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Governo Bolsonaro: marcha a ré no campo?

A gestão Bolsonaro dá sinais de que deseja mudanças importantes na agenda ambiental brasileira — e isso preocupa especialistas

Jair Bolsonaro na feira Agrishow, em Ribeirão Preto: o foco da política ambiental do governo se restringe às cidades | Fernando Calzzani/Photopress/Estadão Conteúdo

Jair Bolsonaro na feira Agrishow, em Ribeirão Preto: o foco da política ambiental do governo se restringe às cidades | Fernando Calzzani/Photopress/Estadão Conteúdo

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Da Redação

Publicado em 9 de maio de 2019 às 05h30.

Última atualização em 24 de julho de 2019 às 16h41.

Entre os dias 6 e 7 de abril, uma equipe de nove agentes de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente fazia uma incursão na Floresta Nacional do Jamari, unidade de conservação de 223.000 hectares localizada no norte de Rondônia. A operação, praxe na rotina desses fiscais, tinha o objetivo de coibir a atuação de quadrilhas de madeireiros que promovem a derrubada de árvores de alto valor comercial na Amazônia sem autorização oficial. Acompanhado de mais dois agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e de 17 policiais, o grupo do Ibama queimou tratores e caminhões encontrados na área.

A destruição de equipamentos apreendidos durante uma fiscalização ambiental está prevista em lei, sob certas condições. Ainda assim, a conduta dos fiscais virou pauta de um vídeo que viralizou nas redes sociais pouco depois. Nele, o presidente Jair Bolsonaro, ao lado do senador Marcos Rogério (DEM-RO), diz: “O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, veio falar comigo com essa informação. Ele já mandou abrir um processo administrativo para apurar o responsável disso aí. Não é para queimar nada, maquinário, trator, seja o que for. Não é esse o procedimento, não é essa a nossa orientação”.

Ainda que a destruição de maquinário possa ter causado indignação em muita gente por soar como um desperdício em um país pobre de recursos materiais, o Ibama afirma que é preciso levar em conta o isolamento de algumas áreas de proteção, de difícil acesso por terra. A lama causada pelas chuvas características desta época dificulta ainda mais a mobilidade. Diante da impossibilidade de remover as máquinas, descapitalizar os infratores torna-se uma estratégia de combate ao crime. Ainda assim, o procedimento-padrão, de acordo com o órgão, consiste em esgotar todas as alternativas de retirada desse tipo de material.

Segundo EXAME apurou, de 1,5% a 2% das apreensões de equipamentos pelo Ibama resultam em destruição. Em geral, a ação dos criminosos — e a reação dos agentes federais — se dá em terras devolutas, ou seja, terras públicas da União sem destinação específica de uso. E também em áreas protegidas por lei, a exemplo das florestas nacionais.

Em Jamari, 96.000 hectares são destinados ao manejo florestal, um modelo de exploração que limita a quantidade de árvores retiradas por hectare, privilegia o corte de árvores menores e abundantes e conserva espécies mais raras, de modo a favorecer a regeneração e garantir a perpetuidade da floresta. Ali, duas empresas detêm concessões públicas para realizar essa atividade — e, sem poder de polícia, estão à mercê da concorrência desleal dos madeireiros, que conseguem colocar no mercado um volume estimado de 80% de madeira ilegal, a um custo 30% menor.

A Floresta Nacional do Jamari é velha conhecida dos agentes, já que é alvo de madeireiros com frequência. De acordo com agentes de fiscalização ouvidos por EXAME, o desmatamento vem ocorrendo até mesmo em períodos chuvosos, quando a retirada da madeira é ainda mais difícil.

“A postura do governo transmite o recado de que o infrator pode investir em caminhão e em trator para desmatar áreas de conservação sem ser importunado”, afirma um agente do Ibama que prefere não se identificar por medo de retaliação. Ele aponta o aumento da sensação de insegurança para realizar o trabalho de fiscalização. “Nos últimos meses, não nos hospedamos mais sozinhos em hotéis nem circulamos livremente para almoçar e jantar. Agora é 100% do tempo na companhia de policiais”, diz o mesmo agente. “O risco de emboscadas é permanente.”

Agenda urbana

À frente do tema, o ministro Ricardo Salles não deixa dúvida quanto à diretriz da pasta sob seu comando. Segundo ele, mudança climática é assunto para a academia, e a urgência ambiental do país reside nas cidades — muitas delas carentes de condições básicas de saneamento e pressionadas pelo descarte inadequado de resíduos. “A agenda de qualidade urbana contribui, e muito, para melhorar a vida de 80% da população que vive nas cidades. São temas concretos do dia a dia das pessoas”, diz o ministro.

