Plantação de tulipas na Holanda: 80% das flores vendidas no Reino Unido vêm do país vizinho (Clickalps/AGB Photo)
Gabriela Ruic
Publicado em 26 de setembro de 2019 às 05h30.
Última atualização em 26 de setembro de 2019 às 10h05.
Caminhando pelas incontáveis lojas de souvenirs nos canais de Amsterdã ou visitando o parque Keukenhof, considerado o maior jardim do mundo, é evidente o protagonismo das flores entre os símbolos da Holanda, ao lado dos tamancos de madeira e dos queijos. Com a possível saída do Reino Unido da União Europeia — até agora marcada para 31 de outubro —, as flores tornaram-se um exemplo de vítimas da confusão que pode assolar não só a Holanda mas também a Europa como um todo caso o Brexit venha a se concretizar.
A Holanda domina 44% do comércio global de produtos floriculturais e o Reino Unido é seu segundo maior mercado, atrás da Alemanha. De acordo com números da Florint, organização internacional que reúne floristas de 21 países europeus, 80% das flores vendidas em solo britânico vêm da Holanda. Mas esse comércio está em risco, especialmente se o Reino Unido deixar o bloco sem um acordo comercial. Segundo um estudo da consultoria KPMG, encomendado pelo governo holandês, as barreiras não tarifárias deverão gerar um custo adicional de até 627 milhões de euros por ano para a Holanda.
A tensão trazida à tona pelo Brexit é sentida tanto por economias menores, como a Bélgica, a Irlanda e a própria Holanda, quanto pelos grandes motores econômicos da União Europeia, como a Alemanha, a França, a Itália e a Espanha. Para esses e outros países europeus, o comércio com o Reino Unido representa uma parcela significativa de suas exportações e da atividade econômica. O Brexit ameaça não apenas o crescimento, mas também os empregos locais.
A União Europeia tenta navegar na incerteza e aconselha os 27 países que vão permanecer no mercado comum a se prepararem para o pior cenário — aquele no qual a saída do Reino Unido acontecerá sem um acordo de transição. Para economistas e autoridades consultados pela reportagem, essa é uma possibilidade que precisa ser levada a sério. “Incerteza”, inclusive, foi a palavra que a reportagem de EXAME mais ouviu durante as conversas com representantes do governo holandês, em Haia, da prefeitura de Amsterdã e com economistas da Alemanha, da França e da Holanda, realizadas em setembro. “A mudança na relação econômica com o Reino Unido vai nos impactar duramente. Vamos sofrer muito. Mas ainda estamos tentando entender todas as consequências e as perturbações que virão”, disse a EXAME uma fonte do governo holandês envolvida na estratégia para o dia seguinte do Brexit, e que pediu para não ser identificada. De acordo com ela, a Holanda trabalha com a possibilidade de uma saída sem acordo desde janeiro de 2017.
O problema é que, até o momento, não há dados precisos sobre o impacto que o Brexit sem acordo trará para a Europa continental. Um dos primeiros estudos que estimaram esse efeito foi publicado poucos dias antes do referendo, em junho de 2016. A pesquisa foi desenvolvida pelo economista Hugo Rojas-Romagosa, na época pesquisador do Bureau para Análise de Política Econômica da Holanda. “Produzimos o relatório muito rapidamente. Não esperávamos que os britânicos fossem votar para sair da União Europeia. Ninguém esperava”, diz ele. Até hoje, os dados do estudo são usados como um guia pelo governo da Holanda em todas as ações que vêm sendo feitas para atenuar os efeitos do Brexit. Num cenário em que a relação comercial com o Reino Unido seja regida pelas tarifas da Organização Mundial do Comércio — o mais prejudicial —, a retração do produto interno bruto da União Europeia seria de 0,8%.
Já a economia britânica cairia 4,1%. Os salários também sofreriam uma queda. Rojas-Romagosa alerta que esse era o pior cenário possível na época em que o estudo foi publicado, mas, ainda assim, incluía algum tipo de acordo de transição. “O Brexit totalmente sem acordo é muito mais negativo do que esses resultados que obtivemos”, diz ele, hoje pesquisador do Instituto de Comércio Global da Universidade de Berna, na Suíça. Em uma estimativa informal, feita para EXAME, o economista avaliou que a retração na União Europeia poderá ser de pelo menos 1% e, no Reino Unido, entre 8% e 10% — e isso teria sérias consequências sobre a economia mundial e sobre países como o Brasil. Em 2018, as exportações brasileiras para a União Europeia somaram 42 bilhões de dólares (17% do total exportado).
