Revista Exame

O fim da fábrica de horas como um novo modelo de negócio

Os escritórios de advocacia estão deixando para trás um de seus pilares, a cobrança por hora trabalhada, para adotar modelos mais flexíveis

Fernando Serec, do TozziniFreire: startups já respondem por 5% do faturamento | Germano Lüders /

Fernando Serec, do TozziniFreire: startups já respondem por 5% do faturamento | Germano Lüders /

NB

Naiara Bertão

Publicado em 27 de setembro de 2018 às 05h35.

Última atualização em 27 de setembro de 2018 às 10h45.

Nas crises há os que choram e os que vendem lenços. E tanto os que choram quanto os que vendem lenços dependem das bancas de advogados. Mas o senso comum de que esses profissionais ganham na alegria e na tristeza pode estar ficando para trás. Com a crise, os advogados perderam contratos em concessões, fusões e aberturas de capital e precisaram se concentrar em serviços em que os contratantes tendem a ser mais ciosos com o custo, como recuperação judicial, questões tributárias e compliance. Foi a deixa para acelerar uma mudança que vinha sendo estudada: a atualização do modelo de cobrança, antes pautado no valor da hora de um advogado ou de uma equipe dedicada ao cliente. Para evitar perder contratos, e para conquistar clientes como as startups, as grandes bancas adotaram modelos de negócios mais flexíveis. É o fim da “fábrica de horas”.

O Brasil é um terreno fértil para advogados. O excesso de burocracia e a complexidade jurídica fazem do país um dos que mais gastam com esses serviços no mundo: 1,4% do produto interno bruto ao ano, segundo o Conselho Nacional de Justiça, ante 0,4% na Alemanha. São mais de 5 milhões de formados em direito e 1,2 milhão de credenciados na Ordem dos Advogados do Brasil. É ainda um dos maiores mercados para a advocacia privada: o mercado jurídico fatura cerca de 50 bilhões de reais ao ano. O dinheiro vai continuar por aí, mas a estratégia para conquistá-lo é que está em transformação para os mais de 100.000 escritórios do gênero no país. “Entendemos que a advocacia moderna é mais dinâmica, simples e objetiva e as peças precisam ser mais curtas e objetivas, até para aliviar o Judiciário. Isso vai contra o mode-lo de tabela de horas, que prioriza documentos longos. Eles mais atrapalham do que ajudam”, diz Fabio Brun Goldschmidt, sócio do escritório gaúcho Andrade Maia, que não adota a tradicional hora-advogado.

CARDÁPIO

Parte dos clientes, em especial as multinacionais, ainda prefere o modelo antigo, comum também em outros países, mas as bancas tradicionais passaram a ter um menu de ofertas. No paulistano Pinheiro Neto, com 76 anos de atuação, metade dos trabalhos é cobrada por hora — ante 85% de 15 anos atrás. “Os clientes têm buscado mais previsibilidade”, diz Alexandre Bertoldi, sócio do Pinheiro Neto. Entre os modelos alternativos, um dos mais procurados é o que baseia o cálculo do serviço por hora, mas limita o orçamento a um teto. Se o trabalho ultrapassar o número de horas ou exigir advogados seniores, a conta extra fica com o escritório. Outra demanda é a cobrança de um valor fixo, acrescido de um variável sobre o resultado econômico. É comum em áreas contenciosas (civil, trabalhista e tributária). Em ações civis de massa, como contra empresas de telefonia ou operadoras de saúde, o escritório leva um percentual sobre as ações que ganhou ou de acordos fechados com clientes. No caso de tributos, a banca fica com uma fatia de quanto o cliente não precisará pagar. O paulista L.O. Baptista Advogados, fundado há 80 anos, oferece um plano pré-pago em que o cliente pode usar diversos serviços quando quiser, de demandas fiscais a consultoria para fusões e aquisições. O cliente que concentra um volume maior de trabalho no escritório ganha um desconto de até 15%.

