Revista Exame

Por que alguns países usam o Estado para reforçar a homofobia

Por alguma razão, alguns países temem qualquer pessoa que não esteja em conformidade com as normas convencionais de gênero. O que os assusta?

Grupo musical chinês WayV: a cultura pop sofre censura do governo da China (VCG/Getty Images)

Grupo musical chinês WayV: a cultura pop sofre censura do governo da China (VCG/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 30 de junho de 2022 às 06h00.

Última atualização em 30 de junho de 2022 às 15h05.

O governo chinês está banindo homens “maricas”, “afeminados” da televisão, parte de uma campanha de propaganda perversa que os classifica como “anormais” e que de algum modo violam a moral do país. A perseguição a homens gays — e de qualquer pessoa que não adira aos padrões de masculinidade convencional — por parte do presidente Xi Jinping não deveria causar surpresa. A homofobia é uma marca registrada autoritária.

Quando eu era estudante na Universidade Estadual de Moscou no início da década de 1980, um de meus colegas de classe — um amante de literatura de fala mansa — foi expulso, supostamente por plágio. Mas nunca vou esquecer quando outro colega de classe se aproximou e sussurrou que, na verdade, o crime de nosso colega expulso foi que “ele era gay”.

LEIA TAMBÉM: Putin não teria invadido a Ucrânia se fosse mulher, afirma primeiro-ministro britânico

Qualquer que fosse sua sexualidade, nosso colega claramente foi considerado gentil demais para nosso “heroico” meio soviético. De fato, até mesmo as mulheres tinham de ser viris: imagens de empregadas domésticas em coletes laranja arando neve e martelando pregos eram bastante comuns na era soviética. Porém, para os homens, qualquer coisa que não fosse “o homem dos homens” quintessência — peito estufado e rifle a tiracolo — era, para todos os efeitos, criminoso.

Ditadores dependem de ordem. Eles não mantêm suas posições atendendo as necessidades do povo, e sim controlando o máximo que puderem os aspectos da vida de seu país. Isso inclui definir exatamente como a população deve se comportar e retratar a heterodoxia como indigna de confiança e até mesmo perigosa. Na China, como Rana ­Mitter vem apontando, impor conformidade em relação ao gênero faz parte de uma campanha mais ampla para garantir concordância com os pontos de vista políticos aprovados pelo Estado.

A homofobia patrocinada pelo Estado é também um traço da vida na Rússia contemporânea. Em 2013, o presidente Vladimir Putin decidiu subitamente que a homossexua­lidade ameaçava a posição dele. É de suspeitar que isso tivesse algo a ver com os persistentes rumores de que as relações entre os principais ministros e associados de negócios de Putin não eram estritamente profissionais — ou platônicas. Eles podem não ser homossexuais, mas acredita-se que alguns (no mínimo) tenham relações sexuais com outros, em parte como uma demonstração de lealdade.

Não são os tipos de rumores que um homem forte como Putin quer circulando. Esse, afinal de contas, é o mesmo homem que apareceu numa foto pescando em um lago na Sibéria e, em outra, sem camiseta montando um cavalo. Tais fotos logo se tornaram ícones populares de revistas gays do mundo todo. Assim, a Rússia aprovou uma lei proibindo a “propaganda homossexual”.

De modo muito parecido com a nova regra da China, a lei supostamente visava proteger as crianças de informações que promovessem “a negação dos tradicionais valores da família”. Na verdade, a medida reduziu drasticamente o acesso a serviços de educação e apoio inclusivos para o público LGBTI+. Hoje, muitos na Rússia estão convencidos de que a homossexualidade é um comportamento aprendido. Até mesmo pessoas inteligentes e educadas vão fuxicar sobre alguém conhecido que “virou gay”.

Mas aquela lei foi só o começo. Uma das alterações aprovadas na farsa do referendo constitucional do ano passado criminalizou a união entre pessoas do mesmo sexo e decretou que o casamento só poderia ocorrer entre um homem e uma mulher.

Esse velho modelo autoritário homofóbico também vem dando as caras nas Filipinas, onde o presidente Rodrigo Duterte já disse que se “curou” da homossexualidade — como se isso fosse algum tipo de doença vergonhosa — com a ajuda de “mulheres bonitas”. Embora a Constituição do país permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo, seu Código Familiar o veta.

Na Turquia, há direitos LGBTI+, mas a discriminação e o assédio generalizado persistem. No início deste ano, após uma onda de protestos estudantis, o presidente Recep Tayyip Erdoğan disse: “Levaremos nossos jovens para o futuro, não como a juventude LGBTI+, mas como os jovens que existiram no passado glorioso de nossa nação”.

Mulheres afegãs: a ascensão do Talibã é marco de uma série de ataques a seus direitos (Mohammad Noori/Getty Images)

Mesmo algumas supostas democracias vêm adotando a homofobia patrocinada pelo Estado como parte de uma guinada iliberal mais ampla. Na Hungria, o governo do primeiro-ministro Viktor Orbán aprovou uma lei proibindo a “promoção da homossexua­lidade” e a redesignação de gênero para menores. Na Polônia, “zonas livres de ideologia LGBTI+” e “estatutos familiares” anti-­LGBTI+ foram estabelecidos em quase 100 regiões, vilas e cidades.

Embora Donald Trump não seja mais presidente dos Estados Unidos, ele adotou um discurso de “machão” semelhante, como quando ameaçou manifestantes com violência. Ele até chegou a se gabar de seus níveis de testosterona e do tamanho de seu pênis. Na frente política, auxiliado por seu vice-presidente ultraconservador, Mike Pence, ele enfraqueceu as proteções à população LGBTI+ e instituiu o veto a pessoas transgênero nas Forças Armadas.

LEIA TAMBÉM: A pandemia acelerou o processo de igualdade para a mulher, diz Luiza Trajano

Os Estados Unidos escaparam do trumpismo, pelo menos por ora. Mas as fileiras de líderes machistas caricatos, no entanto, parecem estar crescendo. Na Ucrânia, o presidente Volodymyr Zelensky não se apresentou como uma figura agressivamente masculina; pode-se descrever o estilo dele como “metrossexual­”. Hoje, no entanto, ele desempenha um nacionalista vigoroso, frequentemente trajando roupagem militar, defendendo sua terra natal da ameaça russa. Recentemente, ele desafiou Putin a encontrá-lo na zona de guerra, na fronteira entre a Ucrânia e as autoproclamadas repúblicas russas de Donetsk e Lugansk.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin: projeto de lei “antipropaganda gay” (RAMIL SITDIKOV/Getty Images)

A dependência desses líderes da “masculinidade hegemônica” — a ideia de que homens devem ser fortes, durões e dominantes — para consolidar sua posição não deve causar surpresa. Estados autoritários são fundamentalmente fracos; e ditadores, fundamentalmente inseguros. Logo, eles tentam constantemente projetar força.

Contudo, no mundo em mudança acelerada de hoje, as pessoas comuns também estão se sentindo inseguras — especialmente aquelas que pensam que suas posições tradicionalmente “dominantes” estão sendo implodidas. Isso as torna ansiosas por abraçar homens fortes que prometam uma volta à ordem e à previsibilidade de um passado mais socialmente rígido.

Em outras palavras, essas pessoas morrem de medo de mudança e acham que precisam de líderes “machos” e de regras patriarcais para protegê-las.

(Arte/Exame)

Acompanhe tudo sobre:ChinaDiversidadeexame-ceoHomensLGBT

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025