Revista Exame

Ian Bremmer alerta para o grande choque político da nossa era

Em um novo livro, o presidente da maior consultoria de risco político do mundo faz um alerta sobre o embate entre perdedores e vencedores da globalização

Protesto contra imigrantes na França: a reação daqueles que temem sair perdendo (Matthieu Alexandre/AFP)

Protesto contra imigrantes na França: a reação daqueles que temem sair perdendo (Matthieu Alexandre/AFP)

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Da Redação

Publicado em 26 de abril de 2018 às 05h00.

Última atualização em 26 de abril de 2018 às 05h00.

Desde a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, o sucesso de líderes populistas mundo afora tem sido debatido exaustivamente por cientistas políticos e economistas. A maioria tende a seguir o seguinte raciocínio: a maior integração mundial produziu vencedores e perdedores. Nos países emergentes, milhões de pessoas saíram da pobreza. Já nos países ricos, os trabalhadores perderam o emprego — seja porque a produção migrou, seja porque a tecnologia tornou o trabalho obsoleto. A reação dos excluídos da globalização é apoiar líderes que atacam o comércio mundial, os imigrantes e as elites.

Para Ian Bremmer, cientista político e presidente da Eurasia, principal consultoria de risco geopolítico do mundo, esse embate entre vencedores e perdedores é mais do que uma consequência da globalização. É o grande choque político de nossa era. Em seu novo livro, Us vs. Them: The Failure of Globalism (“Nós contra eles: o fracasso do globalismo”, numa tradução livre), publicado no fim de abril, Bremmer argumenta que o discurso populista do “nós contra eles” tende a chegar também aos emergentes. No Brasil, segundo ele, isso já está presente na insatisfação com os serviços públicos, que leva a uma reação contra políticos vistos como incompetentes e corruptos. A seguir, EXAME publica um trecho do livro com exclusividade.

“ ‘É hora de uma revolução local’, disse a candidata à multidão de apoiadores. ‘Os países não são mais nações, são mercados. As fronteiras foram apagadas… Qualquer um pode se mudar para o nosso país, e isso reduz nossos salários e programas sociais. Isso dilui nossa identidade cultural.’ As quatro frases de Marine Le Pen captam todos os elementos importantes da crescente ansiedade que se espalha pelo mundo ocidental. As fronteiras estão abertas, e os estrangeiros estão chegando. Eles vão roubar seu emprego. Eles vão lhe custar sua pensão, levando à falência das contas públicas. Eles vão poluir a cultura. Alguns deles são assassinos. Le Pen falhou em sua tentativa de se tornar presidente da França em 2017, mas sua mensagem continua viva na política do ‘nós contra eles’ do século 21.

Fábrica da Volkswagen: a automação vai reduzir os empregos | Sten Schunke/Getty Images

Mas essa não é uma história sobre Marine Le Pen, ou Donald Trump, ou qualquer outra força populista que surgiu na Europa e nos Estados Unidos. Vire a câmera em direção à multidão furiosa — essa é a história real. Não é o mensageiro que impulsiona o movimento. São os medos, muitas vezes, se não sempre, justificados, de pessoas comuns — o temor de perder o emprego, o temor das ondas de imigrantes, do desaparecimento das identidades nacionais e da violência incompreensível associada ao terrorismo. É a crescente dúvida de que o governo seja capaz de proteger os cidadãos, de proporcionar oportunidades para uma vida melhor e de garantir que as pessoas tenham o controle sobre seu destino.

Em dezembro de 2015, apenas 6% das pessoas nos Estados Unidos, 4% na Alemanha, 4% na Grã-Bretanha e 3% na França acreditavam que ‘o mundo estava melhorando’. A maioria pessimista suspeita que as pessoas com poder, dinheiro e influência se importem mais com seu mundo cosmopolita do que com os demais cidadãos. Muitas pessoas acreditam que a globalização funciona para poucos favorecidos, mas não para eles.

Eles têm um ponto.

A globalização — o fluxo de ideias, informação, pessoas, dinheiro, bens e serviços entre as fronteiras nacionais — resultou num mundo interconectado, onde os líderes nacionais têm uma capacidade cada vez mais limitada de proteger a vida e os meios de subsistência dos cidadãos. Na era digital, as fronteiras não são mais o que as pessoas pensavam que fossem. De certa forma, elas mal existem.

O globalismo — a crença de que a interdependência que criou a globalização é uma coisa boa — é de fato uma ideologia da elite. Os líderes políticos dos países ricos do Ocidente têm sido os maiores defensores do globalismo, construindo um sistema que propagou ideias, informação, pessoas, dinheiro, bens e serviços numa velocidade e numa escala sem precedentes na história da humanidade.

