Revista Exame

"Na China, o Brasil só é conhecido por futebol. Temos de nos tornar mais conhecidos", diz embaixador

Em entrevista à EXAME, embaixador brasileiro na China projeta os próximos passos para a relação entre os países, cujos laços completam 50 anos em 2024

Marcos Galvão, embaixador do Brasil na China: os chineses não sabem que o Brasil é responsável por 25% de tudo o que compram de produtos agrícolas. Precisamos ser mais conhecidos (Leandro Fonseca/Exame)

Marcos Galvão, embaixador do Brasil na China: os chineses não sabem que o Brasil é responsável por 25% de tudo o que compram de produtos agrícolas. Precisamos ser mais conhecidos (Leandro Fonseca/Exame)

Luciano Pádua
Luciano Pádua

Editor de Macroeconomia

Publicado em 18 de junho de 2024 às 06h00.

PEQUIM, CHINA — O diplomata Marcos Galvão colecionou postos estratégicos para o Brasil ao longo de seus 44 anos no Itamaraty. Desde 2022, ele é embaixador do Brasil na China, a maior parceira comercial do país. Em entrevista à EXAME na embaixada brasileira em Pequim, capital do país asiático, Galvão lista os desafios da relação entre os países, que completa 50 anos em 2024.

Nesse meio século, tanto nós quanto os chineses mudamos — eles talvez tenham feito as maiores reformas já registradas na história de um país.

Para o diplomata, o trabalho é mais “fácil” do que o de seus antecessores, uma vez que a China rivaliza hoje com os Estados Unidos como potência econômica e tecnológica, e a relação Brasil-China é sólida. Mas há obstáculos à frente. “Na China, o Brasil só é conhecido por futebol. Temos de nos tornar mais conhecidos”, diz Galvão. “Um exemplo: os chineses não sabem nem sequer que o Brasil é responsável por 25% de tudo o que compram de produtos agrícolas.” É um bom ponto de partida para os próximos 50 anos de relação entre os países.

Qual é o balanço dos 50 anos de relações diplomáticas e comerciais entre Brasil e China?

Em 1974, os países eram completamente diferentes. A China tinha uma renda per capita de 316 dólares. Hoje, é de 12.000 dólares. Cresceu 35 vezes. Quando o Brasil começou a exportar para a China, nos anos 1970, tentamos minério de ferro — o primeiro acordo foi em 1973 —, e não era evidente o que se podia comprar da China e o que ela podia oferecer ao Brasil. Em 1989, a China representava menos de 1,5% do comércio exterior brasileiro. Em 2023, 30% das exportações brasileiras e 37% das exportações do agro brasileiro foram para a China.

E do lado brasileiro, o que mudou?

Quando começamos, o Brasil era um país que exportava meia dúzia de produtos: quase 50% de nossas exportações eram de café. E a China não tomava café. Agora, é um dos produtos que crescem em grande velocidade, porque as novas gerações estão tomando mais café. Nossas exportações se multiplicam rapidamente, e tudo leva a crer que esse mercado vai crescer muito.

Como foi a virada na relação comercial?

Criou-se uma complementaridade pelo desenvolvimento dos países. O Brasil começou sua revolução agrícola no final dos anos 1970, passando de importador de alimentos para um dos maiores exportadores. No ano passado, vendemos 25% de tudo o que a China comprou de produtos agrícolas, 70% da soja brasileira exportada vem para cá. Além disso, 1974 foi um ano depois da primeira crise de petróleo. Até então, importávamos petróleo. Hoje, somos exportadores, e quase metade dessa exportação vai para a China. Em 2023, começamos a exportar milho e já somos o primeiro fornecedor de milho da China, ultrapassando os Estados Unidos.

Ao mesmo tempo, a China também exporta muitos produtos, especialmente as pequenas commodities. Como proteger a indústria brasileira?

Esse é o lado da China da transformação. A partir do final dos anos 1970, começam as reformas, e ela se torna a grande produtora de bens industriais no mundo. É uma competidora muito forte, assusta as indústrias do mundo, e a indústria brasileira também vê esse panorama. Mas não se trata apenas de proteger. A indústria brasileira precisa — e está fazendo isso — preservar lugares nas cadeias de valor. Por exemplo, no setor automobilístico é importante que o setor de autopeças no Brasil preserve todo o espaço que puder para que um automóvel brasileiro tenha componentes fabricados no Brasil no maior percentual possível.

Como o senhor vê daqui para a frente a relação entre os países?

Tem enorme potencial e vai continuar a demandar trabalho de parte a parte. Não adianta celebrar números e a grandeza da relação, porque a economia muda. Não podemos nos contentar com os êxitos do presente. O êxito traz inércia, e não podemos cair nela. O Brasil precisa diversificar a pauta de exportações, aumentar o nível de agregação nos produtos exportados. Isso não significa abrir mão do que exportamos — temos um espaço importante a preservar. Mas não podemos nos contentar. Cada país tem o seu jeito de negociar. Tanto eles como nós somos práticos e realistas. Sabemos o que temos a oferecer um ao outro. A China sabe que pode confiar no Brasil como fornecedor. Tanto sabe que deixou que o Brasil assumisse a posição de seu principal fornecedor de produtos agrícolas — e sabemos a importância que a China dá à sua segurança alimentar. O Brasil é parceiro estratégico na segurança alimentar chinesa.

