Revista Exame

Disputa no Congresso mais influente desde a redemocratização definirá novo governo em 2023

Lula terá de negociar com o Congresso mais influente desde a redemocratização — e essa disputa por protagonismo definirá seu governo

Plenário do Senado Federal: Lula contará com um Senado menos alinhado a ele do que nos governos anteriores. Construção da base de apoio no Parlamento é essencial (Ana Volpe/Agência Senado)

Plenário do Senado Federal: Lula contará com um Senado menos alinhado a ele do que nos governos anteriores. Construção da base de apoio no Parlamento é essencial (Ana Volpe/Agência Senado)

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Alessandra Azevedo

Publicado em 17 de novembro de 2022 às 06h00.

O Congresso que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) encontrará em 2023 não será o mesmo de 20 anos atrás. Lula negociará com o Parlamento mais influente desde a redemocratização do país. Pode-se chamar essa nova relação entre Executivo e Legislativo de um novo normal.

Nos últimos anos, deputados e senadores aprovaram uma série de mudanças legais e constitucionais para garantir autonomia em relação ao Executivo. Aos poucos, decisões — especialmente orçamentárias — antes concentradas no Palácio do Planalto foram transferidas para os parlamentares. Assim, Lula terá a seu dispor uma “caixa de ferramentas orçamentárias” mais engessada do que a de 2003, afirma Rodrigo Faria, ex-coordenador do processo orçamentário na Secretaria do Orçamento Federal.

A principal mudança é que, nos mandatos anteriores, o Orçamento não era impositivo. Ou seja, o governo não era obrigado a repassar os valores que os parlamentares indicavam por meio de emendas para projetos nas bases eleitorais. Isso começou a mudar em 2015, durante o segundo mandato de Dilma. Na época, o Congresso fez uma das mudanças mais significativas nas regras orçamentárias: obrigou o governo a pagar as emendas parlamentares individuais, a parte dessas verbas que é dividida igualmente entre deputados e senadores. A aprovação da proposta foi articulada pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, em um momento de desgaste na relação entre o governo e o Parlamento. A regra foi ampliada no primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro (PL), também em dificuldades com os parlamentares. Em 2019, a obrigatoriedade na execução passou a valer para as emendas de bancada, verba que parlamentares escolhem, em grupo, para onde deve ir.

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Antes dessas mudanças, o pagamento das emendas dependia da boa vontade do Executivo. Como o governo não era obrigado a aplicar os valores indicados pelo Congresso, era comum que deputados e senadores precisassem peregrinar nos ministérios para negociar a liberação das verbas. Na prática, as emendas eram moeda de troca para aprovar projetos de interesse do Executivo: a base do governo recebia o dinheiro, a oposição ficava sem. A dinâmica estava dentro da lei, mas deixava o Parlamento refém do Executivo. Não por acaso, o Orçamento Impositivo foi aprovado por ampla maioria no Congresso — 95% dos deputados votaram a favor do texto em 2015. Na época, Cunha classificou a mudança como uma “redenção da Casa”. O texto que ampliou o Orçamento Impositivo, em 2019, teve ainda menos resistência e foi aprovado por 99% dos deputados presentes.

(Arte/Exame)

Ainda em 2019, em outubro, o Congresso aprovou o Orçamento de 2020 com base nessa impositividade e estendeu a execução obrigatória às emendas de relator-geral, designadas pelo parlamentar responsável por fazer a redação final do projeto orçamentário. Até então, o relator, que muda a cada ano, podia indicar emendas, mas não havia uma rubrica própria para esses valores. Nascia, assim, a “RP-9”. Essas emendas não precisam ser divididas de forma igualitária e cabe ao relator decidir como vai distribuí-las entre os parlamentares. “Nada impede que o relator beneficie, com emendas, parlamentares que ajudem a aprovar algum projeto específico”, explica Faria. O problema que o Congresso tentou resolver em 2015, com o Orçamento Impositivo, mudou apenas de endereço.

