(OsakaWayne Studios/Getty Images)
“Então, lutando para continuar dormindo, desejando que o sonho durasse para sempre, certo de que, uma vez que acabasse, jamais voltaria... você desperta.” À primeira vista, o trecho, da obra best-seller Sandman, do escritor e quadrinista Neil Gaiman, narra apenas o derradeiro momento do sono. No entanto, para os que sofrem para atingir o descanso pleno, na verdade a cena descrita é um martírio: de um terço à metade dos adultos em todo o mundo lida com algum tipo de distúrbio do sono, sendo que pelo menos 15% têm insônia crônica — dormem mal ou não dormem no mínimo três vezes por semana. No Brasil, a parcela dos que vagam na madrugada chega a 25% dos adultos.
A origem do sono escasso, contudo, é diversa. Listam-se predisposições genéticas, idade, doenças crônicas, além de maus hábitos, como uso de álcool em excesso e estimulantes. Mas, se há uma dor a ser sanada, há um negócio em potencial. Com um objetivo bastante simples, o de alentar os que não pregam os olhos, startups do sono ganham espaço e propõem uma nova saída: usar da tecnologia, se valendo de terapias certificadas e gadgets (ironicamente, os smartphones), para ajudar os usuários a colocar um fim à insônia.
O faturamento dessas companhias já chegou a 85 bilhões de dólares, e em 2023 esse número deverá atingir 101 bilhões de dólares. E há terreno para explorar. Examinando o cenário, a economia do sono se divide em três categorias: conforto de ambiente (roupa de cama, iluminação e controle de temperatura), controladores de rotina (citam-se aqui monitores de sono ou aplicativos de meditação) e tratamentos terapêuticos (como orientação psicológica, medicamentos com ou sem prescrição médica e dispositivos clínicos para apneia do sono).
Ainda que seja um novo segmento, as pesquisas estão aceleradas. Em 2020, pelo menos 611 milhões de dólares foram computados em investimentos para startups desenvolverem produtos relacionados ao sono. Para este ano, esperam-se no mínimo 700 milhões de dólares.
Uma das que estão fazendo a cabeça, ou melhor, os sonhos dos clientes é a startup brasileira chamada Vigilantes do Sono, fundada em 2020 pelos engenheiros de computação Lucas Baraças e Guilherme Hashioka e pela psicóloga Laura Castro. Em pouco mais de um ano do nascimento da empresa, a tecnologia criada pelo trio já atingiu números significativos: pelo menos 50% dos usuários que seguem o programa pegam no sono mais rápido, e 60% deles acordam menos durante a noite.
Esses marcos trouxeram investidores. Um deles foi a empresa de aplicativos Taqtile, antiga empregadora de Baraças e Hashioka, que despejou 1,1 milhão de reais no negócio. A intenção é ajudar a Vigilantes no aprimoramento do serviço que ajuda os usuários a criar horários fixos, via uma assistente pessoal chamada Sônia, que auxilia o dia a dia com rituais pré-sono. Esse condicionamento, aliado à melhoria de hábitos, é ferramenta altamente recomendada pela psicologia no tratamento.
Segundo Baraças, presidente da startup, é esse monitoramento diário do sono que traz os bons resultados. “O nosso app vai requisitar uma interação de, no mínimo, 10 minutos por dia. Seguindo o que a assistente virtual indica, certamente o usuário vai gradativamente melhorando as noites de sono”, diz. No caso, o contato recorrente da Vigilantes do Sono é o que a difere de concorrentes famosos como o aplicativo americano Sleep Cycle, que grava e analisa o usuário dormindo e figura como um dos mais recomendados pela loja de aplicativos da Apple quando o assunto é melhorar a qualidade do sono.
A Vigilantes ainda está testando seu modelo de negócios. No entanto, já no primeiro semestre de 2021 teve um crescimento de 1.100% no faturamento. Hoje, há quatro modelos sendo aprimorados. No primeiro, o paciente que sofre com insônia pode desembolsar 150 reais por ano para acessar o programa. Em outra frente, a startup cobra dos médicos uma mensalidade para que eles possam oferecer o aplicativo como tratamento complementar a seus pacientes.
Outra empresa do segmento dos que não sonham é a SleepUp, que também desenvolveu uma solução de terapia digital. A startup, que foi selecionada pela mais recente edição do programa de aceleração Samsung Creative Startups, ao lado de outras 13 empresas, é a primeira a ter o método de terapia digital aprovado pela Anvisa.
