Mulher em home office: a nova realidade do trabalho vai exigir mais flexibilidade das empresas, treinamento e mudanças na legislação (Oli Scarff/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 12 de fevereiro de 2021 às 07h59.
O impacto do coronavírus na nossa vida tem sido tão grande que virou chavão dizer que, depois que a pandemia passar, nada será como antes. Isso se aplica também ao trabalho? Qual é o impacto mais profundo que a crise da covid-19 trouxe para o futuro do trabalho? Para discutir esse tema, a EXAME CEO reuniu três especialistas para um bate-papo de 60 minutos por videoconferência, no início de janeiro: Priscila Castanho, diretora de employee success da Salesforce para a América Latina; Iza Dezon, consultora de estratégia que trabalha com análises de novas tendências socioculturais; e Denise Asnis, especialista em educação corporativa e sócia fundadora do Taqe, aplicativo para recrutamento de jovens talentos de forma 100% online. A seguir, os principais trechos do bate-papo.
EXAME CEO: Qual foi a principal mudança que a covid-19 e a aceleração digital trouxeram para o trabalho? Dá para afirmar que nada será como antes?
→ IZA DEZON: É óbvio nesta pandemia que a primeira grande pergunta que todo mundo faz é se tudo mudou completamente. E eu gosto de lembrar que as mudanças de comportamento acontecem em ondas. Não são ondas gigantes que vêm de repente e mudam as coisas completamente. O trabalho é altamente impactado por essas novas dinâmicas, mas não é uma transformação imediata. As coisas ocorrem em ondas e vamos sentir, provavelmente nos próximos dez anos, as mudanças que começaram em 2020.
→ PRISCILA CASTANHO: A pandemia mudou o jeito de trabalhar, especialmente em empresas que ainda não estavam na era digital. Muitas tiveram de correr atrás para ter uma força de trabalho 100% no remoto do dia para a noite. Ainda está sendo um período de adaptação, mas acho que nunca voltaremos ao que era antes. Vamos ter de conviver com o vírus por muitos anos, e fazer um reset e voltar a trabalhar como antes vai ser impossível. Vamos ter talvez um blend, trabalhar metade no escritório, metade remotamente. A Salesforce fez uma pesquisa global recentemente, com mais de 20.000 pessoas, incluindo 2.000 no Brasil. Mais da metade disse que, se tivesse opção de trabalhar remotamente, trabalharia, mas não são todas as empresas que conseguem oferecer essa flexibilidade. E muitas pessoas também não se sentem preparadas para trabalhar dessa forma.
→ DENISE ASNIS: O que temos percebido é que mesmo empresas muito tecnológicas estão vivendo um processo complicado hoje de se voltar para o indivíduo. Porque antes era muito forte o conceito de que a tecnologia bastava por si. Mas o ser humano é, por natureza, social. E isso, de certa forma, estava sendo negligenciado pelas empresas mais digitais. Recentemente, conversei com uma pessoa que estava muito triste. Ela disse: “Não estou aguentando mais ficar sozinha. Estou lutando comigo mesma para conseguir trabalhar, para produzir o que produzia antes. A empresa entende o que estou passando, mas estou mal”. Está claro que as empresas vão ter de olhar para duas coisas: manter-se atualizada para acompanhar as novas tendências de tecnologia, mas ao mesmo tempo acolher as pessoas e incluir o lado humano e social nessa história.
→ IZA: Eu só queria lembrar que, no Brasil, 50% das pessoas não têm saneamento básico, e menos ainda são as que têm acesso à tecnologia. Então, quando falamos em trabalho remoto, estamos falando de um nicho de privilegiados, de pessoas que têm acesso à internet. É importante lembrar também da economia do cuidado, que inclui o trabalho de cuidados da casa, da alimentação, da criança. Essa economia invisível não é contabilizada e sobrecarrega especialmente as mulheres. Estou trazendo esses dois pontos porque, se as pessoas vão trabalhar mais em home office, elas necessitam de apoio. O Google, por exemplo, deu 1.000 dólares a cada funcionário para montar um escritório em casa.
