Manifestação na Grécia: saudades da farra pós-euro (Milos Bicanski/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 14 de novembro de 2011 às 10h06.
São Paulo - Por mais de 1 000 anos, os monges do mosteiro de Vatopedi viveram imersos na mais absoluta contemplação. Construído em 972 por religiosos às margens do Egeu, na Grécia, o mosteiro abriga hoje cerca de 100 monges que acordam às 5 da manhã para tocar o sino da igreja, depois cuidam dos jardins, do almoço, do jantar e rezam entre uma coisa e outra.
Nenhuma mulher — ou animal do sexo feminino, exceto gatas (não pergunte por quê) — pode entrar. Até aqui, quase tudo normal. Mas, em 2008, a coisa se transformou: os barbudos monges ortodoxos de Vatopedi partiram para a heterodoxia financeira e acabaram protagonistas de um escândalo.
No centro da controvérsia, estava um lago de propriedade do mosteiro. Numa transação bizarra, os chefes dos Vatopedi trocaram seu lago por uma série de ativos imobiliários do governo federal. O pacote incluía um ginásio usado na Olimpíada de Atenas — e valia, em seu conjunto, cerca de 1 bilhão de euros. ]
Ninguém tem ideia dos argumentos usados pelos religiosos para convencer a cúpula do governo a trocar essa fortuna por água. Há três anos, o esquema dos Vatopedi foi revelado e o escândalo que se seguiu feriu de morte o governo. No lugar entraram os socialistas, que, ao fazer as contas, constataram: o acordo com os monges era o menor dos problemas financeiros do país. A Grécia estava quebrada.
Tentação
A crise grega já dura dois anos e, como se sabe, colocou a Europa numa encruzilhada — até hoje, os líderes europeus se dedicam, basicamente, a apagar incêndios que surgem a cada má notícia, sem resolver o problema causado pela pilha de dívida acumulada pelos países da periferia do continente. Como a Europa se meteu nessa?
O americano Michael Lewis, talvez o mais célebre jornalista financeiro da atualidade, decidiu investigar. E o resultado é o recém-lançado Boomerang — Travels in the New Third World (“Bumerangue — viagens pelo novo terceiro mundo”, numa tradução livre). A ideia do livro surgiu enquanto fazia entrevistas para seu projeto anterior, o best-seller A Jogada do Século.
Um de seus entrevistados, o investidor Kyle Bass — que ganhou fortunas apostando na quebra do mercado imobiliário americano — estava começando a colocar suas fichas na quebradeira de países. Investidores como Bass, escreve Michael Lewis, “não estavam mais falando do colapso de alguns títulos de dívida.
Mas do colapso de países inteiros”. Mais de dois anos atrás, Bass começou a acumular papéis que servem como um seguro contra um calote grego. Quanto mais barato esse papel, mais seguro o país aos olhos dos investidores. Na época, para segurar 1 milhão de dólares em títulos gregos, bastava pagar 1 100 dólares. Hoje, o mesmo título custa 300 000 dólares.
De 2002 em diante, cada um dos chamados países desenvolvidos — assim como seus bancos, empresas e cidadãos — se viu diante da mesma situação: havia no mundo inteiro uma enxurrada de crédito em escala jamais vista. O que fazer com essa dinheirama? “Não era só o dinheiro, era a tentação.
Sociedades inteiras puderam mostrar aspectos de seu caráter que, numa situação normal, não teriam dinheiro para mostrar. Foi dito a esses países: ‘As luzes se apagaram, você pode fazer o que quiser e ninguém vai ficar sabendo’ ”, escreve Lewis. Em Boomerang, ele narra suas visitas aos países que fizeram as escolhas erradas.
Sua primeira parada é a Islândia, um lugar com 300 000 habitantes que se transformou de colônia de pescadores numa espécie de fundo de investimento gigante. Lewis conta a história do operador de câmbio que ensinou pescadores a especular com moedas. Os bancos incharam.
Havia tanta dívida em moeda estrangeira que, quando o país quebrou e a coroa islandesa derreteu, os donos de Range Rovers colocavam fogo nos carros para levantar o dinheiro do seguro e, assim, conseguir pagar parte das dívidas.
Já a Irlanda entrou num frenesi construtor sem pé na realidade — o país saiu de séculos de pasmaceira para a riqueza extrema “sem passar por um período de normalidade” entre uma e outra. Seu boom imobiliário acabou em bancos quebrados e depressão econômica.
Mas é na Grécia que a loucura financeira chega a seu apogeu. Nos anos 80 e 90, os juros pagos pelos gregos eram 10 pontos percentuais maiores que os pagos pelos alemães. Não havia crédito para o consumo ou o financiamento imobiliário. Adotar o euro, escreve Lewis, foi a grande chance encontrada pelos gregos para mudar de vida.
Bastava para isso se enquadrar em algumas regras. A principal delas, baixar o déficit público para 3% do produto interno bruto. Foi fácil. Bastou fazer uma conta de chegada com o orçamento e manipular os índices de inflação — tirando, por exemplo, o tomate da conta quando seus preços subiam. Em 2001, a Grécia entrou no clube do euro.
E começou a farra. Lewis descreve um país tão corrupto que o leitor brasileiro chega a ter certo orgulho de Brasília — a milagrosa transação entre os monges e o governo é apenas um dos exemplos citados por ele. Ninguém paga impostos. Com juros em níveis germânicos, o governo grego se transformou num restaurante daqueles em que se pode comer à vontade.
Os salários dobraram. A idade mínima para a aposentadoria para aqueles que têm profissões “extenuantes” é 55 anos para homens e 50 para mulheres. O problema é que há mais de 600 profissões consideradas “extenuantes” — entre elas cabeleireiro, radialista, garçom e músico.
Quando o atual governo assumiu, em 2009, constatou que o buraco nas contas públicas não era de 3% do PIB, mas de 15%. E a dívida do país, de 1,2 trilhão de dólares.
Boomerang não poderia ter sido lançado em momento mais apropriado. O mercado financeiro mundial segue variando a cada notícia que vem da Europa. Qual é a solução para a confusão em que o continente se enfiou?
O calote grego, escreve Lewis, derrubaria bancos e tornaria ainda mais complicada a situação de países como Irlanda, Portugal, Espanha e mesmo gigantes como Itália e França. Não é à toa, portanto, que a turnê europeia de Boomerang acaba na Alemanha.
Ninguém duvida de que a Alemanha foi uma grande beneficiada pela moeda única — sua máquina de exportações inundou os países europeus de produtos alemães —, além de ter ajudado a financiar as loucuras dos outros com seus bancos. Mas como convencer o eleitor alemão de que é do seu próprio interesse salvar os outros para manter a união monetária?
Diz Lewis: “A única solução economicamente plausível é a Alemanha (...) salvar todo mundo. Mas o que é economicamente viável é politicamente inaceitável. Os alemães, antes de aceitar o euro, ouviram de seus líderes que o país nunca salvaria países em crise. Por isso a solução é adiada indefinidamente”.
Em algum momento, escreve, os alemães terão de encarar a realidade e resgatar os irlandeses, os portugueses e, claro, os gregos — com seus monges e tudo.