Entre os países da União Europeia, a lista de setores envolvidos no comércio com o Reino Unido é imensa. Inclui carros, remédios, maquinário, alimentos e bebidas. A indústria automotiva tem de longe o maior peso entre os bens que os britânicos importam dos europeus (17,4%, ou 46 bilhões de libras esterlinas) e é um dos setores que serão mais afetados, tanto do lado britânico, que exporta para o bloco 52% dos carros que produz, quanto do lado de outros países europeus.
De acordo com estimativas da Associação Europeia de Fabricantes de Veículos, que reúne empresas de vários países, inclusive do Reino Unido, se houver um rompimento traumático das relações comerciais, isto é, sem um acordo de transição, uma conta de 5,7 bilhões de euros terá de ser paga pela indústria e pelos consumidores. Um minuto de atraso na produção em solo britânico, calcularam as entidades, poderá custar 55.000 euros ao setor, cuja cadeia hoje emprega 14 milhões de pessoas na Europa.
A criação de barreiras no comércio pode trazer ainda mais dificuldades para as empresas que já sofrem com a queda na demanda e com as exportações mais fracas, como na Alemanha, maior exportador de carros de toda a Europa (55% do total) e país no qual 750.000 trabalhadores dependem do comércio com os britânicos. O economista Martin Braml, do Instituto de Pesquisa Econômica, com sede em Munique, nota que, com o Brexit, a União Europeia perde sua segunda maior economia, atrás da Alemanha. Hoje, quase 3% do PIB alemão vem das exportações para os britânicos. “É uma parcela que não dá para ser negligenciada”, diz Braml.
Já na França, terceira maior economia europeia, os setores mais prejudicados são os de manufatura, maquinário e farmacêutico, e a saída do Reino Unido pode levar a uma queda de 0,3% do PIB em cinco anos. “É uma queda considerável”, diz Daniela Ordonez, economista-chefe para a França na consultoria Oxford Economics. “No curto prazo, os impactos na Europa serão negativos para todos os lados. Todos perdemos.”
Localizada numa ilha vizinha à Grã-Bretanha, a Irlanda é outro país particularmente exposto aos efeitos nocivos do Brexit. Parceiros naturais do Reino Unido, até pela proximidade geográfica e cultural, os irlandeses exportam 15% dos bens e serviços para os britânicos, segundo um levantamento da consultoria Copenhagen Economics. Essa parcela salta para 40% nos setores agropecuário e de alimentos. A expectativa da consultoria, portanto, é que as exportações de bens e serviços entre os países caiam até 8% em 2030 em razão dos custos que passarão a incidir na relação bilateral.
Um dos efeitos mais imediatos do Brexit será o aumento repentino da demanda aduaneira. Para tanto, os governos intensificaram os esforços e aumentaram o contingente de mão de obra que atua nos pontos de entrada para seus territórios. A Holanda, por exemplo, contratou 800 novos agentes e 600 deles estão prontos para começar a trabalhar no dia seguinte ao Brexit. Já Alemanha, França e Irlanda contrataram 900, 700 e 400 agentes, respectivamente, para realizar as inspeções que serão necessárias.
Se por um lado a saída dos britânicos pode trazer prejuízo para os países da União Europeia, por outro também representa uma oportunidade de atrair empresas que antes estavam baseadas do outro lado do Canal da Mancha. Com uma economia altamente globalizada, o maior porto da Europa, localizado em Roterdã, e uma população bem qualificada, com um excelente nível de inglês, a Holanda é um dos destinos mais atraentes. Segundo a Agência de Investimentos Estrangeiros da Holanda (NFIA), 100 empresas que mantinham operações no Reino Unido já decidiram se mudar para o país e outras 325 cogitam fazer o mesmo. Destas, 73 escolheram a cidade de Amsterdã. “Oferecemos previsibilidade, e é isso que as empresas querem depois do Brexit”, diz Jeroen Nijland, chefe da NFIA.
O quadro é parecido em outras cidades. Dublin, Luxemburgo, Paris e Frankfurt são destinos que têm atraído empresas do setor financeiro. Elas estão transferindo parte das operações antes baseadas em Londres. Essas cidades já receberam ou devem receber 241 companhias. Alguns exemplos de instituições que mudaram parte da estrutura para Frankfurt são a suíça UBS e as americanas JP Morgan e Goldman Sachs. Já a Holanda tem atraído empresas de setores mais diversos. Entre as que escolheram o país estão os canais americanos de televisão Discovery e Bloomberg e a empresa de tecnologia para o mercado financeiro MarketAxess. Outra boa notícia — para os holandeses — foi a mudança da Agência Europeia de Medicamentos, que também trocou Londres por Amsterdã. Em meio ao choque, a presença forte de empresas internacionais pode se traduzir em mais investimentos e mais empregos. É hora de cada um mostrar seus atrativos para tentar reduzir os efeitos do estrago geral.