→ PRISCILA: O coronavírus nos fez repensar várias questões, mas uma coisa que ficou marcada é que nossa desigualdade aumentou durante a pandemia. E uma forma de diminuir esse gap é por meio da educação. Com a pandemia, surgiram novas oportunidades, incluindo trabalhos que não existiam antes. E há muitas pessoas que gostariam de se recapacitar e se preparar para esses novos trabalhos. Hoje existem várias plataformas de ensino online e gratuitas que ajudam as pessoas a se qualificar nesse novo ambiente, democratizando a educação. Na plataforma da Salesforce, temos várias histórias de sucesso de pessoas que nunca trabalharam com tecnologia e começaram a se capacitar, viram uma possibilidade e conseguiram um emprego ou montaram o próprio negócio, viraram empreendedores, desenvolvendo novas capacidades para atender às demandas de hoje.
→ DENISE: É interessante perceber hoje o movimento de que uma formação não mais prediz sua função, seu trabalho, o que acho sensacional. Você pode se formar engenheiro e trabalhar em RH, pode se formar em psicologia e trabalhar em inovação. Conheço uma pessoa que fez biologia na USP. Quando terminou o curso, ela disse: “Não é isso que quero”. Foi fazer uma pós-graduação e conseguiu uma bolsa em turismo na Suíça. Estava trabalhando na Inglaterra nessa área, quando veio a pandemia e acabou com o mercado de turismo no curto prazo. Ela está agora usando o tempo livre para estudar ciência de dados. Está mudando de carreira pela terceira vez em três anos, mas com muita tranquilidade. As pessoas estão começando a perceber que há oportunidades em lugares onde antes não enxergavam. O emprego hoje não é mais local, virou global. Uma pessoa no Acre pode trabalhar remotamente para uma empresa de São Paulo. Por um lado, o mercado de trabalho está cada vez mais competitivo. Por outro, está se abrindo um novo cenário para quem antes tinha poucas possibilidades de trabalho.
EXAME CEO: Alguns estudos mostram que a maioria dos jovens vai trabalhar no futuro com profissões que nem sequer existem ainda. Como preparar as pessoas para trabalhos que ainda vão ser inventados?
→ DENISE: A primeira coisa é que as pessoas precisam aprender a aprender. Essa é a competência mais importante de todas.
→ PRISCILA: E aprender a desaprender.
→ DENISE: Sim, para aprender, você precisa dar um espaço ao desaprender. Estão embutidas nessa ideia a resiliência, um pouco mais de flexibilidade, maior abertura à inovação. Hoje o mercado usa o termo soft skills, de competências sociais, mas não importa o nome. Resiliência e flexibilidade são duas coisas fundamentais.
→ PRISCILA: Eu acrescentaria, com base em uma pesquisa que fizemos, a criatividade e a adaptabilidade. Novos trabalhos estão surgindo, e para um grande número de pessoas o foco hoje é em análise de dados, ciência de dados, codificação, porque tudo está sendo criado em torno da tecnologia. Não há como fugir da revolução tecnológica. Para esses cargos que ainda não existem, o próprio RH deve acompanhar as tendências e adaptar seus programas. Na Salesforce, acabamos de criar uma área, com um executivo c-level, de work from anywhere, o trabalho de qualquer lugar, porque há muita coisa que precisará ser adaptada. Ter um funcionário que trabalhe remotamente fora do Brasil ou um funcionário que trabalhe no Brasil para uma empresa do exterior tem implicações trabalhistas e tributárias. Há muita coisa que vai mudar, e as empresas precisam se preparar para isso.
→ IZA: Acho muito bacana quando a gente fala em soft skills, mas Seth Godin, que é um cara de marketing que acho incrível, pede por favor que a gente pare de chamar as soft skills dessa maneira, porque elas não têm nada de soft. Godin prefere falar em real skills, as verdadeiras habilidades que precisamos ter no trabalho, na escola, em casa ou em qualquer lugar. Sobre criatividade, lembro-me de que, quando era pequena, sempre trabalhava com cores e dizia a meu pai, que trabalhava com estatística: “Coitado, seu trabalho não é criativo”. Aí ele me respondia: “Minha filha, não é porque é tudo colorido que é criativo”. Temos ainda esse problema de ficar presos a esse conceito de criatividade, mas precisamos misturar os departamentos para potencializar as sinergias e as convergências. Outra coisa valiosa para o futuro do trabalho é a ruptura da ideia que os americanos chamam de snowflake complex, ou “complexo de floco de neve”, para descrever uma geração que cresceu com a ideia de que “eu sou muito único, maravilhoso e, para obter sucesso, preciso ser o CEO”. Só que não vamos a lugar nenhum se tivermos só CEOs. O CEO precisa de uma equipe para ser CEO. As pessoas precisam encontrar seu lugar no coletivo e entender que todas as peças de um quebra-cabeça são importantes. O objetivo não é sempre virar o grande chefe, ou o dono do negócio, ou o empreendedor. Essa noção combina mais com um sistema patriarcal que, aos poucos, está ficando para trás. E um último ponto sobre novas habilidades. Há 20 anos, meu pai dizia: “Por que você está estudando italiano? Você tem de aprender chinês”. Hoje acho que todo mundo tem de aprender é a fazer programação.