O poder de barganha, antes exclusividade do Executivo, passou aos líderes do Congresso, personificados no relator-geral do Orçamento. Em vez de peregrinar nos ministérios, os parlamentares agora vão aos gabinetes do Congresso em busca de mais verbas para redutos eleitorais. “As emendas de relator se tornaram a única possibili­dade de tratar diferentemente quem apoia o governo e quem não apoia”, afirma Faria. Esse movimento coincidiu com o aumento na parcela do Orçamento nas mãos do Congresso. Os valores repassados pelo relator bateram recorde no governo Bolsonaro. Em governos anteriores, os relatores definiram o destino de recursos discricionários de 5,8 bilhões de reais por ano, segundo cálculos de Faria. Durante o governo atual, essa média subiu para 26,1 bilhões de reais por ano.

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Durante a campanha eleitoral, Lula criticou o aumento das emendas de relator, também conhecidas como orçamento secreto, e chamou o mecanismo de “excrescência”. Quando a bola rolar, dificilmente os parlamentares diminuirão os próprios poderes. Apesar de duvidarem da possibilidade de que as emendas de relator sejam extintas, até lideranças hoje bolsonaristas cogitam que “algum ajuste” pode ser feito. Para o atual líder do governo Bolsonaro na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PB), o Congresso pode aprovar regras para alocar os recursos em programas específicos. “Isso é possível passar. Acabar com as emendas de relator, acho que não”, afirma. O mundo político aguarda julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de ações que questionam o uso das emendas de relator. Por ordem da presidente da Corte, ministra Rosa Weber, em 2021 foi criado um sistema para ras­­tre­ar quem indica e quem recebe essas emendas. Essa decisão é essencial para avaliar o nível de governabilidade de Lula a partir de 2023.

(Arte/Exame)

PRIORIDADE ZERO: PRESIDÊNCIA DA CÂMARA

Caso o STF trate do caso ainda neste ano, o impacto será observado diretamente na disputa pela presidência da Câmara. Se for privado de negociar em torno das emendas de relator, o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que almeja ser reconduzido ao posto no ano que vem, terá menos condições de cumprir promessas feitas aos parlamentares, explica Adriano Laureno, da Prospectiva Consultoria. Errar na escolha do candidato para a presidência da Câmara pode ser fatal para o novo governo. Lula está ciente disso e não quer repetir o ocorrido em 2015, com a eleição de Eduardo Cunha, que culminou no impeachment de Dilma. Naquele ano, o PT lançou o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) para o cargo, mas Cunha, o candidato de oposição, venceu em primeiro turno. Ter na liderança da Câmara um inimigo declarado é um dos maiores problemas que o Planalto pode enfrentar. Cabe ao presidente da Casa não só pautar pedidos de impeachment mas decidir, com as lideranças partidárias, quais assuntos serão discutidos no plenário.

Por isso, até agora, a sinalização de Lula tem sido de diálogo. Ele se encontrou com Lira no dia 9 de novembro pela primeira vez desde que foi eleito. Lira fez campanha para Bolsonaro, mas reconheceu o resultado das urnas pouco depois que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulgou a vitória de Lula. “A principal decisão que Lula vai ter de tomar até fevereiro é se vai ou não apoiar a candidatura de Lira”, diz Laureno. O presidente eleito costura sua base para saber quantos congressistas terá ao seu lado, e só deverá apoiar outro candidato se tiver certeza de que ganhará.

