De pautas identitárias ao movimento de renovação política: os candidatos da diversidade que tentam uma vaga pela primeira vez ou buscam a reeleição neste ano estão em todas as regiões do país (Rafael Canoba, Fabio Rodrigues Pozzebom/ABR, Antônio Cruz/ABR/Divulgação)
Marina Filippe
Publicado em 5 de novembro de 2020 às 05h58.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 14h55.
Os moradores de Toritama, uma cidade de 45.000 habitantes no agreste pernambucano, tiveram uma surpresa no sábado dia 31 de outubro. O município, polo têxtil pernambucano, entrou no roteiro da política nacional ao receber uma visita da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP). Ela foi à cidade expressar seu apoio a Carol Gonçalves, de 24 anos, candidata a vereadora. Gonçalves foi uma das selecionadas para integrar um grupo de cem candidatas de todo o Brasil apoiadas pela deputada para dar visibilidade às mulheres que postulam um cargo na política, por meio do movimento Vamos Juntas e Acredito. O programa oferece desde mentorias com parlamentares até consultas com juristas e sessões de terapia. “Participar de uma campanha política sendo mulher e com poucos recursos é um desafio”, diz a deputada de 26 anos, um dos símbolos do movimento de renovação política. “Precisamos de mais mulheres para tornar o cenário político mais representativo da realidade brasileira.”
Filha de costureiros e formada em relações internacionais graças a uma bolsa do Fies, o Fundo de Financiamento Estudantil, Carol Gonçalves concorre pela primeira vez a uma vaga na Câmara de Vereadores pelo MDB. Suas pautas se baseiam na ampliação de vagas em creches e em treinamento nas delegacias para o atendimento a mulheres vítimas de violência.
O financiamento da campanha, de 3.900 reais, foi obtido em vaquinhas na internet. Um grupo de voluntários cuida das redes sociais, peça fundamental da campanha, e da entrega de panfletos nas ruas de Toritama. “O exemplo de Tabata, que saiu da periferia de São Paulo e se destacou em Brasília, me inspirou”, diz Gonçalves. A jovem pernambucana é um exemplo de novos candidatos que fazem parte de grupos sub-representados no cenário político e que defendem pautas para esse mesmo perfil de eleitores.
As eleições municipais de 2020 trazem sinais de que esse é um movimento sem volta. Este é o primeiro pleito com a maioria de candidatos negros no país: são 261.659 pessoas que se declaram de cor preta ou parda que terão o nome estampado nas urnas eletrônicas em 15 de novembro. A esmagadora maioria desses candidatos, 97%, concorre a uma vaga de vereador na Câmara de uma das 5.568 cidades do país.
Também há mais candidatas mulheres concorrendo. Elas representam um terço dos postulantes ao cargo de vereador. Ainda não conquistaram igualdade de participação nas urnas, mas há avanços inquestionáveis. Em 2020, elas somam quase 174.000 candidatas, um aumento de 140% em comparação a 2000. A proporção de aspirantes a prefeitas também dobrou, passando de 8,2% em 2000 para 15,5% neste ano. “Houve uma pressão da sociedade para que diferentes perfis de candidatos, incluindo de mulheres e negros, que correspondem a metade da população brasileira, tivessem mais representatividade na política”, diz a cientista política Flavia Birolli, da Universidade de Brasília.
É verdade também que há um imenso abismo entre o número dos que concorrem às eleições e os que são efetivamente eleitos: em 2016, 12% dos cargos de prefeito e 13% das vagas de vereadores foram ocupados por mulheres. “O aumento da participação das mulheres na vida pública brasileira deve ser incentivado por duas razões. A primeira é uma questão de justiça de gênero: homens e mulheres dividindo equitativamente os espaços de poder”, disse à EXAME o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “A segunda é que as mulheres têm virtudes e características que agregam valor à vida pública. Não por acaso, alguns dos países que mais bem se saíram no combate à pandemia eram liderados por mulheres, como Nova Zelândia, Alemanha e Dinamarca.”
É fato também que os principais avanços no cenário eleitoral têm vindo a reboque de regras eleitorais que forçam mais diversidade — e transparência — nas urnas. A lei que estabelece que 30% das candidaturas deveriam ser de mulheres nas eleições proporcionais (ou seja, cargos de vereadores e de deputados estaduais e federais) data de 1997. Duas décadas se passaram para que as candidatas tivessem acesso aos recursos das campanhas proporcional à sua participação nas urnas.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a doação de empresas para campanhas eleitorais com o objetivo de coibir o toma lá dá cá envolvendo políticos e o meio corporativo, mas o que também permitiu concentrar recursos nos candidatos de maior potencial. Em 2018, uma nova norma do Supremo estabeleceu que pelo menos 30% do fundo partidário — criado em 2017 para compensar o fim do financiamento privado — teria de ser destinado a candidaturas femininas.