Claro, mais de 1 bilhão de pessoas saíram da pobreza nas últimas décadas. Mas junto de novas oportunidades surgem também sérias vulnerabilidades. Para aqueles que perderam seu senso de segurança e seu padrão de vida, a recusa da elite global em reconhecer as desvantagens confirma as suspeitas de que as elites de Nova York e Paris têm mais em comum com as elites de Roma e São Francisco do que com seus compatriotas nas cidades  do interior, como Tulsa, Turim, Tuscaloosa e Toulon. ‘Os globalistas destruíram a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia’, disse o ex-estrategista da Casa Branca Steve Bannon alguns dias após a vitória de Donald Trump nas eleições de 2016

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Nos Estados Unidos, os empregos que elevaram gerações de pessoas à classe média — e as mantiveram lá por toda a vida — estão desaparecendo. O crime e o vício em drogas estão subindo. Enquanto 87% dos chineses e 74% dos indianos disseram a pesquisadores em 2017 que seu país estava indo ‘na direção certa’, apenas 43% dos americanos afirmaram o mesmo.

Um desequilíbrio no horizonte

Na Europa, a Comissão Europeia e os burocratas do bloco vêm legislando para os 28 países-membros sem entender suas diferentes necessidades. Nos últimos anos, eles não conseguiram solucionar a crise da dívida que forçou muitos europeus a aceitar salários mais baixos, preços mais altos, uma idade mais alta para a aposentadoria, pensões menos generosas e um futuro incerto, ao mesmo tempo que diziam que países endividados deviam ser socorridos. Na crise de imigração, os líderes europeus globalistas insistiram que todos os países da União Europeia deveriam aceitar refugiados muçulmanos em um número definido por Bruxelas. O resultado foi uma onda de protestos e um aumento do nacionalismo (eu defino ‘nacionalismo’ como uma forma de política de nós contra eles, em que as pessoas de uma nação são colocadas contra as de outra nacionalidade).

Se a onda de nacionalismo populista fosse o único sinal do fracasso do globalismo, isso já seria ruim o suficiente. Mas há uma crise maior chegando. Muitas das tempestades que criam turbulências nos Estados Unidos e na Europa — como a mudança tecnológica no trabalho e uma maior conscientização sobre a desigualdade de renda — estão agora atravessando as fronteiras e chegando a países em desenvolvimento, onde governos não estão prontos para enfrentá-las. Eles são vulneráveis, porque as instituições não são robustas e as redes de proteção social não são tão fortes quanto nos Estados Unidos e na União Europeia. A desigualdade entre ricos e pobres é ainda maior, e será muito mais difícil administrar uma realidade em que as novas tecnologias acabarão com um grande número de empregos. Em resumo, assim como a crise financeira teve um efeito cascata nos mercados financeiros e nas economias em todo o mundo, as fontes de raiva que convulsionam a Europa e os Estados Unidos enviarão ondas de choque a dezenas de países. Alguns vão absorver esses choques. Alguns deles não. À medida que as pessoas mais pobres nos países em desenvolvimento se tornarem mais conscientes do que estão perdendo — qualidade da moradia, educação, empregos, assistência médica e segurança —, muitos vão se revoltar.

Ian Bremmer, da Eurasia: “É tarde demais para aplacar a ira de pessoas cujas necessidades foram negligenciadas durante anos” | Kholood Eid/Getty Images

Não é a ascensão da China, uma nova Guerra Fria, o futuro da Europa ou o risco de um conflito cibernético global que definirão a sociedade. São as ações dos perdedores para evitar serem ‘ferrados’ e os esforços dos vencedores para não perderem o poder. E haverá vencedores e perdedores. É tarde demais para aplacar a ira de pessoas cujas necessidades foram negligenciadas durante anos, tarde demais para impedir os avanços tecnológicos. O que falta ver é quem vai ganhar — e quem será o bode expiatório. Em alguns países, a onda do ‘nós contra eles’ se manifestará  num embate entre os cidadãos versus o governo. Em outros países, a divisão será entre ricos e pobres. Em alguns casos, os insatisfeitos culparão imigrantes por seus problemas. E em outros casos a maioria étnica se voltará contra as minorias.

O ‘nós contra eles’ é uma mensagem adotada tanto pela esquerda quanto pela direita. Os antiglobalistas da esquerda usam ‘eles’ para se referir à elite governante, às ‘grandes corporações’ e aos banqueiros que permitem que as elites financeiras explorem o trabalhador ou o poupador. Essas são as mensagens que ouvimos do senador americano Bernie Sanders e do primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras. Os antiglobalistas de direita usam ‘eles’ para descrever governos que enganam os cidadãos oferecendo tratamento preferencial a minorias, imigrantes ou outro grupo.

Como os governos vão reagir? Os mais fracos vão cair, produzindo mais Estados falidos, como a Síria e a Somália. Aqueles que ainda esperam construir sociedades abertas se adaptarão para sobreviver, tentando criar novas maneiras de atender às necessidades dos cidadãos num mundo em mudança. E muitos governos fortes construirão muros — tanto reais quanto virtuais — que separam as pessoas umas das outras e o governo dos cidadãos.

Não podemos mais evitar essas escolhas, do mesmo modo que não se pode evitar as mudanças climáticas, e agora é hora de se preparar. Essa é a próxima crise. Esse é o conflito que ameaça desestruturar muitas sociedades por dentro.” 


Trecho editado e adaptado do livro Us vs. Them, de Ian Bremmer

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