Apesar do perfil centro-direita do Congresso, Lula tem, pelo menos, dois trunfos: a experiência política e o fato de ter sido eleito com uma coligação de dez partidos. No segundo turno das eleições, angariou apoio do PDT. Nas duas primeiras semanas depois de eleito, Lula conseguiu fechar novas alianças. Na equipe de transição de governo, nomeou representantes de mais dois partidos, além dos dez da aliança inicial: PSD e MDB. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, já disse que há grande chance de compor a base do governo Lula, mas o apoio terá algumas condições — como o apoio à recondução de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) à presidência do Senado, que não deve ser um grande problema para o PT. O MDB, além de fazer parte da equipe de transição, possivelmente terá uma ministra, a senadora Simone Tebet (MS). O próximo foco deve ser o União Brasil, com uma bancada de 59 deputados.

O retrato do Congresso no dia em que Lula foi eleito era de uma base de 122 deputados e 12 senadores. Em dez dias, com a possível adesão do PDT, do PSD e do MDB, ele ampliou para 223 deputados e 36 senadores, números que tendem a aumentar nos próximos meses com novas alianças. Ainda não é maioria, mas já é o suficiente para barrar pedidos de impeachment ou mudanças na Constituição. “Dentro da própria legislatura isso se altera. Dilma, em 2014, foi eleita com uma base de 51 senadores e, dois anos depois, só teve 20 votos favoráveis no processo de impeachment”, diz Juliana Celuppi, diretora da consultoria Radar Governamental. Por isso, Lula já dialoga com o Centrão. Partidos como PP e PL, apesar do apoio eleitoral a Jair Bolsonaro, têm parlamentares muito diversos. “Os partidos que apoiaram Bolsonaro nas eleições também estiveram na base do Lula, da Dilma, do Temer. Há sempre espaço para acomodação. Não digo que o Congresso vai ser mais de oposição a Lula, mas vai exigir muito mais diálogo do que exigia no passado, porque agora é mais autônomo”, diz Cristiano Noronha, vice-presidente da consultoria Arko Advice. Segundo Ricardo Barros, “a tendência do Congresso sempre é ajudar”, mas cabe ao governo “manter essa relação”.

(Arte/Exame)

MENOS IDEOLOGIA, MAIS ECONOMIA

Lula também não ficará 100% distante da bancada evangélica, por exemplo, apesar de alguma resistência inicial. As pautas do novo governo devem ser menos ideo­lógicas e mais voltadas para economia e social. “Se Lula respeitar nossos princípios e preceitos, terá nosso respeito”, afirma o deputado Marco Feliciano (PL-SP), um dos expoentes da bancada evangélica. “Se vierem com a pauta antifamília e contra os valores cristãos, haverá luta.” O governo Lula tem consciência de que não vale a pena focar brigas ideológicas e sinaliza que os assuntos prioritários do governo serão economia e pautas sociais. “O governo mostra que tem uma agenda para além das questões ideológicas. Isso deve nortear a relação entre o Executivo e o Legislativo. Não vai ser a questão do comportamento”, diz a cientista política Carolina Botelho. Ela avalia que tanto Lula quanto Dilma negociaram um Congresso de composição ideológica similar, em termos de siglas, ao atual.

Por fim, o teto de aliança que Lula pode firmar no Congresso de 2023 é mais baixo do que o dos mandatos anteriores, quando não havia um movimento de oposição como o bolsonarismo que, vale lembrar, conquistou expressivos 58 milhões de votos nas urnas. “O perfil do Congresso está mais de centro-direita, mas continua com vocação governista, não oposicionista. Lula consegue construir maioria. Mas, muito provavelmente, para ele conseguir aprovar o que quer, vai ter de flexibilizar determinadas políticas que vai propor ao Congresso. Não vai aprovar se atender apenas a ala de esquerda. Vai ter de fazer concessões e sinalizações para o centro também”, afirma Noronha, da Arko.

Afinal, Lula foi eleito com o apoio de uma “frente ampla”, que vai desde FHC e Henrique Meirelles até Guilherme Boulos, e precisará agradar todos os lados, em um Congresso mais autônomo em relação ao Executivo do que em anos anteriores. “O Congresso atual não cede para qualquer coisa”, diz Noronha.

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