Parada LGBTI+ em São Paulo: apoio da Doritos em produtos e apoio financeiro para ONGs (Divulgação/Divulgação)
Marina Filippe
Publicado em 29 de julho de 2021 às 06h00.
As marcas estão cada vez mais apoiando e comunicando causas. Isso parte de um movimento que começa pela cobrança do consumidor mais consciente, mas que só dá certo quando há consistência nas ações da companhia. São inúmeros os exemplos de como as empresas estão cada dia mais expostas, sendo o mais recente deles o caso da varejista de moda Farm, que no início de junho foi acusada por internautas de lucrar com a morte da ex-funcionária Kathlen Romeu, jovem grávida assassinada no Rio de Janeiro. O caso se deu depois de a companhia divulgar um código que direcionaria a comissão das vendas para a família de Kathlen.
Os críticos rapidamente apontaram que a prática fazia com que a jovem continuasse trabalhando depois de morta, uma vez que a doação seria apenas da comissão. Nas redes sociais, a marca se posicionou e disse que “a Farm vem a público se desculpar pela ação que envolveu o uso do código de vendedora de Kathlen Romeu neste momento tão difícil. Com vocês, entendemos a gravidade do que representou esse ato, por isso, retiramos o código E957 do ar. Continuaremos dando apoio e suporte à família, como fizemos desde o primeiro momento em que recebemos a notícia”.
O caso da Farm reforça que toda companhia corre riscos, mesmo que adote governança adequada e que tenha boas intenções. O Grupo Carrefour, por exemplo, tinha um líder dedicado à diversidade e inclusão, assim como certificados de ações reconhecidas pelo mercado, quando João Alberto Freitas, homem negro, foi morto por seguranças em uma loja do Carrefour em Porto Alegre. Naquele momento, executivos da empresa vieram a público e firmaram compromissos na luta antirracista ao se unirem com consultores e especialistas de equidade racial, formando um comitê externo com nove membros e divulgando todas as ações no site Não Vamos Esquecer. “Aquele momento chocou o país, abalou nossa imagem com razão e nos fez reforçar uma construção de sociedade mais justa. Aprendemos que o que fazíamos até aqui não era suficiente e precisamos avançar muito mais”, disse Noël Prioux, presidente do Carrefour em um evento online para 16.000 fornecedores em abril deste ano.
A visibilidade das companhias se dá pelo avanço das mídias sociais e pelo maior interesse do consumidor em entender o propósito e as atitudes das marcas que consome. No relatório global BrandZ Marcas Globais Mais Valiosas 2021, da Kantar, divulgado em junho, a boa reputação aparece como item essencial para o crescimento de marcas. A categoria do luxo, por exemplo, registrou um crescimento de 34%, principalmente com companhias francesas e italianas investindo em suas reputações corporativas por meio de iniciativas relacionadas à pandemia, transformação sustentável e apoio aos movimentos sociais como o Black Lives Matter. “A covid-19 enfatizou valores de consumidores como autenticidade e confiabilidade. Essas marcas que estão evoluindo seus valores e projetando liderança nas questões estão se destacando”, diz Nathalie Burdet, diretora de marketing da Kantar.
Para Fabio Mariano Borges, professor na ESPM São Paulo e especialista em tendências do consumo, as marcas têm mudado, mas há uma série de limites entre o discurso e a prática que precisam ser entendidos pelos consumidores. “As cobranças são bem-vindas e enriquecem o debate, mas assustam um pouco as marcas porque trazem a sensação de que, para dar o primeiro passo, é preciso ser perfeita e totalmente inclusiva, e isso não vai acontecer porque o mundo ainda não é assim. Se fôssemos esperar ações de comunicação após total equidade dentro da empresa, nenhuma marca que ainda tem salários desiguais entre homens e mulheres poderia fazer homenagem no Dia Internacional da Mulher, por exemplo.”
Mesmo quando o cenário de uma empresa não é perfeito, para evitar um deslize é importante arrumar a casa antes. Foi com essa premissa que a fabricante de bebidas Ambev lançou, em 2017, a água Ama, que reverte 100% do lucro das vendas para promover o acesso à água potável no Brasil. O projeto foi iniciado com base em um plano de redução no consumo de água elaborado quase três décadas atrás, que ocasionou uma redução de 55% quando comparado a 2002, por exemplo.