Quando o assunto é floresta, a tônica tem sido a revisão, calcada no contingenciamento de recursos. O governo manifestou mais de uma vez a intenção de fundir o Ibama com o ICMBio, mas nada foi definido até agora. “Por ora, temos o desafio de cuidar da eficiência de gestão dos órgãos na forma que estão”, afirma Salles. Hoje é do ICMBio a responsabilidade de gerenciar unidades de conservação federal — e cabe ao Ibama, entre outras atribuições, tocar processos de licenciamento ambiental. Ambos, porém, têm funções semelhantes no que se refere à fiscalização e ao controle de planos de manejo florestal dentro de áreas protegidas por lei.

Para um ex-ministro da pasta, a junção dos órgãos poderia prejudicar o bom desempenho deles, dadas a extensão e a complexidade das atribuições. “A experiência nos mostrou que um só órgão dificultava a operação”, afirma Rubens Ricupero, que foi ministro da área em 1993 e 1994, anos que se seguiram à criação do próprio Ministério do Meio Ambiente. Até então, o tema estava restrito a uma secretaria criada no governo militar. “Já fui contra a divisão, mas hoje tenho clareza de que fundir o ICMBio com o Ibama é um retrocesso”, diz o também ex-ministro do Meio Ambiente José Sarney Filho.

Outra perspectiva de mudança nessa seara vem de um projeto de lei de autoria dos senadores Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e Marcio Bittar (MDB-AC). A proposta é extinguir a reserva legal, regra que determina que parte das propriedades rurais não pode ser desmatada. O conceito, ratificado pela última versão do Código Florestal, de 2012, estabelece que 80% dos imóveis rurais do bioma amazônico sejam preservados — ou explorados de maneira sustentável, a exemplo do plantio de cacau em consórcio com árvores nativas.

No Cerrado, essa parcela é menor, de 35%. E é ainda menor na Mata Atlântica, onde a restrição abarca apenas 20% das fazendas. A regra, que levou 13 anos para ser aprovada no Congresso, voltou à pauta na gestão Bolsonaro sob o argumento de que ela impede a expansão do agronegócio — o que é refutado por setores do próprio agronegócio. Estima-se que o impacto da medida se estenda a 160 milhões de hectares de vegetação nativa — e isso representa 20% do território nacional. “Não tem o menor cabimento alterar o Código Florestal e, muito menos, mexer no tamanho da reserva legal.

O esforço necessário agora é o de implementação da lei”, afirma Luiz Cornacchioni, diretor executivo da Associação Brasileira do Agronegócio e líder na Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura, grupo que reúne empresas, associações de classe, ONGs e instituições de ensino em torno da temática da sustentabilidade no campo. “A via do sucesso que trouxe o agronegócio até aqui não será a mesma que nos levará a um novo salto”, diz Cornacchioni. “Temos de ler as mudanças de hábito que o mercado sinaliza, e uma delas é a exigência de uma produção que esteja associada à conservação da natureza.”

Algumas das maiores tradings de grãos que atuam no Brasil partem da mesma premissa. A americana Cargill firmou um compromisso público de eliminar, até 2020, qualquer vestígio de desmatamento em sua cadeia. O mesmo foi proposto pela concorrente Bunge. A tarefa está longe de ser simples, mas, por ora, essas empresas tentam garantir que seus fornecedores estejam registrados no Cadastro Ambiental Rural e investem em assistência técnica para disseminar práticas que privilegiem a produtividade do solo — e não a abertura de mais zonas virgens de floresta, ainda que dentro do permitido por lei.

Trata-se de um caminho com bons precedentes quando o assunto é soja. Em 2007, um consenso entre empresas e ONGs resultou na suspensão de compras do grão na Amazônia Legal, área que reúne nove estados. O compromisso ficou conhecido como “moratória da soja”, e surtiu efeito. De lá para cá, o desmatamento do bioma decorrente do plantio do grão despencou — e hoje constitui 1% da derrubada de mata.

A discussão ganhou novos contornos quando, no dia 26 de abril, a renomada revista americana Science publicou uma carta que 602 cientistas de todo o mundo endereçaram às autoridades da União Europeia. O documento pede que condicionantes socioambientais sejam consideradas em negociações comerciais entre o bloco e o Brasil. Entre elas: melhorar a rastreabilidade de commodities que possam estar associadas a desmatamento ou conflitos que envolvam direitos indígenas.

