e economizar até 20% no preço da soja. Nos últimos meses, representantes chineses visitaram polos agrícolas do país e engatilharam negócios, especialmente na Bahia, no Maranhão, no Piauí e em Tocantins. Não fosse um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) — que, em agosto, limitou a compra de terras por estrangeiros a menos de 25% da área de qualquer município e proibiu que eles sejam majoritários nos empreendimentos agrícolas —, os planos de aquisição teriam vingado. A polêmica medida foi tomada sob alegação de que as terras são estratégicas e entregá-las a forasteiros poria em risco a segurança alimentar do país no futuro.


Se por ora estão impedidos de comprar, os chineses podem, porém, financiar produtores no campo brasileiro. Um grande passo nesse sentido foi dado no dia 8 de novembro, em Brasília, quando o governador de Goiás, Alcides Rodrigues Filho, assinou um termo de cooperação com a estatal China National Agricultural Development Group. O acordo poderá resultar em investimentos de até 7,5 bilhões de dólares no estado. O capital seria suficiente para expandir a produção de alimentos em 6 milhões de toneladas, volume a ser exportado para a China. A ideia é que o dinheiro chinês transforme 2,5 milhões de hectares de pastos em lavouras de grãos. “Os investimentos ajudarão a desenvolver o agronegócio em Goiás”, afirma Odécio Kieling, sócio de uma propriedade com 1 800 hectares dedicada à produção de arroz irrigado e soja no município de São Miguel do Araguaia, no norte do estado. “Os chineses estão interessados em projetos grandes, mecanizados e com tecnologia de ponta. Será uma boa oportunidade para os produtores da região.”

Assim que souberam do acordo, os sócios de Kieling partiram em busca de novas áreas para expandir a produção. Em pouco tempo, identificaram 6 000 hectares de terras degradadas, utilizadas para a pecuária extensiva, e já preparam um projeto de agricultura irrigada para apresentar aos chineses. Segundo especialistas, o custo para concretizar um projeto desse porte seria próximo de 90 milhões de dólares. A proposta — a primeira desde a assinatura do termo de cooperação — deve ser enviada à China em algumas semanas. Outros projetos estão sendo formulados no norte do estado. O interesse dos chineses na região deve-se, em grande parte, à chegada da ferrovia Norte-Sul, cujo trecho da divisa de Tocantins até a cidade goiana de Anápolis tem inauguração prevista para dezembro. Até então, o isolamento da área tornava difícil o escoamento. Com a ligação ferroviária, haverá uma saída para os grãos pelo porto de Itaqui, no Maranhão. “Ter uma logística adequada é fundamental para atrair investimentos”, afirma o governador Rodrigues Filho. “Já identificamos diversas oportunidades ao longo da ferrovia.”


As parcerias podem resolver parte do problema de abastecimento da China, mas o plano original de comprar terras e produzir por conta própria está mantido. Para isso, porém, será necessário que o governo brasileiro mude sua posição. Há expectativa de que o Congresso aprove uma regulamentação mais flexível. “Não somos contra o investimento estrangeiro. A decisão da AGU serviu apenas para estabelecer um limite”, afirma Rolf Hackbart, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, órgão responsável pelo controle das terras nacionais. O próprio Hackbart, no entanto, admite que o Incra não sabe ao certo quem são, onde estão e o que fazem os estrangeiros que já atuam no país.

Pelos dados do Incra, os chineses detêm 13 794 hectares de terras no Brasil. Porém, segundo apurou a reportagem de EXAME, esse número não reflete a realidade. Há dois anos, um único grupo, o Kasen International, comprou uma fazenda de 16 000 hectares no município de Lagoa da Confusão, em Tocantins, onde planta soja para exportação. O grupo possui outra fazenda, no Rio Grande do Sul. Em julho de 2008, o Kasen solicitou ao Ministério do Trabalho e Emprego 14 vistos de trabalho para trazer chineses. Todos foram negados, incluindo o do presidente do grupo, Zhu Zhangjin, membro do Partido Comunista chinês. Um temor que teria levado à negativa é de que os chineses poderiam fazer no Brasil o mesmo que fazem na África: trazer da China até a mão de obra barata necessária nos empreendimentos e tirar o emprego da população local. Procurados pela reportagem, os executivos do Kasen não quiseram dar entrevista.

Investimentos suspensos

A insegurança causada pela decisão da AGU — que afetou a situação não apenas dos chineses mas de todas as empresas de capital estrangeiro do agronegócio, e foi contestada até mesmo dentro do governo — deve adiar uma série de investimentos estrangeiros no Brasil. “Os chineses estão esperando uma definição”, afirma Guilherme Sahade, presidente da GMR Florestal e da Associação dos Reflorestadores do Tocantins. Segundo ele, os investimentos da China em três projetos de reflorestamento no Brasil poderiam chegar a 9 bilhões de dólares. “Mas o dinheiro só virá se houver segurança jurídica”, diz Sahade. Mesmo diante das dificuldades para avançar no agronegócio brasileiro, a China não deve desistir. Diversos escritórios de advocacia brasileiros foram acionados para buscar brechas legais que permitam a compra de terras. Trata-se de uma questão que divide opiniões. A pergunta que fica é: vale a pena abrir mão de tantos investimentos em nome de uma suposta segurança nacional?

Acompanhe tudo sobre:AgronegócioÁsiaChinaEdição 0981Investimentos de empresasTrigo

Mais de Revista Exame

A tecnologia ajuda ou prejudica a diversidade?

Os "sem dress code": você se lembra a última vez que usou uma gravata no trabalho?

Golpes já incluem até máscaras em alta resolução para driblar reconhecimento facial

Você maratona, eles lucram: veja o que está por trás dos algoritmos