Revista Exame

Governar é inovar

Nem tudo o que reluz em seu iPhone saiu da cabeça de Steve Jobs. O Estado, acredite, tem tudo a ver com as inovações da Nova Economia. É o que defende a economista Mariana Mazzucato em um livro que esquentou o debate sobre o papel dos governos

Laboratório do governo americano: a pesquisa estatal é parte do ecossistema da inovação (Divulgação)

Laboratório do governo americano: a pesquisa estatal é parte do ecossistema da inovação (Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2014 às 17h36.

São Paulo - Em seu famoso discurso na Universidade Stanford em 2005, Steve Jobs, então presidente da Apple, incentivou os formandos a ser inovadores "indo atrás do que amam" e "continuando loucos". O discurso foi citado em todo o mundo como epítome da cultura da economia do conhecimento.

Enfatizando a inovação, Jobs destacou o fato de que, na base do sucesso de uma empresa como a Apple, no centro da revolução do Vale do Silício, estavam não apenas a experiência e a habilidade técnica de sua equipe mas também sua capacidade de ser um pouco "maluca", arriscar e dar ao design tanta importância quanto à tecnologia do hardware.

O próprio fato de Jobs ter abandonado a faculdade e se vestido a vida inteira com roupas típicas de um universitário ajudava a reforçar esse estilo jovem e "louco".

Embora o discurso seja inspirador e apesar de Jobs ter sido corretamente chamado de gênio por causa dos produtos visionários que concebeu, essa história cria um falso mito em relação à origem do sucesso da Apple. A genialidade individual, a atenção ao design, o gosto pelo risco e a loucura foram, sem dúvida, características importantes dos resultados impressionantes da empresa anos mais tarde.

Mas, sem o maciço investimento público por trás das revoluções da informática e da internet, esses atributos valeriam muito pouco. A genialidade de Jobs só resultou em sucesso e altos lucros porque a Apple conseguiu surfar a onda de investimentos enormes feitos pelo Estado em tecnologias que deram sustentação ao iPhone e ao iPad.

Foi graças a contratos públicos da Força Aérea americana e da Nasa que novos circuitos integrados de silício foram inventados no pós-guerra. Sem eles, não haveria computadores pessoais­, celulares nem a maioria dos aparelhos eletrônicos encontrados no mercado atualmente.

Embora o iPhone pareça ser um aparelho de grande apelo com sua tecnologia de ponta, o que o torna "smart" é sua capacidade de conectar o usuário com o mundo virtual a qualquer momento — e aqui, de novo, há a mão do Estado. Durante o período da Guerra Fria, as autoridades americanas estavam preocupadas com possíveis ataques nucleares e como eles afetariam as redes de comunicação.

Paul Baran, pesquisador da Rand, organização originária de um projeto da Força Aérea americana, recomendou a criação de um sistema de comunicação descentralizado. Embora a agência do governo responsável por esse projeto tenha procurado a empresa de telecomunicações AT&T e a de tecnologia IBM para construir essa rede, ambas declinaram por não acreditar em sua viabilidade econômica.

A missão de financiar o conjunto de protocolos de comunicação e os programas de e-mail necessários para a rede acabou ficando nas mãos do governo, o que de fato aconteceu entre os anos 70 e 90.

Outro grande recurso oferecido pelos produtos da Apple, como iPhone e iPad, é o GPS. A tecnologia criada na década de 70 para uso estritamente militar está amplamente disponível para uso de civis, mas até hoje depende da manutenção feita pela Força Aérea americana. A lista de inovações bancadas pelo Estado que agora estão em uma série de produtos ainda inclui as telas sensíveis ao toque.

O britânico E.A. Johnson publicou seus primeiros estudos sobre o tema na década de 60, quando trabalhava para a Royal Radar Establishment, agência do governo britânico criada para realizar pesquisa e desenvolvimento na área de defesa. Uma das primeiras aplicações dignas de nota da tela de toque foi realizada em 1973 pela Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, outra instituição estatal.

Todos esses exemplos ajudam a entender o caráter coletivo da inovação. Há anos sabemos que a inovação não apenas é resultado dos gastos realizados com pesquisa e desenvolvimento, mas também está relacionada a um conjunto de instituições que possibilitam que o conhecimento se espalhe por toda a economia. Ligações dinâmicas entre a produção de ciên­cia e sua aplicação pela indústria são uma forma de dar sustentação a isso.

É claro que é importante não se iludir com a capacidade do Estado nessa área. Mas, seguindo a sugestão de ­Steve Jobs, o Estado é que deveria "continuar louco" em sua busca pelo desenvolvimento tecnológico e pela solução dos problemas sociais.

Se o Estado está investindo na internet ou em energia limpa em nome da segurança nacional ou como forma de combate à mudança do clima ou para garantir a independência energética, pode fazer isso numa escala e com instrumentos não disponíveis para o setor privado (como os impostos).

Além disso, vale lembrar que o setor privado também tem suas limitações. Não consegue, por exemplo, fazer investimentos em invenções que possam ser caracterizadas como bem público, porque ficaria impossibilitado de capturar a maior parte dos lucros gerados.

Público ou privado?

O sucesso da Apple não dependeu de sua habilidade de criar novas tecnologias, mas de sua capacidade organizacional para integrar, comercializar e vender as que estavam facilmente acessíveis. Quem poderia imaginar que a tecnologia criada para preservar a capacidade de comunicação durante uma guerra nuclear se transformaria décadas mais tarde em uma plataforma de conhecimento, comunicação e comércio que o mundo todo utilizaria?

Se a história dos novos setores da economia nos ensina alguma coisa é que os investimentos privados tendem a esperar que os investimentos iniciais e arriscados sejam feitos, primeiramente, por organismos estatais.

Ao buscar promover o crescimento puxado pela inovação, é fundamental entender a importância dos papéis do setor público e do setor privado. Isso requer não apenas entender o valor do ‘ecossistema’ de inovação, mas, principalmente, saber qual é a contribuição de cada um para esse sistema.

A suposição de que o setor público pode, no máximo, incentivar inovações subsidiando o setor privado não leva em consideração os muitos exemplos em que a principal força empreendedora veio do Estado. Nunca foi tão importante quanto agora debater essas questões. Em muitos países há uma diminuição do Estado, justificada pela necessidade de reduzir gastos, mas também para, supostamente, tornar a economia mais "inovadora". Será?

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