Revista Exame

A L'Oréal e o amigo da minha mãe

A luta da filha da dona da L’Oréal para provar que a mãe estava louca ao dar 1 bilhão de euros em presentes a um fotógrafo

Liliane Bettencourt, a mulher mais rica da França e única herdeira do fundador da L'Oreal: sanidade questionada após dar 1bilhão de euros em presentes a um fotógrafo (Francois Durand/Getty Images)

Liliane Bettencourt, a mulher mais rica da França e única herdeira do fundador da L'Oreal: sanidade questionada após dar 1bilhão de euros em presentes a um fotógrafo (Francois Durand/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 25 de agosto de 2011 às 14h35.

Uma senhora de 87 anos, cabelos cuidadosamente fixados com laquê, forte ainda o suficiente para manter um regime de exercícios físicos dignos de gente jovem, esguia e lépida em seu quase 1,80 metro, está mesmerizando os franceses. Discreta até não poder mais a vida inteira, recolhida em sua mansão formidable no subúrbio parisiense de Neuilly, Liliane Bettencourt tem estado no meio dos holofotes em regime de 24 por 7.

Mulher mais rica da França e da Europa, e a número 3 no mundo, atrás apenas das herdeiras de Sam Walton, Liliane vem tentando provar que não perdeu o juízo. Com uma fortuna calculada em 20 bilhões de dólares, única herdeira da maior empresa de cosméticos do mundo, a L’Oréal, Liliane enfrenta, nos tribunais, a filha Françoise. Como ela mesma, Françoise, de 57 anos, autora de um estudo em três tomos sobre a Bíblia, é também filha única.

Françoise decidiu tentar interditar a mãe depois que lhe chegou a informação, passada por uma mulher que cuidava do patrimônio de Liliane, de que ela estava fazendo transferências maciças para um amigo novo, um homem 24 anos mais novo, o fotógrafo de celebridades François-Marie Banier.

Entre dinheiro, obras de artistas como Picasso e outros bens que podem incluir uma ilha em Seychelles, Banier recebeu da bilionária uma cifra que gira em torno de 1 bilhão de euros, cerca de 3 bilhões de reais. O julgamento apenas começou. Se Banier for considerado culpado de “explorar a fragilidade” de Liliane, poderá receber uma sentença de prisão de três anos.

Não se trata de um caso outonal de sexo para Liliane, viúva. Banier é abertamente gay. Fotógrafo reconhecido e admirado em Paris, seu portfólio é o de um profissional do primeiro time. A Paris boêmia dos últimos 40 anos foi retratada por poucos como foi pelo protegido da herdeira da L’Oréal. Sua fama cruza o Atlântico: ele já fez capas para a ultraexigente Vanity Fair americana. A mais recente teve como protagonista o ator Johnny Depp. Banier foi casado com um ator francês. Agora vive com um sobrinho do antigo parceiro, 30 anos mais novo que ele.

Os caminhos de Liliane e Banier se cruzaram quando ele foi fotografá-la. Foi o marco inicial de uma relação extravagante além de todos os cálculos. Se ele não lhe dava sexo, como entender tamanha prodigalidade da bilionária? Uma das hipóteses mais cogitadas é que Banier introduziu Liliane no colorido mundo boêmio parisiense, uma novidade tentadora e fascinante para quem, como ela, vivera décadas na companhia maçante de políticos e homens de negócios.

Seu marido, André Bettencourt, morto quase nonagenário há três anos, era político. Bettencourt era um velho financiador do UMP, o partido do presidente Nicolas Sarkozy.

Num dos desdobramentos sensacionais, o caso acabou resvalando em Sarkozy e seu UMP, de centro-direita. Um mordomo indiscreto — ninguém sabe direito ainda com quais intenções — gravou dezenas de horas de conversas na mansão de Liliane. As f tas, que estão nas mãos da polícia, apimentaram ainda mais o caso.

Há suspeitas de evasão fiscal e de doações ilegais. Um dos ministros mais próximos de Sarkozy, Éric Woerth, alvo dos caricaturistas pela postura torta que lhe dá sombra de 5 horas e pela exuberante calvície, está no centro das turbulências. A mulher de Woerth fazia parte da equipe que cuida do dinheiro da bilionária. Dificilmente as movimentações da fortuna chanceladas pela mulher do ministro seriam investigadas pelo governo, num caso de conflito de interesses que faz o que se tem visto no Brasil parecer jogo de buraco.


A imprensa francesa gritou. A mulher de Woerth se demitiu do cargo. O próprio Woerth, que era tesoureiro do UMP, é agora exclusivamente ministro do Trabalho. Segundo Sarkozy, a mexida não se deve à vulnerabilidade da posição de Woerth diante das revelações. O motivo, afirma Sarkozy, é a importância de um combatido projeto do governo que mexe no sacrossanto sistema de aposentadoria da França, o paraíso do joie de vivre em que os trabalhadores têm cinco semanas pagas de férias, jornadas de 40 horas semanais e se aposentam em tempo de frequentar os cafés em demoradas conversas filosóficas por muitos anos.

