Kelly Slater no Surf Ranch, em Lemoore: ondas artificiais não dependem do tempo e exigem mais técnica dos competidores (Jeff Gross/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h16.
Última atualização em 24 de outubro de 2019 às 14h38.
Bem que a surfista australiana Stephanie Gilmore, sete vezes campeã mundial, havia me alertado: “É muito estranho você seguir no meio do nada dentro do continente para ir atrás de uma onda perfeita”. De fato, depois de rodar por 3 horas e meia de carro ao norte de Los Angeles, só encontramos deserto. No centro da Califórnia, Lemoore, uma cidade de 26.000 habitantes, embora distante 175 quilômetros do mar, entrou no mapa do surfe mundial.
Isso por causa do Surf Ranch, um complexo grandioso, porém discreto. Não há placas na rua que indiquem sua localização. Quando o prosaico portão de madeira se abre, a primeira coisa que vemos é a piscina retangular de 700 metros de comprimento por 150 de largura. O lago de ondas artificiais perfeitas, que demandou quase dez anos de estudos e 30 milhões de dólares de investimento, é mais uma revolução promovida pelo maior surfista de todos os tempos.
Kelly Slater merece a hipérbole. Venceu o circuito mundial da World Surf League (WSL), a liga de surfe, inacreditáveis 11 vezes. Foi tanto o atleta mais jovem a levar o título, aos 20 anos, em 1992, quanto o mais velho, aos 39, em 2011. Foi astro da série Baywatch, namorou Pamela Anderson, Gisele Bündchen e Cameron Diaz, e tocou com Ben Harper e Pearl Jam. Com o surgimento de um ídolo, o surfe passou a atrair patrocinadores e saiu do gueto. Aos 47 anos, Slater ainda disputa as 11 etapas anuais do mundial e pode ser um dos dois surfistas a representar os Estados Unidos nos Jogos de Tóquio, no ano que vem, no début do esporte numa Olimpíada.
Fui conhecer o Surf Ranch em um evento recente promovido pela marca suíça de relojoaria Breitling, patrocinadora de Slater. Criar uma piscina de ondas sempre foi o sonho de todo surfista de alto nível — e de empresários de olho nesse mercado. Sequências de ondas perfeitas e constantes são impossíveis na natureza. Tornar o surfe mais acessível e, assim, disseminar o esporte era também o desejo do campeão. Os estudos do projeto começaram em 2006, quando ele contratou o britânico Adam Fincham, surfista amador e engenheiro aeroespacial com especialização em dinâmica de fluidos geofísicos.
No ano seguinte, o atleta fundou a Kelly Slater Wave Co. Muito estudo em laboratório depois, eles chegaram ao formato que consideraram perfeito. O lago retangular, originalmente para esqui aquático, em Lemoore, se encaixava nos padrões, mas teve os contornos e o fundo refeitos com o auxílio de supercomputadores. Para produzir as ondas, uma grande lâmina de metal de 100 toneladas, parcialmente submersa e encaixada em um sistema com mais de 150 pneus de caminhão, começa a se locomover a 30 quilômetros por hora. A água sobe e, conforme encontra os diferentes contornos da piscina, cria as ondulações. A primeira seção é dedicada à performance dos atletas, que fazem manobras na parede da onda. A segunda seção encontra um fundo que lembra um arrecife de corais e, com isso, forma tubos. A terceira e última seção também é dedicada à performance.
Em uma sala de controle, instalada no meio da piscina, um técnico opera o maquinário que pode produzir 50 tipos de onda, com até 2 metros de altura, nos níveis iniciante, intermediário e avançado. Uma vez nela, o atleta pode surfar por mais de 50 segundos — uma eternidade. Para a próxima onda ser formada, um intervalo de 4 minutos é necessário.
Em 2016, um ano depois de Slater revelar ao mundo sua piscina de ondas, a WSL adquiriu parte da empresa e tornou-se sócia majoritária. Assim, no ano passado, uma onda artificial entrou pela primeira vez numa etapa do circuito mundial. Gabriel Medina é o rei do Surf Ranch: venceu os dois eventos que ocorreram lá, em 2018 e 2019. Filipe Toledo foi vice em ambos os anos. Para a introdução da onda inventada por Kelly Slater no circuito, alguns ajustes no sistema de pontuação foram necessários.
“Não é exatamente uma competição, está mais para uma apresentação”, afirma Renan Rocha, ex-surfista profissional e hoje comentarista da ESPN. Na piscina, em vez de entrar com um adversário e disputar as ondas, o surfista fica sozinho esperando a vez. Ele tem quatro chances: duas ondas direitas e duas esquerdas. Os juízes atribuem notas às performances, e os oito atletas com a maior pontuação seguem para a final.
A onda perfeita exige mais técnica. Existe uma discussão se cabe um circuito paralelo em piscinas. Com isso, o esporte mudaria radicalmente. Slater tem dúvidas sobre esse formato. “Parte das habilidades de um surfista é ler as condições do oceano e decidir o que fazer”, diz. “Acredito em um circuito de eventos específicos, como uma turnê de aéreos ou de manobras. E também em etapas na piscina dentro do circuito mundial.”
Quando não é palco de competições, o Surf Ranch pode ser fechado por grupos de amigos, a 50.000 dólares a diária. A ideia da empresa é expandir o projeto. São Paulo pode receber uma unidade. Desde setembro, a prefeitura está em contato com a WSL. A ideia é tornar viável a empreitada com uma parceria público-privada, mas a conversa está no início. A capital paulista, vale lembrar, fica a 80 quilômetros do litoral.