Cristina Kirchner: a alegria do populismo costuma acabar em lágrimas (Dan Kitwood/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 25 de maio de 2012 às 11h27.
São Paulo - A classe política argentina está em polvorosa. Mesmo antes de o Senado votar a proposta da presidente Cristina Kirchner de nacionalizar 51% da YPF, petroleira controlada pela espanhola Repsol, políticos de várias províncias já se movimentavam para ocupar espaço na estatal ainda em gestação.
Das 17 cadeiras do conselho da futura empresa, três serão destinadas às províncias. Neuquén, Santa Cruz e Chubut, as principais produtoras de petróleo, todas na Patagônia, parecem estar garantidas. Mendoza, a quarta no ranking da produção, por enquanto, está de fora — e luta por espaço.
Outro ponto de disputa é a participação das províncias no capital da estatal. Neuquén, onde está Vaca Muerta, um campo com metade do potencial do pré-sal brasileiro, almeja ter uma fatia maior. Como costuma acontecer, políticos em busca de favores aumentam o poder da Presidência — e a presidente Cristina Kirchner não esconde sua alegria.
Pela lógica kirchnerista, tudo caminha a contento. As pesquisas de opinião indicam que cerca de 60% dos argentinos aprovaram a nacionalização da YPF — e, obviamente, políticos de várias cores se apressaram para apoiar a medida. Com a nova cortina de fumaça, diminuiu a atenção dada ao caso de tráfico de influência na Casa da Moeda, em que o vice-presidente Amado Boudou é acusado de favorecer um amigo na disputa pela impressão das cédulas.
E agora parece distante o recente fracasso de colocar a soberania das ilhas Malvinas na pauta internacional. “O padrão da atual política econômica argentina é o de responder a momentos difíceis com a tentativa de camuflar os problemas do país”, diz Eliana Cardoso, professora da FGV e coautora do livro A Economia da América Latina: Diversidade, Conflitos e Tendências.
Estima-se que a exploração de Vaca Muerta vá demandar investimentos anuais de 25 bilhões de dólares por dez anos, mas nem mesmo isso parece tirar o sono do governo argentino. A assinatura de um acordo com uma grande petroleira estrangeira é tida como uma questão de tempo.
A americana Chevron, os chineses da Sinopec e da CNOOC e a Petrobras são considerados quatro candidatos em potencial. “No setor de petróleo, é comum os investidores estrangeiros encontrarem ambientes políticos desafiadores e, ainda assim, fecharem negócios”, diz Albert Fishlow, diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Columbia.
Mesmo que uma parceria com a agora estatizada YPF atraia o interesse de alguma empresa estrangeira, a Argentina está longe de um final feliz por um simples motivo: a lógica kirchnerista não faz o menor sentido.
Surto populista
Com a nacionalização da YPF, a Argentina definitivamente entrou para a segunda divisão. Ao longo das últimas duas décadas, a América do Sul foi dividida. De um lado, países onde partidos de esquerda, uma vez no poder, decidiram garantir a qualidade das instituições — como no Brasil e no Chile.
No outro extremo, países com políticos da velha tradição populista, gente para a qual a lei deve ser moldada de acordo com a vontade do grupo no poder.
“O venezuelano Hugo Chávez, o boliviano Evo Morales e o equatoriano Rafael Correa foram eleitos com o objetivo de nacionalizar empresas, principalmente do setor energético. Na Argentina, o governo tomou a decisão já empossado. Essa é a principal diferença”, diz Victor Bulmer-Thomas, autor de A História Econômica da América Latina desde a Independência e professor emérito da Universidade de Londres.
É curioso que os políticos da Argentina, conhecida como um dos grandes centros mundiais da psicanálise, pareçam presos ao que Sigmund Freud chamou de “compulsão à repetição” — neste caso, compulsão ao erro. Antes da YPF, o governo argentino já havia retomado o controle da companhia de saneamento, dos Correios e de cerca de dez fundos de previdência.
O caso mais notório dessa fúria estatizante é o da empresa de aviação Aerolíneas Argentinas, que, expropriada em 2008, passou a dar um prejuízo diário estimado em 2 milhões de dólares — o que é, no mínimo, um mau presságio para a nova petroleira do governo.
Quando um investidor analisa um país, há sempre dois pesos na balança: o nível do risco e as possibilidades de ganho. No caso do segmento do petróleo, é possível que a chance de explorar novas reservas se sobreponha ao medo de ser confiscado pelo governo. Na maioria dos outros setores, porém, a história é diferente.
“Com certeza, os investidores vão pesar mais os riscos antes de colocar dinheiro na Argentina”, diz Miguel Kiguel, ex-subsecretário de Finanças do Ministério da Economia no governo Menem e hoje diretor da consultoria Econviews, de Buenos Aires. Em larga medida, isso já vinha acontecendo.
No Brasil, o investimento estrangeiro direto equivale a 3% do PIB. Na Argentina, é de 1% e, na Venezuela, além de não investirem, os estrangeiros estão tirando o dinheiro. Em termos de reservas cambiais, o Brasil também está em outra liga (veja quadro).
Muitos defensores de Cristina Kirchner, tanto do lado de lá da fronteira como no de cá, gostam de dizer que a Argentina tem crescido num ritmo mais elevado que o Brasil — médias anuais de 6,9% e 4,2% nos últimos cinco anos.
O problema é que essa expansão tem sido sustentada por taxas elevadas de inflação — o desacreditado índice oficial é de 9,8%, mas o mercado trabalha com o percentual de 22,7%. Com índice de preços em alta, baixo investimento externo e mercados de crédito fechados, o crescimento argentino fica bem menos atraente.
Nos anos 80 e 90, falava-se no “efeito Orloff”, referência a um comercial de vodca que dizia: “Eu sou você amanhã”. No passado, o Brasil dava a impressão de que copiava as medidas econômicas argentinas. Essa época, felizmente, parece ter ficado para trás. No caso de medidas populistas, os brasileiros já sabem que o fim é sempre uma ressaca com muita dor de cabeça.