Portanto, o atual pleito municipal é o primeiro em que as campanhas femininas terão um forte investimento dos partidos. De acordo com levantamento da EXAME, até o dia 2 de novembro as candidaturas femininas receberam em conjunto 307 milhões de reais, ante os 765 milhões recebidos pelos homens. Se os recursos fossem distribuídos igualmente entre as 2.240 candidatas a prefeita, cada uma teria uma verba de 70.084 reais para as eleições. Do mesmo modo, cada postulante a vereadora receberia 760 reais do fundo eleitoral.
Mas não é isso o que ocorre. Como a lei não determina o percentual mínimo que cada candidatura tem de recursos a receber, nada impede que o partido direcione os recursos para algumas poucas candidatas. De fato, os recursos costumam ir para as estrelas dos partidos, não raro associadas a políticos de renome. Em Belo Horizonte, apenas uma candidata a vereadora do PSL recebeu praticamente todas as verbas destinadas às chapas de mulheres. Ex-mulher do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro, a candidata Janaina Cardoso, do PSL, contou com 690.000 reais para sua campanha. É uma soma incomparavelmente superior à dos postulantes ao cargo de vereador espalhados pelo Brasil, que em sua maioria conta com poucos recursos dos partidos ou até nenhum. “Enquanto em países como a Argentina há uma proporção de destinação dos fundos eleitorais mais bem definida para todas as candidatas do partido, no Brasil ainda estamos evoluindo nesse sentido”, diz Birolli.
A Justiça Eleitoral também tenta disciplinar pela primeira vez um fenômeno que há tempos ocorre com as candidaturas femininas: o risco de “laranjas”. Para cumprir a cota de 30% de mulheres, já houve casos de diretórios regionais que registravam candidaturas de mulheres sem que elas mesmas soubessem que concorriam. Em julho, o TSE baixou uma resolução que permite derrubar uma lista inteira de candidatos a vereador antes mesmo da votação caso irregularidades sejam constatadas. A partir desta eleição, os partidos terão de apresentar autorização por escrito de todas as candidatas, o que não vinha acontecendo desde que o registro eleitoral foi informatizado. Neste ano, por exemplo, 763 mulheres que não tiveram voto nenhum nas eleições de 2016 — nem o próprio voto — tentam de novo. Para o professor da FGV George Avelino há fortes indícios de que essas candidaturas servem apenas ao propósito de repassar recursos para campanhas mais competitivas. “É um fenômeno típico de candidaturas femininas e agora poderá ocorrer o mesmo com as de negros também.”
Assim como as mulheres, os candidatos pretos e pardos engrossam as corridas para as Câmaras de Vereadores, mas eles são apenas um terço dos postulantes a cargos de prefeitos. Essa participação no cenário político é bastante desigual pelo país. Enquanto há 26 municípios no país em que todos os candidatos ao Legislativo municipal se declaram pardos ou pretos, a maioria na Bahia, 125 cidades não têm nenhum candidato a vereador negro, a maioria em Santa Catarina. “A maior presença de pretos e pardos tomou mais força a partir de 2014, quando os candidatos precisaram informar a cor de sua pele pela primeira vez”, diz o cientista político Carlos Machado, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. “Só a mudança no financiamento já altera uma das maiores barreiras que os candidatos pretos e pardos enfrentam, mas é preciso fazer mais.”
O TSE havia fixado para as eleições de 2022 que, se uma legenda apresentasse 20% de candidatos negros, por exemplo, deveria destinar o mesmo percentual do fundo eleitoral a esse grupo. Em setembro, o ministro do STF Ricardo Lewandowski concedeu liminar confirmando que os partidos devem, já neste ano, distribuir proporcionalmente os recursos do fundo eleitoral para a campanha de candidatos negros. A proporcionalidade também vale para o tempo de rádio e televisão.
Para os partidos, a mudança repentina pode ser um complicador: as legendas que não atenderem aos novos critérios deverão brigar na Justiça pelo fato de não terem tido tempo hábil para implementar as novas regras. “É preciso olhar a mudança com cautela, há um mês a declaração de raça e cor não valia nada, e muitas vezes nem sequer é o candidato quem preenche sua ficha”, diz Luiz Augusto Campos, professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa.