→ PRISCILA: Eu concordo.
→ IZA: Quando falamos em transformação digital, a língua do futuro será a da programação. Um dos empregos mais loucos que estão em alta hoje, e ouvi isso de alguém da IBM, é que precisamos educar as inteligências artificiais, precisamos formá-las ética e moralmente. Toda máquina precisa ser abastecida, da mesma forma que abastecemos uma criança contando histórias desde que ela é pequena. Por isso, é importante ter noções básicas de programação.
→ DENISE: Acho que há duas coisas que para mim são interessantes de relembrar. A primeira é o papel da liderança, que precisa mudar em seu aspecto básico. Não dá para eu ser o líder que era lá no presencial e não dá para eu ser o líder que sou hoje no online total, porque no sistema híbrido, que é para onde vamos caminhar depois da pandemia, há uma série de questões que esse líder vai precisar olhar. A primeira é esse desejo de ter controle sobre tudo, sobre o processo, sobre as pessoas, sobre o horário. Isso tem de mudar. As pessoas vão trabalhar por projeto, por resultado. Então precisamos mexer na cabeça da liderança. Um segundo ponto importante tem a ver com a remuneração nas organizações. Temos ainda uma estrutura de natureza fabril, onde quem opera ganha pouco e quem pensa ganha muito. Mas na área de programação, por exemplo, todo mundo pensa e opera. Não dá para você pensar num processo e mandar o outro fazer. Acho que vamos caminhar nessa direção.
EXAME CEO: Nesse novo cenário, em que posso trabalhar de qualquer lugar e uma empresa pode também contratar funcionários de qualquer lugar, o que muda na relação entre empresa e empregado?
→ PRISCILA: Uma coisa que já ajudou bastante foi uma mudança que tivemos na CLT, há três ou quatro anos. Hoje podemos contratar pessoas 100% no remoto, sem controle de jornada. Falta a regulamentação das que estão trabalhando no remoto e têm controle de jornada. Como as empresas vão fazer esse controle, se é que vão? A pandemia mudou a forma como a pessoa trabalha. Ela pode ter um filho que fica pulando no colo, então precisa fazer uma pausa e trabalhar de madrugada ou na hora que for possível. Haverá muitas discussões sobre como adaptar a jornada de trabalho a essa nova realidade.
→ DENISE: Já mencionei que as pessoas vão trabalhar cada vez mais por projeto, por job, por atividade. Em alguns países, isso é supertranquilo. Você combina com a pessoa, contrata, paga, e está tudo certo em termos de legislação, mas no Brasil ainda é um deus nos acuda. Aqui as empresas tiveram de criar estruturas paralelas de MEIs e PJs, que vão entrando e ficando, misturando tudo. Será necessária uma grande revolução nessa questão, ainda mais porque os jovens que estão chegando hoje ao mercado de trabalho convivem com outras três gerações. Nós nunca passamos por isso. Antes, as empresas até meio que exigiam que funcionários com 60 anos saíssem, mas agora existe a tendência de trazer pessoas aposentadas de volta, para trabalhar com jovens que estão chegando. Essas estruturas que estão valorizando mais a diversidade vão exigir uma mudança na forma como as empresas fazem a gestão de pessoas.
→ IZA: A geração que está vindo é menos paciente e mais fluida do que os millennials. As empresas vão precisar cativar a atenção desses jovens, que falam: “Isso é chato, vou fazer outra coisa”. As empresas não conseguem reter da mesma forma esse público que pode ficar em home office, que tem a possibilidade de mudar de emprego, que é mais maleável. Elas precisam cativar essa geração da mesma forma que tentam cativar o consumidor. Dar benefícios, criar oportunidades, permitir maior flexibilidade e mobilidade dos vários talentos dentro da empresa.