“Temos grandes aprendizados na economia e reúso de água. Pensando nisso, colocamos a força da Ambev em um produto que atualmente leva água para 35 milhões de pessoas. Para que isso funcione é preciso um ecossistema de parceiros, o que mostra como não dá para uma empresa trabalhar sozinha e sem entregar valores para a sociedade”, diz Alexandre Costa, diretor de marketing institucional da Ambev. Na companhia, uma jornada semelhante é traçada para a comunicação de causas como a de respeito aos LGBTI+. “Primeiro fortalecemos as práticas internamente e depois reposicionamos a marca Skol, auxiliamos entidades e patrocinamos a parada LGBTI+, além de outras ações”, afirma Costa.
O apoio aos LGBTI+ é explicitado também na fabricante de bens de consumo PepsiCo. Após cinco anos da primeira ativação de Doritos Rainbow Brasil, a marca anunciou em junho a continuidade do compromisso com a comunidade. A estratégia, que faz parte do posicionamento global For the Bold, realiza o aporte de 1 milhão de reais a instituições de apoio aos LGBTI+. “Doritos tem um trabalho que começou em 2017 e hoje ajuda mais de dez ONGs no Brasil. Neste ano, 1 milhão de reais doados se transformaram em profissionalização de pessoas trans. Ao longo dos anos impactamos 85.000 pessoas com esse trabalho”, afirma Daniela Cachich, diretora de marketing Latam e vice-presidente de marketing na PepsiCo Brasil.
Esse tipo de prática é bom para a sociedade e para a marca. Segundo uma pesquisa de junho da consultoria Nielsen, quando perguntados se compram produtos de marcas que apostam na causa LGBTI+, 72% do público que se identifica como parte da sigla afirma que sim. Em contrapartida, apenas 33% dos que não pertencem à comunidade disseram não comprar. No plano de apoio às mais diferentes comunidades, o desafio dos marqueteiros é entender também o papel social de cada marca, bem como o papel institucional da empresa. Assim como a Ambev promove diferentes ações para diferentes marcas, a frente institucional PepsiCo anunciou nas últimas semanas o investimento de 16,5 milhões de reais em comunidades brasileiras por meio de projetos de impacto social até 2022. A novidade, que conta com investimentos diretos e da Fundação PepsiCo, braço filantrópico da companhia, beneficiará mais de 2 milhões de pessoas.
A filantropia é um caminho para apoiar comunidades e ajudar na diminuição das desigualdades. Na empresa de tecnologia Salesforce, uma área de filantropia foi fundada alguns meses depois da criação da companhia, em 1999. Sob o comando da executiva Suzanne DiBianca, a empresa foi pioneira no modelo 1-1-1 de filantropia corporativa integrada, que dedica 1% do patrimônio da empresa, do tempo dos funcionários e dos produtos de volta à comunidade [leia mais ao lado]. Na mesma companhia há também um chefe de equidade, que coloca em prática as ideias de diversidade e inclusão. O envolvimento da liderança executiva é essencial para que sejam desdobradas ações como o patrocínio à Marcha do Orgulho Trans, iniciativa brasileira ocorrida em São Paulo em junho. Ou ainda como quando, em 2016, o fundador e presidente da Salesforce Marc Benioff se posicionou nas redes sociais contra uma lei na Geórgia, nos Estados Unidos, que permitia discriminação em estabelecimentos usando como argumento a liberdade religiosa.
Em um comunicado na época a empresa afirmou: “Se isso se tornar lei, a Salesforce terá de reduzir os investimentos na Geórgia, incluindo a mudança da conferência Salesforce Connections para um estado que forneça um ambiente mais acolhedor para a comunidade LGBTI+”. Para Daniel Hoe, diretor de marketing da Salesforce, posicionamento e apoio financeiro às causas só é possível quando há valores a ser seguidos. “No caso americano houve até ameaça de morte. Por aqui, por vezes os clientes não entendem por que optamos por linguagem neutra e inclusiva em algumas comunicações, por exemplo. É nosso papel dialogar com legitimidade e consistência para as ações pararem de pé e, consequentemente, influenciar de forma positiva outros atores da cadeia.”