Abismo

Sarkozy foi à televisão para associar as denúncias à tentativa de seu governo de elevar de 60 para 62 anos a idade da aposentadoria. As centrais sindicais francesas — entre as raras, em todo o mundo, que são capazes de literalmente parar um país — ameaçam, para os próximos dias, greves cujo objetivo é fazer o governo simplesmente desistir do projeto.

Sarkozy vai para a etapa final de seu mandato de cinco anos como uma sombra do que foi ao chegar. As promessas de uma França renovada sob os pilares de um capitalismo mais competitivo não deram em nada. Eleito numa plataforma liberal, inspirada na Inglaterra de Margaret Thatcher, Sarkozy deu meia volta e, na crise econômica global em que a desregulamentação financeira jogou um papel negativo relevante, decretou a morte do “capitalismo anglo-saxão”.

Para tocar a França de sempre, em que os trabalhadores enxergam nas empresas adversários cujos interesses estão em perpétuo conflito, os franceses aparentemente têm outras preferências. É difícil imaginar, hoje, Sarkozy reeleito. Sua popularidade, neste momento, está no abismo dos 26% — um terço, para que se tenha uma ideia, do número de Lula.

O casamento com Carla Bruni não contribuiu em nada para o prestígio de Sarkozy. Desde sempre, os franceses apreciam em seus governantes casamentos discretos e primeiras-damas quase invisíveis. Carla Bruni é o oposto disso: há pouco tempo, deixou escapar que numa visita à Inglaterra deixara a Rainha Elizabeth II esperando num encontro marcado no Palácio de Buckingham porque perdera a hora numa sessão de sexo matinal com seu marido.

O caso L’Oréal tem um interesse estratégico para a França que vai além dos caprichos de Liliane. Com seu faturamento de 20 bilhões de euros por ano e seu exército de cerca de 70 000 funcionários, a L’Oréal tem um papel de destaque na vida — e nas contas — dos franceses. Um terço da empresa pertence à suíça Nestlé. Circularam rumores, recentemente, de que a Nestlé tomaria o controle e transferiria a sede para a Suíça. Seria o enterro das pretensões de Sarkozy a um segundo mandato e um golpe cruel no orgulho — e no orçamento — dos franceses.

Numa longa e rara entrevista concedida à revista semanal Paris Match, Liliane Bettencourt afirmou que em sua vida a L’Oréal jamais deixará de ser francesa. Ela mostrou uma agilidade mental notável na conversa. Diante de uma pergunta sobre as doações de dinheiro, respondeu ao entrevistador: “Você faz ioga?” Ele disse que não. “Deveria.”

Liliane não se furtou de falar sobre o dinheiro que deu a Banier. “Dei porque ele me pediu”, justificou. Num jogo psicológico que vai exigir um bocado dos jurados, ela disse que queria ver até onde ele ia em sua tentativa de manipulá-la. Era como se a manipulada estivesse secretamente manipulando o manipulador, segundo a complexa explicação dada com candor charmoso pela bilionária. “É uma grande diversão ver até onde vão as pessoas manipuladoras”, segundo ela.

Na abertura de Ana Karenina, Tolstoi escreveu que as famílias infelizes são infelizes cada qual a sua maneira, ao contrário das famílias felizes, todas parecidas. A dinastia que ergueu e controla a L’Oréal cabe bem na tese de Tolstoi. Mãe e filha não se falam, embora possam se ver de suas casas em Neuilly, uma de frente para a outra.

O fundador da L’Oréal, Eugène Schueller, um químico e empreendedor de gênio, simpatizava com o nazismo e foi suspeito de colaboracionista durante a ocupação alemã da França, na Segunda Guerra. A neta Françoise, em contrapartida, casou com um judeu cujo pai morreu em Auschwitz. A revista americana Vanity Fair dedicou em sua última edição uma reportagem extensa ao caso. Logo no primeiro parágrafo, o autor nota que se um roteiro desses chegasse a um estúdio seria recusado pela inverossimilhança.

Liliane Bettencourt diz que agora tem de respirar. Ela se declara cansada tanto do amigo próximo quanto da filha afastada. Diz que os dois a absorvem muito. Para Banier, a festa, aparentemente, chegou ao fim. Se ele sair do processo com algum dinheiro do que recebeu sem ir para a cadeia, vai estar no lucro. Quanto a Françoise, a filha, a Justiça vai dizer quem está com a razão — se ela, ao dizer que a mãe perdeu o juízo, ou a mãe, ao rebater que a filha quer enviá-la “mais cedo para o caixão”.

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