Revista Exame

Mais sócios, mais exigências nas empresas

Cada vez mais empresas brasileiras têm o controle diluído — e aprendem a lidar com a complexa convivência entre muitos acionistas

Loja da Renner, em São Paulo: pioneira entre as empresas sem dono no Brasil, tem mais de 7 000 acionistas na bolsa paulista (Kiko Ferrite/EXAME.com)

Loja da Renner, em São Paulo: pioneira entre as empresas sem dono no Brasil, tem mais de 7 000 acionistas na bolsa paulista (Kiko Ferrite/EXAME.com)

Tatiana Vaz

Tatiana Vaz

Publicado em 23 de agosto de 2011 às 11h18.

São Paulo - Criada nos anos 30 pelo imigrante austríaco Ernesto Igel, a Ultragaz nasceu como uma pequena engarrafadora de gás de cozinha, com vendas porta a porta. De geração em geração, os descendentes do fundador mantiveram o controle do que se tornou o Grupo Ultra — que faturou 42,5 bilhões de reais em 2010.

Em agosto, porém, os 20 herdeiros e alguns dos principais executivos, que juntos detêm 66% de participação, devem diluir o controle na bolsa. Ao migrar a companhia para o Novo Mercado, eles passarão a ter apenas 24% das ações ordinárias — todo o resto vai para as mãos de centenas de investidores.

Daqui para a frente, os novos acionistas terão os mesmos direitos dos antigos e participarão de todas as decisões relevantes que dizem respeito à companhia, como escolha do conselho e das políticas de remuneração, e até nas aprovações estratégicas.

Em contrapartida, os antigos controladores deverão ter mais facilidade para vender suas ações no futuro — e a empresa, mais possibilidades para uma fusão ou aquisição por meio de troca de ações.

O Grupo Ultra deve se tornar o mais novo integrante de um time ainda restrito no país — o das empresas sem dono, cujo controle está diluído na bolsa. Hoje existem apenas 23 companhias com mais de 50% das ações negociadas livremente na bolsa, segundo levantamento da Associação de Investidores no Mercado de Capitais.

É um percentual quase irrelevante, de menos de 5%, entre as 543 listadas em bolsa e ainda mais ínfimo diante desse universo no mercado americano — estima-se que mais da metade das empresas nos Estados Unidos siga esse modelo.

Por lá, companhias cujos donos são centenas ou milhares de investidores existem há quase dois séculos, desde que a Boston Manufacturing Company, uma fábrica de roupas, adotou o modelo em 1813. No Brasil, a primeira a aderir à pulverização do controle — e de maneira radical — foi a rede de lojas de departamentos gaúcha Renner.

Em 2005, a companhia vendeu 98% de suas ações na bolsa de valores a pedido de sua controladora americana, a cadeia de varejo JCPenney. Hoje, 99,7% das ações da companhia estão pulverizadas na bolsa.


A explicação para a diferença entre o universo brasileiro e americano está na própria evolução do capitalismo brasileiro — só na última década os fundos de private equity e o próprio mercado de capitais ganharam espaço na vida corporativa do país.

“O volume deve naturalmente crescer nos próximos anos”, diz Celso Grisi, professor de finanças da Fipecafi, da Universidade de São Paulo.

À medida que os casos se tornam mais comuns, começam também a surgir exemplos de como a convivência entre muitos acionistas pode ser complexa. Decisões que antes envolviam apenas meia dúzia de conselheiros a portas fechadas tornam-se parte da agenda pública.

Num episódio inédito no Brasil, em abril um grupo de minoritários rejeitou a proposta de remuneração dos conselheiros e executivos durante a assembleia geral de acionistas da PDG, maior construtora do país.

Segundo eles, faltavam detalhes importantes para a aprovação. Na pauta, a empresa divulgou apenas o montante de 30 milhões de reais que pretendia distribuir, sem especificar quanto caberia a cada um deles — o que não foi aceito pelos acionistas.

Uma nova assembleia foi marcada para junho. Diante da situação inesperada, os executivos da PDG concentraram esforços para evitar outro confronto na reunião seguinte.

A missão coube a Michel Wurman, vice-presidente da empresa, que procurou os dez  principais minoritários — donos de 32% da companhia. “Explicamos que estávamos impedidos de revelar detalhes”, diz.

Há mais de um ano, o Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Rio de Janeiro obteve uma liminar na Justiça que desobriga a discriminação dos salários de seus 500 associados. A decisão atingiu cerca de 150 empresas — e a PDG é uma delas.

Na segunda assembleia, com o fato esclarecido, a remuneração teve aprovação de 98% dos presentes. “Se tivéssemos explicado melhor antes, nada disso teria acontecido”, afirma Wurman.


“A lição que tiramos foi que precisamos ser mais detalhistas nas informações.” Apenas de janeiro a junho, mais de 700 reuniões foram feitas entre executivos da empresa — inclusive seu presidente, José Antonio Grabowsky — e representantes de sua multidão de 10 000 investidores, cerca de 80% deles estrangeiros. 

Benefícios

Até pouco tempo atrás, as primeiras empresas sem dono brasileiras estavam às voltas com o problema contrário — chamar a atenção dos minoritários para as decisões da empresa.

No caso da pioneira Renner, a dificuldade nos primeiros anos era cumprir a meta mínima da presença de 25% de representantes de seus 7 545 acionistas nas assembleias.

Para tirar dúvidas e garantir um quórum mínimo nos encontros, a empresa contratou uma equipe de cinco profissionais. O esforço fez com que a Renner ampliasse a participação dos acionistas nas decisões.

Em 2006, tomavam parte das reuniões apenas representantes de acionistas que, somados, detinham o equivalente a 27% do capital da empresa. Em abril, esse percentual subiu para 33%.

Nos Estados Unidos, convenções de companhias como o Walmart chegam a reunir multidões de até 10 000 participantes todos os anos na pequena cidade de Bentonville — algo que ainda está longe de acontecer por aqui, apesar do aumento do interesse dos investidores. 

A transformação numa empresa sem dono pode ser trabalhosa — mas traz benefícios concretos para quem decide ir em frente. O mais imediato é levantar dinheiro para planos de expansão.

Em dezembro, a rede de ensino Anhanguera — cujo maior acionista, o Pátria Investimentos, tem 17% das ações — obteve 844 milhões de reais com uma oferta de ações ordinárias. O montante será destinado ao plano de aquisições do grupo.

“As vantagens compensam as dificuldades”, diz Ricardo Câmara Leal, professor de finanças da escola de negócios Coppead, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Nos próximos anos, tudo isso pode se tornar corriqueiro para as empresas brasileiras.”

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