Além de fortalecer as demandas sociais dos consumidores, as marcas também têm o papel de levantar discussões ainda pouco exploradas, inclusive com o envolvimento dos governos, como é o caso da fabricante de bens de consumo P&G. Junto com o governo do estado de São Paulo, a companhia anunciou, no dia 23 de junho, a doação de 2 milhões de absorventes para o programa Dignidade Íntima, que distribui produtos de higiene menstrual para estudantes da rede estadual. A iniciativa acontece após o início da campanha #MeninaAjudaMenina, pelo fim da pobreza menstrual. Segundo pesquisa em parceria com a Toluna1, estima-se que uma em cada dez meninas falte à escola durante a menstruação. No Brasil esse índice é ainda pior. Por aqui, uma em cada quatro já faltou à aula por não poder comprar absorventes, sendo que 45% acreditam que isso impactou negativamente seu rendimento escolar.
Para a P&G, dona da marca Always, a campanha vai além da doação de produtos ao promover esse debate na sociedade. “Isso não pode ser algo feito uma vez e depois nunca mais falado. Estamos planejando a segunda fase da campanha porque é um compromisso de longo prazo. Consistência de marca é muito importante nas comunicações e nas ações”, diz Laura Vicentini, vice-presidente das marcas de cuidados femininos e de bebês e líder de diversidade e inclusão da P&G. A executiva lembra ainda da premiada campanha Like a Girl, que discutiu em diversos países os estereótipos de gênero. “Fizemos de três a cinco grandes campanhas entre 2014 e 2019 com a mesma mensagem em produtos, eventos e demais pontos de contato com o consumidor.” A atual campanha de pobreza menstrual é consequência da evolução dos debates promovidos pela marca e tem tido bons resultados. Dos comentários analisados nas redes sociais após o lançamento da campanha, 97% são positivos.
Entre erros e acertos, a pandemia acelerou as demandas por comunicação de marcas que tenham ações de inclusão e equidade. Em 2020, 56% dos clientes reavaliaram o papel social das empresas, e para mais de 70% deles é importante que as companhias tenham ações antirracistas, de sustentabilidade e de impacto social, de acordo com uma pesquisa feita pela Salesforce com mais de 15.000 pessoas ao redor do mundo. “As marcas não conseguem diminuir as desigualdades sozinhas porque as causas não são delas, e sim das pessoas, mas elas têm o poder de alcance e financeiro para apoiar essas causas e atender parte dos anseios”, afirma Borges, da ESPM.
Iniciativa organizada pela Salesforce doa 1% de tempo, dinheiro e produtos, impacta milhares de empresas e as pessoas que mais precisam
Algumas empresas já nascem com o impacto social como premissa. Pensando nisso, a Salesforce lançou em 2000 o modelo 1-1-1, que dedica 1% do patrimônio, do tempo dos funcionários e dos produtos de volta à comunidade. A iniciativa passou a se chamar Pledge 1%, e hoje mais de 12.000 empresas em 130 países fazem parte do movimento. Desde a fundação do modelo filantrópico a Salesforce doou mais de 240 milhões de dólares, 3,5 milhões de horas de serviço comunitário e produtos para mais de 39.000 organizações sem fins lucrativos. Entre as empresas que aderem à iniciativa está a brasileira Rock Content, fundada em 2013.
A empresa, que já vinha trabalhando com censo interno de diversidade dos funcionários, começou a colaborar com a Pledge 1% em 2020. “A base desse processo nos traz muito valor e colabora com a estruturação de mais ações de impacto”, diz Diego Gomes, presidente da Rock Content. Uma novidade recente derivada desse modelo é o compromisso de que todos os acionistas doem 1% de suas ações para investimentos de impacto. A empresa tem ainda outras ações proprietárias, como a doação de 51.912 bolsas de estudo nos cursos da Rock Content para pessoas em vulnerabilidade social, priorizando grupos socialmente minorizados, como mulheres e negros. Cerca de 40% finalizaram a capacitação e, desses, 73% consideram que houve mudança em suas condições de emprego, educação ou em qualquer outra área da vida após a realização dos cursos.
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