A versão inicial do aplicativo surgiu durante a pandemia, em julho de 2020, e já teve mais de 6.000 downloads. O plano gratuito traz dicas e um diário do sono, conteúdos temáticos sobre depressão e menopausa, além de nove testes clínicos que captam as informações para personalizar a terapia. Já a versão paga tem uma terapia cognitiva completa e oferece telemedicina para casos mais crônicos. Em uma nova aposta, a empresa está desenvolvendo uma faixa que possui tecnologia para, quando colocada na cabeça durante o sono, captar sinais vitais e enviar para o aplicativo, detectando movimento, atividade cerebral, temperatura e batimento cardíaco.
Por sinal, dispositivos para dormir são outra frente bastante explorada. A americana Hello, desenvolvedora do sistema de rastreamento de sono Sense, arrecadou 100 milhões de dólares para seu totem que grava a noite de sono e prepara relatórios sobre ronco, sinais de pesadelo e apneia. Também na área de produtos, um dos maiores destinatários de investimentos é a Casper, que fabrica colchões tecnológicos com uma espuma que regula a temperatura e promete diminuir as vezes que se perde o sono. A empresa, que hoje tem capital aberto, recebeu em 2018 uma oferta de compra de 1 bilhão de dólares da varejista Target. O lance não foi aceito, mas, na época, rendeu à startup uma rodada de investimentos de 70 milhões.
Os gigantes da tecnologia também apostam no sono como uma frente de serviços. Amazon e Google pediram à agência reguladora americana FCC para instalar um radar de baixa frequência em suas assistentes pessoais. O objetivo é rastrear a noite dos clientes que deixam, por exemplo, a Alexa ao lado da cama. Como sempre, trata-se de uma iniciativa aparentemente bem-intencionada, mas a tecnologia certamente levantará ressalvas quanto à privacidade dos usuários.
Empresas como a Vigilantes do Sono e a SleepUp não ajudam apenas o usuário final, elas também têm chamado a atenção das companhias que agora entendem que a saúde mental dos colaboradores é importante para a produtividade. A pandemia de covid-19 tem parte nisso. No período, a mudança de cenário fez com que os investimentos de capital de risco nas startups de saúde crescessem exponencialmente. A consultoria americana Startup Health estima que, no primeiro semestre do ano passado, foram feitos 377 aportes em healthtechs no mundo todo, totalizando 9,1 bilhões de dólares. O montante é 18% maior do que o valor investido no mesmo período de 2019.
No Brasil, segundo pesquisa recente divulgada pela Distrito, as healthtechs brasileiras receberam um recorde de investimentos no primeiro trimestre deste ano. Ao todo, foram aportados 91,7 milhões de dólares em 14 rodadas. O valor já representa 85% do total investido no ano passado. Um dos modelos de vendas desses negócios é entrar em grandes pacotes de serviços de saúde, de modo semelhante ao Gympass, que oferece todo tipo de treinamento físico como um benefício corporativo. Para Lucas Baraças, da Vigilantes, empregados que dormem melhor faltam menos ao trabalho e têm desempenho superior. “Nossa aproximação com as empresas tem sido pelos gestores de RH, que estão muito preocupados com essa frente de bem-estar. Falamos também com intermediários, como a Porto Seguro e o Fleury”, diz.
Estudo realizado pelo instituto americano de pesquisa Rand Corporation aponta que a insônia e o fato de dormir pouco podem colaborar para o desenvolvimento de várias doenças e afetar a disposição dos profissionais. O mesmo estudo, que analisou o comportamento nos Estados Unidos, na Alemanha, no Reino Unido, Japão e Canadá, mostra que os distúrbios do sono podem gerar não só prejuízos para as empresas mas também impactos econômicos em países inteiros, o que indica que outras grandes economias podem experimentar consequências semelhantes. Um exemplo: 16% dos japoneses afirmaram que dormem menos de 6 horas por dia e 40% dormem entre 6 e 7 horas. Em seguida vêm os Estados Unidos, com 18% e 27%, respectivamente, o Reino Unido, com 16% e 19%, a Alemanha, com 9% e 21%, e o Canadá, com 6% e 20%.
No Brasil, uma pesquisa realizada neste ano investigou os hábitos de sono de mais de 2.000 brasileiros, e o resultado é preocupante: 62% dos brasileiros não são capazes de explicar se realmente dormem bem. Ao longo das respostas, essas mesmas pessoas afirmam que têm dificuldade para pegar no sono e que acordam várias vezes à noite.
Com tamanha dificuldade para pregar os olhos, a neurologista Daniela Pachito, especialista em medicina do sono, entende que dormir é visto hoje como um privilégio, e não como uma necessidade, transformando-se assim em um problema maior. “A crença de que tempo é dinheiro e sono é perda de tempo cria uma romantização em torno da privação de sono. E já temos dados mais do que suficientes para provar que dormir bem é um bom negócio.”