“O financiamento é o principal gargalo que alheia pretos e pardos da representação política, só saberemos se houve efetividade na medida após o resultado da eleição”, diz. Um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre as verbas de campanha mostra que 9,7% das candidaturas de pessoas brancas a deputado federal em 2018 tiveram receita igual ou superior a 1 milhão de reais, enquanto menos de 3% dos candidatos negros contaram com algo em torno desse valor. “É ingênuo esperar grandes mudanças em relação à raça já em 2020”, diz Luciana Ramos, professora de direito na Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
De acordo com informações levantadas pela EXAME na base de dados do TSE, as candidaturas negras (homens e mulheres para prefeitos e vereadores) receberam 432 milhões de reais, quase metade do que foi acessado pelos partidos do fundo eleitoral. Curiosamente, nestas eleições, 16.276 políticos que em 2016 se declararam brancos agora tentam uma nova chance nas urnas como negros (a alteração da cor no registro pode ser feita em qualquer momento, pela internet ou no cartório eleitoral). “Oportunismo na mudança da autodeclaração sempre pode haver, mas o movimento negro brasileiro vê o estímulo da construção da identidade como importante”, diz o deputado federal Orlando Silva (PCdoB), que concorre à prefeitura de São Paulo. “Muita gente no passado se declarava branco e agora se entende como pardo.”
Outra novidade é o aumento significativo de candidaturas trans, com pelo menos 275 em 25 estados, um número 208% maior do que em 2016, quando houve 89 campanhas e oito pessoas eleitas, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil.
Em São Paulo, a candidata a vereadora Erika Hilton (PSOL), anteriormente eleita como codeputada estadual em um mandato coletivo da Bancada Ativista, é uma mulher trans (abreviação para transgêneros, travestis e transexuais) e negra. Se eleita, Hilton pretende atuar em quatro eixos centrais: negritude, cultura, saúde e LGBTI+. Os temas foram definidos com base em 11 seminários de escuta popular, realizados virtualmente por causa da pandemia. “Tenho uma trajetória marcada pela identidade, mas não só. São Paulo é uma cidade grande, complexa e que ao olhar para a identidade na verdade olha para a melhoria de vida de todas as pessoas”, afirma.
A diversidade entre as candidatas trans está também nos partidos. A maioria, com 51%, está vinculada aos de esquerda, mas 38,5% concorrem por partidos de direita e 10,5% por partidos de centro. Um exemplo é a candidata Bianca Biancardi (Partido da Mulher Brasileira), de 52 anos, que concorre à prefeitura de Cariacica, cidade com 383.000 habitantes no Espírito Santo. Biancardi, que fez redesignação sexual aos 30 anos, está na primeira candidatura, mas afirma acompanhar a política de perto desde os 19 anos.
A candidata diz ser uma mulher bolsonarista, que votou no presidente Jair Bolsonaro e votaria de novo. Ela também afirma ser cristã praticante, o que faz com que seja, por vezes, criticada pelo movimento LGBTI+. “Gostaria de ter mais engajamento desse grupo, mas alguns da esquerda não simpatizam comigo”, afirma. Dentro das propostas da candidata estão temas como a revitalização da saúde, do comércio e da segurança em Cariacica, mas sem abandonar também os LGBTI+, propondo um centro de acolhida para os que foram expulsos de casa por causa de sua orientação sexual e de gênero.
Biancardi não é exceção entre os candidatos de direita com pautas identitárias. Fernando Holiday, o mais jovem vereador eleito na cidade de São Paulo, é conhecido por ser contra as cotas raciais, apesar de ser negro e gay. Em busca do segundo mandato, ele se ampara no discurso da renovação política para a direita. “Acredito numa Câmara mais jovem e à direita, que defenda o que é melhor para as pessoas. Por exemplo, há uma combatividade da ideologia de gênero pela direita conservadora, mas acredito que são poucos os que defendem que a orientação sexual seja motivo de discriminação e falta de acolhimento para quem precisa”, diz.
Os movimentos de renovação política têm tido papel central em promover figuras mais diversas no cenário político. “Muitas vezes, mais importante do que os recursos financeiros é o apoio e a qualificação que recebemos dos movimentos sociais atentos à importância da renovação na política”, diz a advogada Isabela Souza, de 24 anos, de Salvador, candidata a vereadora pelo Cidadania. Moradora de uma comunidade pobre da cidade, Souza procurou se preparar melhor para o papel que pode vir a exercer na Câmara de Vereadores até antes de se candidatar. Ela fez os cursos de capacitação em políticas públicas do RenovaBR, fundado em 2017 pelo empresário Eduardo Mufarej, ex-sócio da Tarpon Investimentos, que oferece aulas sobre busca de financiamento para campanhas, estratégia de comunicação com os eleitores e marketing político.