O senhor falou de agregação de valor. Para que tipo de produtos o Itamaraty tenta abrir mercado na China?

São duas coisas: uma são novos mercados e produtos, que é uma negociação constante com a autoridade aduaneira e sanitária chinesa. Estamos neste momento conversando sobre abertura de mercado para gergelim, uvas e noz-pecã [no início de junho o governo brasileiro e a China firmaram a abertura de mercado para a noz-pecã]. Quanto à agregação de valor, é um dever de casa que temos de fazer. Temos de chegar à China de forma competitiva, com preço, volume e capacidade de entrega em produtos de maior valor agregado. A agroindústria brasileira, por exemplo, pode fazer isso. A indústria brasileira pode se concentrar em algumas linhas. Seremos capazes se avançarmos no esforço de reindustrialização.

Grande Muralha, em Pequim, símbolo da China antiga: PIB per capita do país asiático cresceu 35 vezes nos últimos 50 anos (Leandro Fonseca/Exame)

Quais lições o Brasil pode aprender do desenvolvimento chinês em tecnologia e infraestrutura?

É preciso ver a China de perto e entender a velocidade, a dimensão e a escala das transformações em curso. Não necessariamente teremos a capacidade de reproduzir essa velocidade. Nem eles estão mantendo a velocidade com que começaram as suas reformas. Outra coisa é que parte do aprendizado do Brasil sobre o que está acontecendo na China virá com os investimentos chineses no Brasil. Se a China tinha — e tem — uma experiência importante na área de transmissão de energia elétrica, a nossa incorporação do que a China sabe nesse ponto está se dando pela presença de empresas chinesas com imensos investimentos na área no Brasil. Territorialmente, eles são um grande país, como nós, com necessidade de fazer transmissão a longas distâncias.

O senhor citou os investimentos chineses no Brasil. Qual é o panorama hoje?

A China tem hoje um estoque de investimento direto no Brasil de 70 bilhões de dólares. Desse valor, 45% estão no setor elétrico — 100% em energia limpa. Temos uma matriz limpa, que aumenta com mais geração de energia eólica e solar. Há investimentos chineses, e de outros países, importantes nessa área. Parte do aprendizado está indo assim, como estão indo agora também com os investimentos no setor de produção de baterias e de veículos elétricos. A perspectiva é de que o Brasil passe a produzir com investimentos chineses, e de outros países, veí­culos para transporte coletivo movidos a bateria ou híbridos. Nesse caso, veículos híbridos que combinam o elétrico com o etanol brasileiro ou a gasolina com a presença de etanol. Isso combina vantagens competitivas do produto chinês com as brasileiras de produzir etanol.

Qual é a importância da visita do vice-presidente Geraldo Alckmin à China?

A Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação [Cosbam] é o mecanismo que organiza nos governos o trabalho de construir a relação. Ela se reúne a cada dois anos. É um momento de energização e de dar sinais ao setor privado. Na China, o setor privado e as empresas estatais são muito sensíveis à sinalização política. É muito importante que haja um entendimento na China — e há — de que as relações com o Brasil vão bem, de que há um diálogo fluido e bom ambiente político. Além de se sentirem confortáveis e terem interesse econômico no Brasil, isso cria uma situa­ção muito favorável à ida de novos investimentos ao Brasil e ao comércio entre os países. 

Como o senhor vê a relação entre os povos?

Somos muito parecidos. Eles são informais, se tocam, falam alto. Esse é o lado positivo. O desafio é que os chineses sabem muito pouco sobre o Brasil. Na China, o Brasil só é conhecido por futebol. Temos de nos tornar mais conhecidos. Um exemplo: o chinês não sabe nem sequer que o Brasil é responsável por 25% de tudo o que compram de produtos agrícolas. A grande palavra para os próximos anos é desafio. Mas parte-se de uma situação diferente da de 1974, quando se partiu praticamente do zero. Não era óbvio que chegaríamos aonde chegamos. Hoje, partimos de uma base em que é mais fácil ter convicção. O mundo vai mudar, então não podemos ficar com uma relação estacionada só com os itens de hoje. Temos de olhar para a frente e ver o que podemos construir com esses itens. Além disso, temos de entender a importância de um país para o outro e como a relação com a China pode ajudar o desenvolvimento do Brasil e como a relação com o Brasil pode ajudar o desenvolvimento da China. Temos de ser capazes de descobrir cada vez mais interesses comuns e encontros de interesses.

* O editor viajou à China a convite do China Media Group


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