Por aqui, a manifestação não foi bem recebida pelo governo e, entre parlamentares da bancada ruralista, fala-se em protecionismo e possível violação de regras do direito comercial internacional — algo que poderia gerar uma ida à cúpula da Organização Mundial do Comércio. “Daqui para a frente, o Brasil pode ser vítima de sanções efetivas se a produção de commodities se associar ao desmatamento e à violação de direitos indígenas”, afirma Ricupero, que entre 1995 e 2004 participou da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Procurada, a Frente Parlamentar Agropecuária não deu entrevista sobre o assunto.

A movimentação de acadêmicos, ativistas e de um grupo de ex-ministros brasileiros entrevistados por EXAME (veja quadro abaixo) encontra eco, sobretudo, na agenda das mudanças climáticas.  Não é para menos. O tema motivou um acordo global sem precedentes tendo em vista a adaptação e a diminuição dos impactos futuros — e em curso — do aquecimento da Terra. Assinado por 196 países, o Acordo de Paris tem entre seus signatários o Brasil, reconhecido como líder nas negociações diplomáticas que se sucederam em 2015.

Em junho de 2017, o presidente americano, Donald Trump, anunciou a retirada dos Estados Unidos do documento, provocando uma reação em massa de governadores e prefeitos americanos (eles vieram a público reforçar suas metas locais de combate à mudança do clima, a despeito da diretriz federal). O anúncio de Trump, no entanto, repercutiu bem entre a equipe do então candidato Jair Bolsonaro, que sugeriu, antes mesmo de vencer as eleições presidenciais, a saída do Brasil do Acordo de Paris. Diante do temor de alguns segmentos do agronegócio quanto ao impacto negativo disso nas exportações brasileiras, a saída não ocorreu. Mas, de acordo com o ministro Salles, o Brasil fará parte do compromisso enquanto “for conveniente”.

Apoiar o Acordo de Paris, porém, não é uma questão só de manter a reputação. É também de sobrevivência, segundo cientistas. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, agência ligada às Nações Unidas, somente no ano passado 35 milhões de pessoas foram afetadas por enchentes, 821 milhões ficaram desnutridas devido a secas, 2 milhões de pessoas tiveram de mudar de lugar e 1.600 morreram em consequência de ondas de calor e queimadas pelo mundo afora.

Por aqui, de 2013 a 2017, mais de 2.700 cidades foram afetadas por secas severas. Nesse período, um terço dos municípios brasileiros sofreu com enchentes e alagamentos. “Não há como descolar os eventos extremos pelos quais passaram e passam cidades como Rio de Janeiro e São Paulo de uma questão climática global, que exige ação rápida, e não retrocesso”, afirma Carlos Rittl, secretário executivo do Observatório do Clima, uma coalizão de entidades que discutem o tema das mudanças climáticas.

Operação do Ibama em Rondônia: o órgão teme o esvaziamento de seu papel | Henrique Donadio

Embora a relação de causa e efeito entre aquecimento global e eventos climáticos extremos seja clara para boa parte da comunidade científica que se dedica ao assunto, a agenda urbana do governo não fala em mudança climática. O bloqueio de recursos então destinados ao tema chega a 96%.

Em março, o governo lançou o Programa de Combate ao Lixo no Mar. Ainda não há clareza orçamentária nem de execução da ideia, que vai depender também da administração dos municípios costeiros. Eliminar os lixões também está entre as diretrizes prioritárias, embora não seja uma novidade. A meta já estava prevista na Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada pelo Congresso em 2010 após quase duas décadas de discussão — mas cuja execução vem recorrentemente sendo adiada diante de dificuldades orçamentárias de estados e municípios.

A indefinição quanto a cronogramas e, sobretudo, quanto ao dinheiro necessário para bancar os novos programas tem como pano de fundo mudanças relevantes no que diz respeito aos responsáveis por tratar de cada tema. Na esfera federal, o saneamento básico está sob a alçada do Ministério das Cidades e do Ministério de Desenvolvimento Regional, e não do Meio Ambiente.

Já a temática da política de recursos hídricos — que define outorgas de água e coordena possíveis conflitos de uso do recurso —, antes ligada ao Ministério do Meio Ambiente, agora está sob a alçada do Ministério das Cidades. “Há profundo desconhecimento sobre quem cuida do que e, nessa toada, destroem-se as políticas que foram construídas nos últimos 30 anos sem aprimorar nada”, afirma Izabella Teixeira, que foi ministra do Meio Ambiente de 2010 a 2016.

Ainda é cedo para avaliar se a agenda definida pelo governo como prioritária terá êxito. O fato é que, num país que detém a maior floresta tropical do mundo, relegar a discussão sobre o uso da terra a segundo plano é, no mínimo, preocupante. 

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