Outros movimentos, como o Acredito, também criado em 2017, ancoraram as bases para a renovação política por meio da criação de redes com líderes regionais para angariar o engajamento político de jovens. “Há um maior interesse pelo debate político”, diz Irina Bullara, diretora executiva do RenovaBR. Dos 1.800 alunos que o RenovaBR teve neste ano, 1.032 resolveram se candidatar, um recorde. “São pessoas imbuídas de um interesse genuíno pelo bem-estar coletivo.” Se as centenas de candidaturas de negros, mulheres, LGBTI+ e de representantes da periferia vão sair vencedoras das urnas, os eleitores vão decidir no dia 15 de novembro. Sem dúvida, esta é a chance de ter um país mais inclusivo politicamente, mesmo com todas as imperfeições que ainda precisam ser corrigidas no meio do caminho.
A HORA DA PERIFERIA
Incomodada com a baixa representatividade das mulheres no Congresso, a deputada Tabata Amaral criou um programa para mudar esse quadro
A deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP), eleita em 2018, representa uma das poucas vozes femininas na Câmara dos Deputados. Hoje, apenas 15% das cadeiras da Casa é ocupada por mulheres. Essa situação se reproduz nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras. Amaral resolveu arregaçar as mangas para ajudar a mudar esse quadro. A deputada criou neste ano um movimento, o Vamos Juntas, de apoio às candidaturas femininas. Por meio de uma seleção, 150 candidatas foram escolhidas para integrar o grupo, que proporciona mentoria gratuita com parlamentares, juristas e psicólogos. “O Congresso precisa ser um local de maior representatividade do povo brasileiro, o que inclui a participação das mulheres”, diz Amaral em entrevista à EXAME. Veja a seguir os principais trechos da conversa.
Como surgiu a ideia de apoiar a candidatura de mulheres?
A sociedade ainda é muito machista e senti na pele quanto incomoda o fato de ser mulher e jovem em um ambiente conservador como o Congresso. Se continuarmos elegendo as mesmas pessoas, nada vai mudar. Precisamos de uma renovação na política, o que vai ser conseguido com pessoas de diferentes perfis conquistando espaço no Legislativo e no Executivo.
Mesmo com a lei de cotas para mulheres, a maioria das candidatas consegue ter acesso ao fundo de financiamento partidário?
Principalmente para quem está se candidatando pela primeira vez, não é do meio político nem de família importante, isso pode ser difícil. Por isso é tão relevante elas contarem com uma rede de apoio, como a que montamos. Quando posso, eu mesma vou visitar as candidatas. Contamos também com embaixadores do movimento, pessoas como o ator Fábio Porchat, a senadora Mara Gabrilli [PSDB] e muitos outros que dão espaço para as candidatas nas mídias sociais e promovem a causa.
Que barreiras as mulheres encontram para se candidatar?
Primeiro, há uma pressão de todos os lados, porque a política é considerada um espaço masculino. Eu mesma recebo ameaças até hoje. Sei que as candidatas que apoiamos muitas vezes foram assediadas e foram vítimas de ataques sérios na internet. Algumas deixaram até de sair de casa por algum tempo. Elas só não desistiram porque têm muita garra. Um grupo de psicólogas resolveu se voluntariar e oferecer sessões de terapia para as candidatas justamente porque participar de uma campanha eleitoral, e ainda mais sendo mulher, é algo muito pesado.
Há também muitas candidatas da periferia, não?
É verdade, nunca vi tantas candidatas periféricas. Essa é a eleição da esperança. Temos mais diversidade do que nunca nas urnas neste ano. Está havendo um processo de maturidade política do povo brasileiro. Desde 2013, houve uma mobilização para uma maior participação popular na política. Nos últimos três ou quatros anos surgiram vários movimentos, como o RenovaBR, com o objetivo de possibilitar candidaturas de pessoas com diferentes perfis, que não costumavam concorrer às eleições. Agora estamos vendo os primeiros resultados.
A diversidade nas urnas é uma tendência?
Certamente. As novas regras do TSE, que facilitam o acesso de mais mulheres e negros à plataforma eleitoral, refletem uma demanda da sociedade. E mais pessoas, principalmente jovens, estão acreditando que a política pode ser um espaço honrado, em que pautas importantes são endereçadas. Isso faz toda a diferença.