Fábio Brun Goldshmidt, do Andrade Maia: foco na objetividade | Marcelo Curia

Enquanto as bancas tradicionais, como Pinheiro Neto, Cescon Barrieu, Demarest e Siqueira Castro, tentam se adaptar, os escritórios mais novos têm a vantagem de já nascer flexíveis. No paulista Perlman, Vidigal, Godoy Advogados (PVG), criado há oito anos, cada um dos seis sócios pode decidir quanto e como cobrar, uma decisão baseada na confiança e no relacionamento com o cliente. “Nós tentamos ouvir e compreender a situação antes de tudo, e somos rápidos para fechar o negócio”, diz Marcelo Perlman, sócio do PVG. No gaúcho Andrade Maia, as dúvidas dos clientes são respondidas por meio de aplicativos de mensagens no celular e até a forma de remunerar a equipe é diferente. Enquanto é praxe no mercado que os resultados sejam medidos por área e por sócio, no Andrade Maia não há essa distinção — a fatia do bolo é dividida igualmente entre os sócios. Os demais advogados que não integram a sociedade são remunerados com uma base fixa, a depender da senioridade, reduzindo as disputas internas.

Em uma economia em transformação, há ainda o desafio de atrair novos públicos, como as empresas de tecnologia com grande potencial de crescimento mas com pouco dinheiro para gastar de início. Percebendo que existia aí um novo mercado, o escritório paulista TozziniFreire, fundado em 1976, contratou em 2014 a aceleradora Ace para entrar nesse mundo novo. Os advogados começaram a dar palestras, organizar e participar de eventos e até fixaram uma equipe de oito pessoas na incubadora InovaBra Habitat, centro de inovação administrado pelo Bradesco. “Se acreditamos no potencial de crescimento de uma empresa, até postergamos o honorário”, diz Fernando Serec, sócio e presidente do TozziniFreire. Na maioria dos casos, é cobrado um valor inicial menor e o restante é pago quando a startup recebe um aporte de investimento, abre o capital na bolsa de valores ou é vendida para uma empresa maior. A área hoje é responsável por 5% da receita do TozziniFreire e é uma das apostas para manter a taxa de crescimento de 15% ao ano. Dentro do Braga Nascimento e Zilio, escritório paulista de 28 anos, nasceu a BNZ for Startups, divisão dedicada a empreendedores, aceleradoras e investidores. Até uma moeda própria foi criada, a BNZ. O cliente compra um pacote de -BNZs e usa conforme a demanda (não tem prazo de validade). Alguns serviços básicos chegam a custar um décimo do que custam em escritórios que usam modelos tradicionais. “Diminuímos a margem para ganhar em escala”, diz Arthur Braga Nascimento, filho de um dos fundadores do escritório e idealizador do projeto.

O modelo de cobrança é a primeira fronteira de mudanças em um setor que preza o conservadorismo. Alguns escritórios começaram a usar tecnologias como inteligência artificial e big data para funções repetitivas, como geração de relatórios, anexação de documentos e análise de dados de tribunais. É o que faz o JBM Advogados, escritório de Bauru, no interior de São Paulo, especializado em processos de massa envolvendo direito do consumidor. Para automatizar processos, o JBM desenvolveu os próprios softwares. O que até 2013 era só um departamento de inovação ganhou corpo e CNPJ próprio: nasceu a Finch Soluções, startup que tem 400 funcionários e vende serviços para departamentos jurídicos de empresas e até de escritórios concorrentes. Há outras tantas opções de software e robôs no mercado. Desde o ano passado, os advogados do Urbano Vitalino, escritório com 80 anos de atuação e 600 funcionários, já interagem com a Carol, apelido dado ao robô que ajuda a cadastrar e a ler processos nos sistemas internos e cuja assertividade é de 95% (ante 75% de acerto humano). A tecnologia é do Watson, da IBM.

Um estudo da consultoria Deloitte mostra que a transformação digital deve aumentar a produtividade do trabalho jurídico em 22% até 2020 e reduzir o número de pessoas necessárias para o serviço. Só no Reino Unido 114 000 empregos no setor devem ser automatizados. A procura por qualificação em tecnologia aplicada ao direito cresceu tanto no Brasil que acaba de ser inaugurado em São Paulo o maior centro de inovação da América -Latina dedicado ao setor, o Future Law Innovation Center, uma parceria entre a es-cola de inovação para a área jurídica -Future Law e a empresa de mídia e tecnologia Thomson Reuters. “As questões mais comuns vão ser resolvidas rapidamente por robôs, e o advogado do futuro passará a usar a tecnologia para ajudá-lo a construir a melhor estratégia para problemas cada vez mais complexos”, diz Bruno Feigelson, presidente da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs, que reúne as startups voltadas para a área jurídica. O advogado pode até não virar um robô nos próximos anos, mas tem muito o que aprender com ele. n

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